Biografias Comentadas



“O Cristo não é apenas uma figura histórica, mas uma pessoa que vive e age nos nossos dias. Não vive apenas na Bíblia, mas também no nosso coração”.
SUNDAR SINGH – Apóstolo dos pés sangrentos

Editorial

Mais um reflexão grandiosa sobre o Poder do Amor de Deus! Do que Deus pode fazer em e através de um coração que seja a-p-e-n-a-s e i-n-t-e-i-r-a-m-e-n-t-e Seu. Esse é mais um testemunho dentre milhares de outros anônimos e sem registro histórico. São vidas alcançadas pelo Amor, pessoas que não Lhe rejeitaram a face. Tomaram-Lhe como É: o Caminho, a Verdade e a Vida. Homens que, ao se encontrarem com Jesus, perdem o medo de perder a sua própria vida para receberem a Vida de Cristo em si mesmos.
Esse chamado é para todos nós; ninguém fica de fora, mas nem todos o aceitam. Que Deus tenha Misericórdia de nós e que nos consertemos e andemos na Luz enquanto é Dia!
 Sundar Singh, um hindu que ainda bem menino desejava ter um encontro com o Absoluto e ter a Paz. A sinceridade de seu coração na busca incansável que travou foi presenteada pela Revelação dAquele que é o Príncipe da Paz. É interessante notar que Sundar teve esse encontro ainda muito jovem e não titubeou ante a oportunidade de consagrar-se a Deus.
Em “O apóstolo dos pés sangrentos: a história do homem que se parecia com Jesus”, de Boanerges Ribeiro, Ed. CPAD; temos a narrativa da história desse menino que encontrou a Paz.
 Sundar encontrou o Amor, foi transformado por Ele e quis anunciá-Lo a todos a sua volta.
A narrativa do texto usa termos cujo significado está ligado à cultura daquele povo e não ao entendimento místico e/ou preconceituoso que o ocidente faz deles. Fala em meditação, êxtase, sadu, guru... mas nada disso fere a Palavra de Deus. Talvez fira os ouvidos sensíveis dos guardiões doutrinários e teológicos. Que o Senhor possa nos libertar de tais legalismos, porque todos nos impedem de ver a Glória de Deus.
Boa leitura,
                                                                             Denise Gaspar

Testemunho da Graça de Deus

Vivos pela Graça, vivendo a Graça

Sundar Singh



A influência do lar

Em meados de 1800, na Índia, os siks do Punjab rebelaram-se contra o invasor inglês em duas guerras. Subjugados, pouco a pouco foram-se afeiçoando à nova ordem de coisas.
Dos três principais estados siks, Patiala ou Putiala era o mais importante, com cerca de um milhão e meio de habitantes. O distrito que tinha como centro Rampur que era governado pelo sardar Sher Singh, e foi nessa aldeia que, a 03-09-1889, nasceu-lhe o último filho, de nome de Sundar.
A vida em Rampur era tranquila e patriarcal. Como irmão mais velho, Sher Singh chefiava não só a própria família, mas também a de seu pai, já falecido, e alguns dos seus irmãos e sobrinhos residiam com ele. Outros serviam ao marajá em Patiala e um deles ocupava alto posto na direção do estado.
A influência da civilização ocidental era quase nenhuma. Falavam a língua nacional, praticavam regularmente sua religião.
Sher Singh após o banho e rápidas orações tomava a refeição da manhã e saía acompanhado pelos dois filhos mais velhos, para os trabalhos do dia, sua piedosa esposa consagrava-se com mais demora ao banho cerimonial, lia atentamente o Gita e depois se dirigia à Gurdvara – o templo sik – onde cumpria seus deveres de adoração. Acompanhava-a sempre a filha e, quando começou a andar , o pequeno Sundar, a quem, desde que aprendeu a falar, ensinou orações que devia fazer ao levantar-se, antes da primeira refeição do dia, pedindo aos deuses alimento espiritual.
Talvez fosse mais precioso dizer que a atmosfera que envolvia esses três membros da família era de intensa inquietação religiosa – o que não atingia Sher Singh, homem prático e dedicado às coisas da terra, nem a seus filhos mais velhos. Mas a mãe sentia haver uma profunda paz reservada para os que atingem a verdade absoluta, e sofregamente buscava essa paz; não se satisfazendo com os ensinos siks, buscava também os brâmanes; jejuava dias seguidos, absorvia-se cada vez mais nas suas orações; e, chegou mesmo a receber a visita das mulheres da Missão Presbiteriana que acabava de abrir uma escola em Rampur. Nada ambicionava mais que a carreira religiosa para o filho menor, a quem se unia pela mais terna amizade.
Por esse afeto comunicou ao menino a mesma inquietação febril. Certa tarde regressava do bosque e reinava entre ambos um silêncio pesado de pensamentos; o sadu falara da inexcedível paz reservada aos que atingem o absoluto. Um dia sua mãe lhe disse:
- Tu deves procurar essa paz na tua própria alma e amar a religião. Um dia poderás ser sadu.
A influência de Sher Singh sobre o filho menor não foi tão profunda. Mas suaa figura austera e bondosa também marcou a infância de Sundar. 
Enquanto os primos e os irmãos maiores brincavam, Sundar absorvia-se na meditação dos textos sagrados. Aos sete anos sabia o Gita todo de cor.
A ligação entre mãe e filho era forte. “Minha mãe criou-me em atmosfera de devoção. Preparou-me para a obra de Deus. Creio que todo homem religioso tem uma mãe religiosa. Foi o Espírito Santo que me fez cristão. Mas quem me levou a ser Sadu foi minha mãe”.
A morte da mãe foi para Sundar Singh um golpe doloroso. Dias e noites penou amargurado, duvidando até de deus. Tinha quatorze anos e penetrava pela via do sofrimento na grande crise que decidiu o seu destino: a luta com Cristo.

