quinta-feira, 29 de março de 2012

A cabeça e o corpo

Uma cena, mais do que qualquer outra, simboliza para mim o papel da cabeça no corpo humano e da Cabeça no corpo espiritual. Ela envolve um cego, um paciente que chamarei de José.
O corpo de José já havia sofrido enormes danos causados pela lepra, na época em que ele veio de Porto Rico para Carville para buscar tratamento. Sua insensibilidade ao toque era tamanha que, quando vendado, não conseguia perceber quando alguém entrava no cômodo e segurava sua mão. As células do tato e da dor tinham silenciado. Em razão disso, cicatrizes e úlceras cobriam as mãos, o rosto e os pés, tornando-se testemunha muda dos maus tratos não intencionais que seu corpo havia suportado sem nenhuma sensação de dor. Nada além de cotocos em suas mãos assinalava o local onde costumavam ficar os dedos.
Uma vez que as células de dor em seus olhos já não o alertavam sobre quando piscar, os olhos de José gradualmente se ressecaram. Essa condição, agravada pela intensa catarata e pelo glaucoma, logo o tornou cego. Minha mulher, Margaret (cirurgiã oftalmologista), disse a ele que uma cirurgia corrigiria a catarata, restaurando um pouco de sua visão, mas ela não poderia operá-lo enquanto a inflamação da íris não fosse debelada. Infelizmente, uma terrível desgraça acabou com a última ligação de José com o mundo externo. Em uma tentativa desesperada de deter a lepra resistente à sulfona, os médicos tentaram tratá-lo com uma nova droga. José teve uma rara reação alérgica e perdeu a audição.
Dessa forma, com a idade de 45 anos, José perdeu todo o contato com o mundo. Ele não conseguia ver nem ouvir se uma pessoa falasse. Ele não podia nem ao menos usar a linguagem dos sinais táteis – a lepra havia entorpecido seu tato. Até o sentido do olfato havia sumido após a lepra ter lhe invadido a mucosa nasal. Todas as suas conexões com o mundo, à exceção de seu paladar tinham sido rompidas. Com o passar das semanas, assistíamos aos efeitos disso tudo em José, enquanto sua mente começava a aceitar a realidade de ter perdido todo e qualquer contato significativo com o mundo de flores, rios, ilhas e pessoas.
O corpo de José respondeu com um doloroso reflexo do que estava acontecendo por dentro: os membros se retraíram em direção ao tronco, e ele começou a assumir uma posição fetal sobre a cama. Ele podia acordar e esquecer onde estava. Ele não sabia se era dia ou noite, e quando falava, não sabia se alguém o ouvia ou lhe respondia. Mesmo assim, às vezes ele falava, aumentando o tom de voz por não conseguir ouvir o volume e deixando afluir a inexplicável solidão de uma mente condenada ao confinamento solitário.
Em um mundo assim, os pensamentos andam em círculos e espirais, causando medos e suspeitas. A loucura não é a perda da percepção do mundo real? O corpo de José se enrolava cada vez mais sobre a cama. Ele estava se preparando para morrer na mesma posição em que tinha nascido. Todos que fazíamos parte da equipe, ao passarmos por seu quarto, parávamos à porta por alguns instantes, balançávamos a cabeça e continuávamos em frente. O que podíamos fazer?
Margaret visitava José dedicadamente. Incapaz de apenas observar aquele homem – que de outra forma seria saudável – se auto-destruir, ela sentia que devia tentar algum tipo de tratamento radical para recuperar, pelo menos em parte, a visão dele. Ele aguardava impacientemente a melhora na infecção dos olhos de José para poder marcar a cirurgia.
José, é claro, não entendia o que estava acontecendo quando o moveram em uma maca com rodas para a sala de cirurgia. Ele permaneceu passivamente deitado durante as duas horas da operação.
Margaret removeu as bandagens alguns dias depois; uma experiência que ela nunca esquecerá. Embora José já tivesse percebido algum movimento impreciso, e provavelmente raciocinado que alguém estava tentando ajudá-lo, nada o havia preparado para o que realmente aconteceu. À medida que os olhos lutavam contra a luz e se focavam lentamente sobre a equipe médica reunida ao redor da cama, o rosto que não sorria havia meses se abriu num enorme riso desdentado. O contato havia sido recuperado.
Naquele longo período de isolamento, o cérebro de José continuava intacto dentro do crânio, completo, com memória, emoções e instruções para comandar o corpo. Mas ficava inútil porque a comunicação havia sido bloqueada.
Penso em José quando penso no que Deus suporta ao decidir atuar como a Cabeça em um corpo composto de seres humanos. O órgão mais magnífico do corpo pode permanecer isolado e inútil, caso não haja a cooperação dos sentidos que lhe informam e das células que lhe obedecem. Deus escolheu esta mesma posição para Si mesmo, agindo não a despeito de nós ou contra nós, mas por meio de nós. Essa é a humilhação.
Mas também há um triunfo, e ele surge quando a comunicação é restabelecida. Quando os canais sensoriais de José foram restaurados, repentinamente tudo o que estava isolado e inútil ficou livre para se expressar ao mundo exterior. José deixou claro que queria sua cadeira de rodas parada na porta de seu quarto o dia todo. Ele se sentava lá, quieto, olhando a cada segundo para cima e para baixo os longos corredores do leprosário. Quando via outra pessoa vindo, seu rosto se abria naquele sorriso incontido.
Hoje, José tem contato com o mundo. Ele insiste em vir à nossa pequena igreja todo domingo, mesmo não conseguindo ouvir nada do culto. Com o que lhe restou dos dedos, ele mal pode segurar o botão de controle de sua cadeira de rodas elétrica, e o estreito campo de visão faz com que ele colida com os objetos ao longo dos compridos corredores. Mas ainda assim ele vem, independentemente do clima lá fora. Os outros membros aprenderam a cumprimentá-lo inclinando-se, colocando o rosto na frente dele e acenando. O maravilhoso sorriso de José invariavelmente aparece, e às vezes sua alta risada. Apesar de não enxergar direito e não poder ouvir ou sentir absolutamente nada, ele consegue de alguma forma sentir a amizade daquela igreja. Isso é suficiente para ele.
A mente de José já não está mais isolada e sozinha, mas unida às outras células em seu corpo. Tudo aquilo em seu poderoso cérebro tem agora uma conexão com o resto de nós aqui fora. Ele pode expressar a imagem que esteve lacrada lá dentro.

Yancey e dr Paul Brand, “À imagem e semelhança de Deus”

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