A luta com Cristo

Sundar Singh debatia-se e já não havia na terra quem o compreendesse. Sua alma sabia que existir o Caminho, mas não o conhecia. Os mestres acenavam com uma paz, mas onde encontrá-la? Nos livros sagrados? Acentuava-se a sua tendência de devorador de textos religiosos. Aos 15 anos já conhecia o Granth dos siks, o Corão, e cerca de 52 Upanishads. Ou seria nas boas obras? Não havia mendigo no distrito que não o procurasse, pois sua fama de caritativo já se espalhara.
Afinal, depois de tentar inutilmente acalmar aquela sede assustadora com citações e discursos, o velho santo do bosque confessou-se vencido: “Meu filho, é inútil perderes tempo agora com essas coisas. Mais tarde conseguirás entendê-las”.
“Mais tarde?”!
Fala-se muito nas práticas da ioga. Um homem que se assenhorasse dos seus mistérios conheceria o Céu na Terra e entraria imediatamente na posse da salvação. Havia em Rampur um brâmane iogue, e Sundar procurou-o, sujeitando-se ao penoso aprendizado dessa arte de auto-hipnotismo. Chegou ao êxtase. Maravilha! Tudo desaparecia, para dar lugar à veemente sensação de paz e esquecimento. Horas depois – ou seriam minutos? – voltou a si, sob o riso radiante do brâmane-mestre. O mundo era o mesmo, e Sundar Singh era também o mesmo, ainda com mais tristeza e amargura na alma, depois do transe enganador.
Abandonou a ioga. Buscava a Realidade, e não um fogo fátuo.
Sher Singh cada dia se preocupava mais com o filho. O rapaz definhava agarrado aos livros ou com os olhos fitos no vácuo, esquecido do mundo. Nem estudara, depois de aprender a leitura. Pensou que talvez novas preocupações o curassem daquela infeliz mania.
Dizia-se que os mestres da missão americana ensinavam bem. Verdade que eram malditos cristãos, com os quais um bom sik não devia ter contato; mas ensinavam bem e não havia outra escola em Rampur... Sundar foi matriculado na Escola Presbiteriana.
Cruzou o portal em companhia de outro adolescente que se matriculara no mesmo dia. Desambientados, foram sentar-se na carteira que a professora indicou e dali examinou cautelosa e desconfiadamente todos os detalhes.
A estrangeira apanhou na mesa um livrinho de capa preta e entregou-o aos novatos, aberto no início, para verificar o seu grau de adiantamento. O filho do sardar tomou-o e leu-o em silêncio no ponto que a professora assinalara: “Pai nosso que estás nos Céus, santificado seja o Teu nome, venha o Teu reino...” Recuou algumas linhas, e viu o nome de Cristo. Era o livro dos cristãos! Fechou-o imediatamente e empurrou-o, temeroso do contato imundo.
- Leia, convidou a professora.
Após longo silêncio, ressentido, Sundar replicou:
- Por que o leria? Somos siks. O nosso livro sagrado é o Granth.
- Mas o que eu quero não é que vocês se façam cristãos; você pode ler o Novo Testamento e continuar sendo sik.
E como ambos se obstinassem na recusa, pacientemente mostrou-lhe o regulamento da escola, que dizia ser o livro de texto o Novo Testamento. Não se obrigava pessoa alguma a matricular-se; mas quem o fizesse deveria cumprir as regras do estabelecimento. Pensassem nisso e comprassem o NT para acompanhar a classe.
Quando soube do caso, Sher Shingh simplesmente deu ao filho o dinheiro para a compra.
Por essa época o missionário, disposto a romper o círculo de ferro dos preconceitos que limitavam o seu campo de ação, iniciou reuniões de pregação ao ar livre, junto ao bazar.
Certa tarde, quando erguia a Bíblia e citava um texto, um grito escarninho interrompeu-o, seguido de formidável vaia. Insistiu. Uma pedra assobiou sobre a sua cabeça, logo seguida de outras, e o pequeno grupo de cristãos que o acompanhava dispersou-se, desanimado.
Quando se retirava, ainda sob vaia, o pregador surpreendeu-se com a expressão de ódio que incendiava os olhos do filho do sardar.
E desde aquele dia Sundar Singh tornou-se o líder da malta desordeira que tomara a peito varrer os missionários de Rampur.
Essa luta era um derivativo para a angústia interior que o roia, e era a reação da alma à Verdade que pressentia em Cristo. Antes de construir nele a nova criatura, necessariamente reduziria a pó o edifício já existente. Sua intuição não o enganava. Tamanho era seu horror a Cristo que, quando a sombra do missionário caiu sobre ele, correu para casa e passou toda uma hora lavando-se para se purificar do contágio imundo...
Como se isso não bastasse, agarrou a Bíblia, despedaçou-a diante do estupefato Sher Shingh, embebeu de petróleo as páginas rasgadas e lançou-lhes fogo. A chama destruiu o livro tão violentamente como as paixões lhe consumiam o ser.  O rosto de Sher Singh tornou-se severo. Não aprovava tanto fanatismo e repreendeu o filho.
Era o paroxismo. Depois daquilo, passou a viver como se tivesse veneno nas veias. Afinal, na madrugada de 18-12-1904, chegou a uma resolução desesperada.
“...E assim decidi abandonar tudo e acabar com a vida. Três dias depois de queimar a Bíblia levantei-me às três da manhã, tomei o banho usual e orei: ‘Ó Deus – se é que Deus existe – mostra-me o caminho certo ou eu me mato!’. Se não encontrasse paz, poria a cabeça no trilho do caminho de ferro, quando viesse o comboio das cinco horas, e ali morreria. Tinha a impressão de que encontraria sossego na outra vida, se não o encontrasse nesta: E ali fiquei, orando continuamente, sem resposta. teria mais meia hora de oração, na esperança de paz. Às quatro e meia vi algo que nunca imaginara antes: vi uma grande luz no aposento; pensei que fosse incêndio. Olhei ao redor, mas nada descobri. De repente veio-me a ideia que isso podia ser a resposta de Deus. E, enquanto orava e continuava olhando para a luz, vi o vulto do Senhor Jesus Cristo. Era uma aparição gloriosa, plena de Amor. Fosse alguma encarnação hindu, eu me teria prostrado diante dele. Mas era o Senhor Jesus Cristo, o qual, poucos dias antes, eu insultara. Uma voz me disse: - ‘Até quando me perseguirás? Eu vim para salvar-te; oravas para conhecer o Caminho Verdadeiro. Por que não o tomas?’
“Veio-me à mente uma ideia: Jesus Cristo não está morto, mas vive, e este é Ele mesmo!
“Caí aos Seus pés e senti essa paz maravilhosa que não havia encontrado noutro lugar. Era essa paz que eu buscava. Aquilo era o próprio Céu. Quando me levantei, a visão tinha desaparecido, mas a paz e a alegria permaneceram comigo para sempre.
“Saí e fui dizer ao meu pai que me fizera cristão. Ele respondeu-me – Vai deitar-te e dormir; pois se anteontem mesmo tu queimavas a Bíblia, como me vens agora dizer que és cristão?
“Expliquei: - É que verifiquei hoje que Jesus Cristo está vivo, e resolvi segui-Lo. Hoje eu me tornei discípulo dEle e passei a servi-Lo”.

A tormenta
Por esse tempo julgava-se em Rampur uma das causas mais ruidosas de que tinham notícia os aldeões. O chefe de uma das mais ricas famílias do lugar levara ao tribunal os missionários sob a acusação de corromperem o seu filho em lugar de o instruírem.
Tratava-se exatamente do rapazinho que acompanhara Sundar no seu primeiro dia de aula. Após a rebelião inicial, ele havia dado atenção ao NT e se convertendo. E como promessas, pedidos, ameaças e maus tratos não o convenciam, o enfurecido pai levou os missionários ao tribunal.
No dia em que a causa foi julgada uma multidão rumorosa apinhava-se em torno dos réus e do denunciante, que entremeou a acusação de pragas e injúrias sintomáticas de sua própria necessidade de conversão.
O rapaz foi chamado a depor. Pálido e abatido, mas transparecendo firmeza. Não se sabe como conseguira conservar consigo um exemplar do NT. Todos os olhos o fitaram quando o juiz o perguntou se eram verdadeiras as acusações do seu pai.
- Não é por causa dos missionários que eu creio em Cristo. Podem soltá-los.
Um arrepio percorreu a assistência. E o jovem, erguendo o NT:
- É pela leitura deste livro.
Absolvidos os missionários, o pai cerrou os dentes, com ódio, segurou o braço do filho e levou-o. Trancou-o num quarto. À hora da refeição atirou-lhe o alimento como a um animal, sem mesmo olhá-lo. Amargurado, o moço abaixou-se e comeu. Minutos depois estava morto.
O eco desse escandaloso caso ainda não se apagara nas conversações da praça e do bazar, quando novo rumor se ergueu: os meninos da Escola andavam a dizer que o filho do sardar se fizera cristão. Realmente, já não era visto matinalmente no Gurdvara, nem as suas tardes eram passadas no bosque, junto ao sadu.
Mas Sher Singh, que vira seu filho queimar a Bíblia um dia para logo depois vir acordá-lo com a notícia de que se fizera cristão, não o tomava a sério. Conhecia o rapaz: voluntarioso e, ressentido, embirraria no cristianismo se o aborrecessem, mas logo o esqueceria se não dessem importância.
- Deixem-no em paz. Se ninguém se incomodar, logo essa loucura passará.
O ambiente familiar tornava-se cada dia mais carregado. Sher Singh resolveu procurar o filho. Expôs-lhe os seus aborrecimentos. Se Sundar continuasse obstinado no seu cristianismo, ele acabaria por perder o respeito do Distrito. Afinal, era sardar, e se na sua própria casa se manifestava a apostasia, com que autoridade imporia ao povo acatamento aos princípios e costumes siks? Não somente ele, mas toda a família já sofria com a teima de Sundar. Falava com calma e gravidade, como se o filho menor fosse uma adulto que lhe merecesse todo o respeito e consideração.
Quando o rapaz respondeu, com firmeza, que não se tratava de mania nova, mas de uma realidade que o dominava e à qual consagraria a vida, fez a derradeira tentativa: bem, pois que se fizesse cristão, se isto lhe agradava. Mas o pai pedia-lhe ao menos que não lhe enxovalhasse o nome proclamando abertamente que tinha uma nova religião. Seguisse a Cristo em silêncio, em casa. Pensasse naquilo durante a noite e na manhã seguinte o procurasse.
Sundar passou a noite no vale da sombra da morte. Que mal haveria em ir a Ludiana batizar-se e voltar para se consagrar ao estudo do Evangelho e à oração, na calma do lar paterno? Talvez mesmo chegasse o dia da conversão do pai, e então ele proclamaria publicamente a sua crença.
Mas o Evangelho era claro: Cristo exigia tudo e imediatamente. Contemporizar era impossível.
Ao raiar do dia, Sundar apresentou-se ao pai, com olhos fundos da insônia.
Sher Singh ergueu a cabeça e uma exclamação de horror escapou-lhe dos lábios: a longa cabeleira negra do filho – distinto e orgulho dos siks – fora cortada rente e ele apresentava-se ao pai como um renegado maldito.
Desta vez quem desencadeou a perseguição foi o sardar. Poucos dias depois fechava-se a Escola e os missionários eram expulsos de Rampur. Logo Sundar era o único cristão residente na aldeia, rodeado de parentes que o odiavam, observado com amargura pelo pai, cujo cabelo começava a branquear.
Foi por essa época que surgiu em Rampur o irmão de Sher Singh, oficial do Rajá. Mal chegou, percebeu que alguma coisa havia acontecido. Não via Sundar durante as refeições e quando perguntava por ele a interrogativa perdia-se no ar.
Afinal, um dia viu o sobrinho com seu NT em urdu, sem a longa cabeleira sik, e compreendeu tudo. Homem experimentado, afeito às intrigas e aos jogos psicológicos da corte. Conversou com seu irmão e houve uma súbita melhoria de atitude da família com Sundar.
Essa simpatia chegou ao cúmulo quando o bondoso tio o convidou a passar algumas semanas em sua casa, na capital. Aceitou com prazer, dando graças a Deus pelo descanso que o passeio lhe proporcionaria.
Na casa do tio foi rodeado de simpatia e amizade, e começou a ligar-se por profundo afeto ao tio. Um dia ele o convidou a descer à adega da casa, onde guardava a riqueza da família. Centenas de moedas amarelas brilhavam foscamente; barras de ouro maciço! pacotes de papel moeda. O dono daquele tesouro mergulhou nele as mãos e erguendo-as deixou cair pedras preciosas que cintilavam.
Depois, endireitou-se; ergueu a mão direita e arrancou o turbante que atirou ao pó. Era a maior humilhação possível para um nobre sik. - Fica conosco, filho. Toda essa riqueza te pertencerá.
Compreendendo o motivo da humilhação do tio, Sundar chorou, comovido.
No dia seguinte voltava a Rampur, deixando atrás de si ressentimento e rancor, pela obstinação insultuosa com que se apegava seu cristianismo.
A tentativa final foi feita por um cunhado, oficial do Rajá de Nabha. Levou-o na esperança de que o esplendor da corte, as vestes, o ambiente de riqueza tão diverso da vida sonolenta da aldeia o fizesse mudar de pensamento.
O Rajá soube que em casa de um dos seus servidores estava um rapazinho de descendência nobre, convertido ao cristianismo, e considerou ponto de honra atraí-lo novamente à velha e boa religião do Punjab; e mandou chamá-lo.
Sundar inclinou-se respeitosamente. O Rajá recebeu-o com um sorriso e o exortou a abandonar a nova religião. Os siks eram povo nobre e guerreiro, respeitado pelos próprios ingleses. Seus feitos de armas eram lembrados com orgulho. Eram Singhs (Leões). Passaria a Sundar-Cão, (Para um sik, aceitar a Cristo equilavia a transformar-se de Leão em Cachorro).
Modestamente, Sundar expôs as razões da sua conversão e reafirmou o seu propósito de permanecer crente em Cristo.
Os senadores mordiam os lábios de cólera. Sabiam muito bem resolver esses casos a pedradas. Com um gesto impaciente de despeito, o Rajá despediu-o, e ele saiu com o desapontado cunhado.
Depois disso a tempestade desabou sobre sua cabeça.
Levado de volta a Rampur, Sher Singh o esperava, mas afastou-se para não tocar nele. Família reunida, o pai, com dureza e desprezo contemplou o renegado, que olhava o chão humildemente. Custava-lhe compreender que aquilo fosse realmente seu filho mais novo. Pronunciou sobre ele a mais terrível das maldições, deserdou-o e o declarou sem casta. Depois enxotou-o como a um cão.
“Bem me lembro da noite em que fui expulso de casa – a primeira noite... Passei-a ao relento sob uma árvore. Nunca me havia acontecido isso. Não estava acostumado à vida sem conforto. Pus-me a pensar; ‘Até hoje eu vivi no luxo da minha casa; agora, aqui estou, tremendo de frio, com fome e sede e sem abrigo’. Ali fiquei a noite toda. Mas lembro-me da alegria maravilhosa que sentia e da paz de alma. Para mim, aquela noite foi a primeira que passei no Céu. Uma alegria inexplicável fazia-me comparar aquela hora com o luxo da minha casa, onde eu não encontrara paz para o coração. A presença do Salvador transformava o sofrimento em paz”.

Os cristãos
O apito agudo do trem fê-lo estremecer e fitar a aldeia, cujas casinholas pobres se acomodavam resignadamente em torno da Gurdvara. O comboio partiu com um arranque; segundos depois Rampur desapareceu, e Sundar Singh compreendeu que estava só no mundo com Cristo.
Mergulhou na oração, comprimindo com força o NT junto do peito e não sentiu que as horas passavam. Olhou pela janela e viu uma aldeola pobre que timidamente fugia da estação. ROPUR. Ropur? Ouvira dizer que a maior parte dos cristãos de Rampur estava ali. Por que não os procuraria? Desceu no momento exato em que o comboio partia e perguntou a um camponês se ali havia um ministro cristão.
- Cristão? O homem fitou-o, desconfiado, e apontou. Tomou o rumo indicado.
Uma pontada feriu-lhe o estômago. Seria fome? Não conhecia ainda a linguagem dessa companheira desapiedada. Apressou o passo, indagou novamente e afinal chegou à casa de um pastor indiano. O estômago estava em fogo. Bateu. A dor tornava-se mais aguda; como se acabasse de engolir brasas. Contorceu-se de dor.
O pastor, atônito, carregou para dentro o rapazinho sik que vomitava sangue, não conseguia falar e agarrava convulsivamente o NT. Colocou-o na cama e chamou um médico, que, ao examinar a espuma que manchava os cantos da boca, desanimado, citou um veneno mortal e prometeu voltar no dia seguinte para o atestado de óbito.
O dia foi passado em agonia. A noite, a esposa do pastor veio assentada à sua cabeceira ficou tentando, em vão, refrescar-lhe a testa escaldante. Entre um e outro acesso de delírio, Sundar agarrava-se à convicção de que devia servir seu Mestre na terra; ainda não podia morrer. De manhã estava vivo. Nos dias seguintes, teve o cuidado do pastor e de sua esposa. Afinal, convalescente ainda, retomou o caminho de Ludiana.
Quando o comboio desapareceu e o pequeno grupo cristão se dispôs a regressar à aldeia, o médico decidiu-se; tinha visto a mão de Deus operar; já não podia ser o mesmo homem. Em 1918 ainda estava em plena atividade na Birmânia, como missionário.

O sr Wherry, diretor da Escola Preparatória Cristã, que os presbiterianos mantinham em Ludiana, dava quase por terminados os trabalhos em 1904. O jovem entrou. Vinha de Ropur, a conselho do pastor da aldeia. E narrou a sua história. Uma hora depois o regente do Internato indicava-lhe a cama que devia ocupar.
Logo se sentiu isolado entre os colegas filhos de pais cristãos, livres das lutas que ele conhecia, os rapazes pouco se preocupavam com problemas espirituais, limitando-se a absorver passivamente o ensino e os costumes religiosos. O novato era entre eles uma peça estranha: incomodava e chamava a atenção. Não participava de nenhuma atividade social. Queria apenas permanecer no quarto ou sob as árvores da quinta, com aquele eterno NT na mão.
A diretoria protegia-o, levava-o para a sua mesa no almoço; o senhor Wherry – e depois, seu sucessor,o sr Fife– fechavam-se com ele no escritório em longas palestras.
Um dia, ao sair do dormitório, uma maçã podre espatifou-se no seu rosto, acompanhada da vaia dos colegas. Limpou-se e afastou-se, admirado. Por que tal trato? Não eram todos cristãos?
Ele próprio estava perplexo com o cristianismo, os seus colegas cristãos vestiam-se como ingleses; diariamente iam aos cultos, assentavam-se pomposamente nos bancos escuros para ouvir a prédica formalizada do professor; cantavam hinos cujas músicas os ouvidos indianos de Sundar não conseguiam assimilar; falavam de preferência em inglês.
Pois então tinham de arrancar a pele para ser cristão? A mudança não devia ser do coração? Por que abandonavam os seus trajos nacionais? Muitos nem turbante usavam. Por que não se livravam daqueles bancos incômodos e não se assentavam no chão, como na Gurdvara? O pregador devia descer do púlpito e vir para o meio deles palestrar informalmente, como os sacerdotes e os sadus. Cantariam hinos com modulações indianas... não podia entender bem aquele cristianismo inglesado.
Os horários comprimiam-no; perdia aulas, absorto na leitura bíblica.
Tomava de preferência, os textos do Evangelho de João referentes ao Amor de Deus.
Tinha de exercer sobre si mesmo constante vigilância, pois logo verificou que com a conversão não perdera o temperamento arrebatado e voluntarioso, foi uma luta sem tréguas, onde cada vitória custava dias de oração e meditação. Tratava com brandura os colegas e afinal captou-lhes a amizade.
Mas decididamente não fora feito para seguir regulamentos escolares. Escandalizava os professores com a tranquila desobediência de regras para eles sagradas. Os diretores afligiam-se com essa independência; nunca podiam prever os atos de Sundar Singh. Depois, o pai e os irmãos já rondavam a escola, havendo mesmo tentado um dia raptá-lo. O melhor seria mandar o moço para muito longe, ao menos durante algum tempo. A tranquilidade da Missão Médica Americana de Sabatu talvez fosse melhor para o seu temperamento.
Foi, de fato, muitíssimo melhor.
Trinta e sete quilômetros além de Simla, Sabatu é uma aldeola montanhosa, quieta e fresca, rodeada de cheirosas florestas de pinheiros cujas clareiras deixam ver a distância os cumes esbranquiçados da neve eterna.
Sundar passava os dias na floresta ou no quarto, meditando e orando. A sua vida ligava-se cada vez mais a Cristo, à medida que o conhecia melhor.
Os missionários tratavam-no com simpatia, continuando a obra dos colegas. Embora intensamente indiano, Sundar estimava-os profundamente. Via em sua vida um perfume evangélico, uma aura refrigerante de idealismo, vindos talvez do desejo quase ingênuo de dar, de fazer bem, que orientava os seus atos. Tempos mais tarde a torrente de gratidão que durante anos se acumulara na sua alma transbordou, foi à Inglaterra. Um missionário seu amigo levou-o a visitar o velho pai. Embora não fosse dado a dramatismos, Sundar Singh não se conteve ao ver o ancião; ajoelhou-se, beijou-lhe os pés e ardentemente lhe agradeceu haver dado o seu filho à Índia como pregador.
Desde que se convertera desejava sempre receber o batismo. Afinal pôde voltar a Simla, a tumultuosa capital do Norte, onde refervem as espumas da espionagem e da contra-espionagem fronteiriça, e ali foi batizado, a 03-09-1905, pelo pr . Redman, da Igreja anglicana.
Completava neste dia 16 anos. Atingira, portanto, a maioridade, segundo o costume hindu.

Sadu Sundar Singh

Um jovem hindu deserdado e sem casta, maldito no lar dos seus pais e na aldeia em que nascera, caminhava pela estrada que de Simla leva a Sabatu, com a alma inundada de alegria. Paradoxal alegria, à qual já se mesclava preocupação gravíssima; se o batismo lhe resolvera os problemas espirituais, selando definitivamente a sua consagração a Cristo, não lhe dava, contudo orientação sobre o rumo a imprimir à vida. Não lhe seria possível continuar a viver da boa vontade dos missionários.
Todas as suas forças dirigiram-se à pregação do Evangelho. Precisava remir o tempo perdido, desfazer os males que causara aos pregadores de Rampur. Mas, como? Passar anos encarcerado no Seminário, receber lições de Teologia, de Grego, de Latim, assimilar por processo exaustivo e mecânico a piedade de outros homens; pastorear depois uma igreja, viver preso à paróquia e aos seus pequeninos problemas gerados pela mesquinhez eterna do homem...?
Conseguisse ele manter sempre a íntima união com Cristo que agora possuía e poderia dispensar a organização eclesiástica. Mesmo porque a europeização da Índia era ingrata tarefa que a Igreja Evangélica Indiana parecia apostada em levar a cabo – e isto lhe repugnava. Não se converteu à civilização ocidental, mas ao Cristo Universal.
Trinta e três dias após o batismo, vendeu os escassos objetos que possuía, comprou a roupa amarela de sadu, vestiu-a e, descalço, levando numa das mãos o NT em urdu, tomou o rumo do sul. Seria, desse dia em diante, o Sadu.
Sadu, palavra sânscrita que significa reto. Adotada para designar uma classe especial de religiosos veio a ter o sentido de puro, santo. Vestidos com a roupa cor de açafrão que tão facilmente se distingue, caminham, regra geral, descalços, sem pouso fixo. Nas aldeias e nas cidades todos têm prazer em dar-lhes uma escudela de comida, um leito de palhas, uma hora de palestra.
Tão intimamente relacionada com o paganismo hindu estava a vida do sadu, que era necessário mais que simples originalidade para adotá-la e pregar o cristianismo. A Igreja receberia tal ideia com escândalo e desagrado; e os mesmos indianos que o acolhessem, ao verificarem que o Santo Homem era apenas um maldito cristão de casaca amarela, possivelmente vingar-se-iam ferozmente do logro.
Mas Sundar Singh não estava à procura de um artifício: queria ser sadu e não apenas vestir-se de sadu. Possuiria a mentalidade de sadu, com alma de cristão.
Dias depois penetrava em Rampur. Junto ao velho bazar onde apedrejara pregadores, cantou com voz vibrante um hino cristão. Quando o povo, curioso, se aglomerou, contou-lhes a transformação que se operara na sua vida. Por que não se faziam eles também cristãos? Por que não liam a Bíblia? Jesus Cristo estava vivo, era Deus! O único Deus!
Deixaram-no em paz. Alguns intrigados, outros impressionados. Um deles foi chamar Sher Singh, mas quando este chegou já o filho desaparecera, rumo à aldeia seguinte. Na estrada poeirenta e ardente o sadar apenas distinguiu as marcas dos pés descalços do seu filho. Era fácil conhecê-las, porque estranhos sinais escuros as identificavam, no labirinto de pegadas impressas no pó. Olhou com cuidado: os pés de Sundar Singh sangravam. Lá estava o rastro negro, a denunciá-lo. Esses pés afeitos à carícia de tapetes caros... Pensativo, Sher Singh voltou ao casarão, onde vivia solitário como um homem órfão da própria alma.

Sua primeira viagem

Exausto e suarento, o jovem sadu entrou na aldeia. Mais tarde aproximou-se timidamente uma mulher, com o filhinho nos braços, e pediu ao Santo Homem que abençoasse o filho do seu marido. E, enquanto o sadu acarinhava delicadamente o rosto da criança, outras mulheres com os filhos pela mão e homens curiosos aproximavam-se.
Começou a entoar, com má voz, uma cantiga que lhes parecia vagamente conhecida. Destoava, nos lábios de um Santo. “Jesus Cristo”? Não era o Deus dos ingleses? De que terra vinha esse sadu que falava em Jesus Cristo? Que significava aquilo? As sobrancelhas do sacerdote cerravam-se, quando, com firmeza, o rapaz – não devia ter mais de 17 anos, e era bem franzino – começou a dizer que Jesus Cristo, cuja história vinha naquele livro chamado NT, era o Grande e Verdadeiro Deus e que os pecados do homem eram lavados pelo Seu Sangue.
Aquilo cheirava a blasfêmia. Toda gente sabia que as águas do Rio Sagrado é que purificavam. Um zunzum formou-se entre os homens. Um mais atrevido, comentou em alta voz: - Baj! Cristão disfarçado de sadu!
Era Kripa Ram, conhecido pela truculência. O sussurro engrossou, e Kripa Ram abriu caminho aos empurrões e deu-lhe uma bofetada. Sua mão pesava como ferro e o mocinho caiu. Gargalhadas. Levantou-se, empoeirado, com o rosto e uma das mãos sangrando. Alguns dentre o povo começaram a retirar-se discretamente. Cristão ou indiano, o homem veste-se de sadu, e ninguém sabe se as suas maldições serão ouvidas pelos deuses; - um sadu ofendido sabe amaldiçoar cientificamente o ofensor desde os cabelos da cabeça até as unhas dos pés. Mas o estranho santo canta outro hino. Ao terminá-lo, faz uma oração que pede a Deus, Jesus Cristo, que perdoe ao povo da aldeia as suas ofensas e que não castigue o seu ofensor.
Ressabiado, Kripa Ram retira-se. Um dos homens presentes, com longas desculpas a respeito da sua pobreza, pede ao sadu que o honre dormindo num dos quartos. Para lá se dirigem, reiniciando-se a palestra à luz tosca do fogo. Ao recolher-se, o jovem sadu ajoelha-se e mergulha em oração: “Senhor, bendito sejas pelas alegrias dos dias passados e pelos sofrimentos de hoje. A bem-aventurança do Céu torna-se mais real para mim quando carrego a Tua cruz. Só depois que sofri é que vim a conhecer a alegria real”.
De madrugada, curioso, o hospedeiro espreitou pela janela do quarto. Tudo em ordem. Mas o estranho sadu cristão desaparecera.
Meses mais tarde um jornal cristão da Índia transmitia o dramático apelo de um Kripa Ram, que acabava de abraçar o cristianismo e desejava ser batizado “por aquela mão ferida”.
Assim atravessou Sundar Singh o Punjab pela 1ª vez, até atingir a Caxemira. Vadeou torrentes bravias, venceu florestas, viveu com pastores em cabanas imundas, cruzou o Beluquistão, pela primeira vez na sua vida esteve na terra dos tão falados guerreiros afegãos e atingiu Jalalabad.
Depois de observar as velhas ruas tortuosas cantou um de seus hinos – aquela voz desafinada teria de ser ouvida em toda Ásia? – e iniciou a palestra. A princípio trataram-no com cautelosa deferência, mas à medida que ele falava as fisionomias se anuviavam; afinal, vociferando, um dos ouvintes retirou-se; depois, os demais. Cansado, sentou-se num canto e caiu em meditação. De repente, alguém lhe puxava violentamente as vestes.
- Santo Homem, fuja, que uns patans (afegãos) resolveram matá-lo hoje. E não deixe de se lembrar em suas orações do filho do meu pai. - Mal sussurrou essas palavras, esgueirou-se pelo beco.
O sadu ergueu-se; e verificou que o lugar seria ideal para um crime. Caminhou perdido na cidade que se recolhia para resistir a uma noite de gelo, até que encontrou o sarai (pouso de caravanas) onde se misturou aos homens, animais e mosquitos, disposto a suportar todos os maus odores do universo. Pouco a pouco foram-se apagando as escassas fogueiras e os viajantes recolheram-se às barracas. Aconchegavam-se aos cobertores grossos, geralmente reforçados pela capa da viagem. Só, o sadu limpou na escuridão um canto do sarai e deitou-se na terra úmida. Aproximava-se um grupo de homens que avançavam indecisos, tateando na escuridão e falando em voz baixa. Afinal chegaram onde o sadu tiritava, com a roupa já molhada pelo chão úmido. Recuaram, discutiram rapidamente, e retiraram-se.
Noite sem fim. O frio penetrava os ossos. Era como se o sangue estivesse gelado, e circulasse pelas veias levando a todo o corpo um arrepio de morte. Afinal, o movimento do sarai ressurgiu. Sundar Singh ergueu-se. A roupa estava molhada, os dedos duros, os lábios roxos. Ajuntou gravetos e acendeu pequena fogueira para readquirir o calor e enxugar-se. Nisto surgiram os patans. Passadas largas de valentões. Foram até onde ele havia dormido, voltaram-se um tanto confusos e deram com o cão infiel que, de cócoras, se aquentava. O riso que traziam congelou-se, transformando-se em expressão quase cômica de espanto. Conferenciaram explicitamente, enquanto o sadu aguardava ansioso e com um arrepio a sentença final de morte. Um deles – pelos modos o chefe – avançou sozinho e, para surpresa do moço ajoelhou-se e beijou-lhe os pés, antes que ele pudesse fazer qualquer movimento. E explicou-se. Quando verificaram que ele pertencia à maldita religião cristã, resolveram matá-lo, e para isso o acompanharam pela cidade, aguardando o melhor momento; ao verem que ia dormir no sarai, completamente desabrigado, dispersaram-se. Sabiam que uma noite como a que iam ter mataria homens mais fortes. Não podiam agora compreender como estava ainda vivo e lesto, com forças para fazer fogo; o seu rosto dava a impressão de que ele havia passado uma noite deliciosa, no leito de penas de palácio real. A única explicação possível era que Alá o tinha em sua bendita proteção. Poderia o saduji fazer-lhes o obséquio de aceitar a hospitalidade magra e pobre que lhe ofereciam e repetir-lhes as palavras de sabedoria que tinham ouvido na tarde anterior?
Uma semana se passou. Pregava diariamente, a assistência cada dia mais numerosas. Mas era um sadu peregrino, reiniciou viagem.
Em Kotgar residia o velho pr Betuel. Acolheu-o com prazer. Mais tarde o dr Junkes também se fixou na aldeia. A sua casa na colina, era constantemente procurada pelos camponeses dos arredores que tinham doença em casa ou que apanhados pela nevasca e derrubados, haviam sido recolhidos ao hospital. Kotgar tornou-se para Sundar ponto de partida e ponto final de jornada, desde esse dia. Os amigos habituaram-se ao seu temperamento original e nada lhe perguntavam quando, repentinamente, ele abandonava a sala onde o fogo crepitava na lareira, e mergulhava no bosque por horas ou dias, orando e meditando.

Em 1908 o sadu fez a sua 1ª viagem ao Tibete. Desde então passou a percorrer o Punjab nos meses frios, consagrando o verão àquela terra. Considerava-a sua paróquia, e a ela consagrou a vida de maneira toda particular.

Bothyal

A barreira do Himalaia, que separa o Tibete da Índia, dá feição à região onde o Sadu iniciou os seus dias de apostolado tibetano. Ásperas rochas polidas pelas mais persistentes das neves, picos erguidos contra o céu, envoltos em nuvens, cobertos de gelo; florestas matizadas de ciprestes e coníferas, vales fundos, alguns dos quais detrás das suas tendas de couro de Iaque espreitam os abismos – “ninhos de andorinhas no beiral do mundo”, como disse o poeta inglês.
Erguem-se isolados, nas planícies, mosteiros onde os lamas leem ou ouvem ler livros sagrados, correm beatificamente as contas dos rosários ou giram a roda de rezas – sistema original de industrialização da prece. Cada família é obrigada a consagrar à religião ao menos um dos seus filhos varões, o que torna inacreditável a proporção de monges no país. Num mosteiro, nas proximidades de Lhasa, tem seis mil. Junto de cada cidade é certo encontrar-se uma Lamaria, e cada povoado é governado por um lama ao menos, acolitado pelo secretário que, no governo supremo, junto ao dalai-lama, faz as vezes de primeiro-ministro.
O sistema monástico caracteriza o budismo tibetano – e garante-lhe o poder tremendo que possui no país, onde suplantou a religião original e, mesmo, tornou-se mais forte que na Índia, onde nascera. A unidade política do lamaísmo tem como norma única a autoridade crescente do tashi-lama, abade do mosteiro de Shingatze, que hoje governa quase tanto como o próprio dalai-lama. Embora conserve inalterada a unidade política, o lamaísmo está minado de cisões doutrinárias que, no correr dos anos, têm formado seitas no interior do corpo.
Alguns viajantes e frades atingiram Lhasa e lá permaneceram algum tempo. As invasões e incursões guerreiras dos mongóis, que assolou o Império Romano e a Rússia Medieval, que se voltou para a China e penetrou na Índia, deixou sempre indemne o tabuleiro tibetano, graças à cinta agressiva de montanhas que o defende. Isto tornava os habitantes menos desconfiados de visitas estrangeiras. Mas vindo o domínio chinês, cessou a liberdade. Acresce que um oráculo budista julgou oportuno predizer que a autoridade dos Lhamas seria quebrada por uma incursão estrangeira – o que tornou a pregação de qualquer religião estranha o crime dos crimes.
As missões evangélicas tentaram várias vezes penetrar na terra selada, mas nunca o conseguiram senão incidentalmente; não foi possível criar uma estação missionária. Os morávios lograram, como única solução, manter-se em Poo-i, na fronteira. Ali pregavam aos mercadores que desciam ou regressavam do Punjab.
Para termos melhor ideia do campo que o sadu elegeu especialmente como sua paróquia, convém que conheçamos um pregador que o antecedeu.
A história de Kartar Singh apresenta notáveis pontos de semelhança com a do sadu. Filho de pais ricos, nascido no Estado de Patiala, tentado de todas as formas pelos parentes quando se converteu, foi expulso de casa e dedicou-se à vida de pregador itinerante.
Após uma série de viagens pelo Norte da Índia, iniciou a travessia da montanha fronteira tibetana. Foi mal recebido. Em Tsingham a população arrastou-o ao palácio do lama, acusando-o de penetrar ilegalmente no país e de contrabandear religião estrangeira. Ora, os lamas são gente de consciência extremamente delicada. Delicada a ponto de não admitirem que se mate um homem nem mesmo no cumprimento da sentença legal. Pena de morte seria homicídio. Mas, por outro lado, têm tão grande amor à ortodoxia que jamais tolerariam a existência de uma alma danada a semear heresia entre as suas ovelhas. E não tinham o recurso de entregar o criminoso ao “braço secular” – porque o “braço secular” são eles próprios – o único remédio que podiam dar à situação era permitir a ‘morte espontânea’ do réu. Tinham vários e engenhosos processos para isso.
Com kartar Singh empregaram um dos mais simples; despiram-no na praça, entre os rugidos da multidão, costuraram-no dentro de uma pele úmida de iaque e expuseram-no ao sol. À medida que secava, o couro se encolhia, comprimindo seu corpo. Ao lado, estava caído o NT.
O secretário do lama observava a cena. Em dado momento reparou no livrinho e, curioso, foi erguê-lo. Guardou-o para exame posterior, porque a morte de kartar Singh, o impressionara mais do que gostaria de confessar, e desejava conhecer a religião que o inspirara a suportar com tanta doçura o martírio. A leitura da vida de Cristo, ilustrada pelos acontecimentos dos últimos dias, venceu-lhe o coração. Após algumas semanas de luta decidiu-se e foi dizer ao lama que se fizera cristão.
A morte do hindu tinha sido muito suave – por isso é que já havia quem quisesse acompanhá-lo. Mas o lama resolveu dar, na pessoa de seu secretário, um exemplo definitivo.
Meteram-no no couro úmido. Mas esse couro estava furado em vários pontos, e as mãos ficaram de fora. Nos orifícios metiam, de tempos em tempos, um ferro em brasa. Ainda havia na praça o cheiro de carne queimada quando começaram a meter lascas de madeira sob as unhas, a golpes de martelo.
A morte custava. impacientes, os esbirros do lama descosturaram o couro, prenderam a uma corda os pulsos do prisioneiro e, acompanhados pela massa, dispararam pelas ruas tortuosas, indo ao monte de lixo, onde atiraram o corpo sangrento, vivo, mas inconsciente.
Nunca se soube como conseguiu, ao voltar a si, arrastar-se para casa de um amigo, onde se ocultou até restabelecer-se.
Quando o sadu, de regresso à Índia, foi contar ao velho pai de Kartar o martírio do filho, a quem ele expulsara renegado, o ancião comovido, só pôde responder: “eu também sou crente em Cristo”.

Em Poo-i dois irmãos morávios acolheram o sadu, de quem já tinham ouvido falar. Deram-lhe a hospitalidade tosca e pobre que o lugarejo agreste permitia e ouviram com atenção e entusiasmo a declaração por ele feita de que pretendia dedicar-se à evangelização do Tibete. Estava com 19 anos.
Uma terra onde nunca estivera, cuja língua ignorava e cujos habitantes não o conheciam. Ficou uma semana aprendendo o básico da língua tibetana e depois, acompanhado por um trabalhador da missão, tomou o trilho conhecido como “Rota do Peregrino”.
Tomou leite e comeu queijo que lhe ofereceram os pastores das aldeias montanhosas – em muitas das quais se praticava a poliandria, (o casamento de uma mulher com dois homens), e conversaram a respeito de Cristo. Atingiu o planalto, entrou nas aldeias, pregou ao povo que se reunia nas praças ao entardecer para a oração coletiva e ficou conhecendo bem o que significava ser expulso consecutivamente de cada ponto onde iniciava a pregação.
Lá continuou, de cabana em cabana, de aldeia em aldeia, até atingir a cidade de Tashigang, onde o ritmo, que se fazia monótono, de pregação e expulsão, foi quebrado. O lama local recebeu-o com amizade, reuniu o povo para ouvi-lo, agasalhou-o dos rigores do frio e deu-lhe carta de recomendação para um amigo de outra cidade.
Foi na cidade de Rasar que o jovem pregador travou melhor conhecimento com a natureza perversa dos tibetanos – e com o poder de Cristo.
Ao começar a pregação alguém gritou que queria mudar a religião deles e que não passava de disfarce a roupa que vestia. O resmungo e os empurrões se avolumaram e cobriam-lhe a voz.
Aos encontrões, empurraram-no para a casa do lama. Interrogado, expôs a que vinha. Quando tentou recomeçar a prédica, o lama, com um gesto feroz, pronunciou sentença condenatória e foi arrastado pela multidão. No caminho, entre ameaças e insultos, um budista mais exaltado deu-lhe uma cacetada ferindo seu braço. Detiveram-no junto de um poço seco. Um cheiro nauseante exalava de seu interior: cheiro de carne podre. Despiram o sadu e atiraram-no no poço. Levantou-se, na escuridão, e seus pés escorregaram numa coisa macia e repugnante. Firmou-se com dificuldade na parede úmida, aos escorregões. Um objeto liso e redondo... pontas duras... mau cheiro suficiente para matar um homem. Ossos de homens há muito sepultados ali, e corpos putrefatos dos mais recentes. No alto, as faces ferozes desapareceram. A boca do poço foi cuidadosamente trancada e o sadu, sozinho no Vale da sombra da Morte, mergulhou em oração. Não era fácil compreender. Não estava a serviço de Cristo? Por que ninguém o ouvia e todos lhe davam em resposta desprezo e ódio? Haveria engano na sua decisão de pregar no Tibete? Por que Cristo não se manifestava, convertendo almas? As horas se perderam e, o moço se debatia entre o gozo de sofrer por Cristo e a dúvida.
Não sabia que três dias se tinham passado. Inerte, sentado entre os ossos e os cadáveres, aguardava a morte, quando a boca do poço se abriu. Um vulto irreconhecível, negro contra o céu da noite. A voz, ampliada, era como o trovão. Ordenava-lhe que agarrasse a corda. Tateando fracamente, firmou o pé e segurou-a como pôde. Foi erguido; seu corpo oscilou de uma parede à outra, até que atingiu a superfície. Fortes mãos o agarraram e colocaram em terra. O ar fresco invadiu-lhe os pulmões como a água da represa invade o vale, os diques. Tossindo, atordoado, ouviu como em sonhos o ranger da tampa, o som da chave na fechadura.
Olhou em torno, para conhecer o seu amigo desconhecido, mas viu que estava só na escuridão noturna. Caiu de joelhos e deu graças a Deus. Amanhecia. Vacilante, dirigiu-se ao sarai, onde adormeceu.
Quando acordou, reiniciou a pregação.
O seu caso estava encerrado, visto que todos o julgavam morto; o tumulto e o susto foram enormes quando aquele fantasma surgiu. Novamente levado ao lama, narrou sua libertação.
O monge tremeu de fúria.
- A chave! Com quem está a chave do poço?
Amedrontados, os oficiais sabiam que alguém ia morrer com ele. Procuravam a chave, ansiosos. Afinal, um dos presentes fez em voz baixa uma observação medrosa e, o lama de Tashigang levou a mão ao cinto, onde encontrou a chave.
Sudar Singh foi expulso sem maiores violências e continuou a jornada. Insistiu que pouco importava saber se o libertara um amigo secreto do cristianismo ou um anjo de Deus. Seu libertador foi Cristo. O agente por atrás da mão que movera a chave era seu Mestre.

Durante algum tempo foi acompanhado por um tibetano com quem fizera amizade.
Certo dia frio de gelar os ossos, os dois subiam o trilho da montanha, sob a neve lenta e silenciosa. Açoitado pelo vento malévolo, mal vestidos, desesperavam de morrerem. À margem do trilho um precipício escarpado. No fundo uma figura escura. O sadu firmou a vista. Um homem! Não podiam deixá-lo ali. Chamou o companheiro, mas este, indignado, voltou-lhe as costas. Mal podia consigo e ainda haveria de pôr um homem às costas? Morreriam os três. Que morresse um só. Desapareceu. Tateando com os pés, o sadu desceu a perigosa ladeira. Auscultou o coração do homem; palpitava fracamente. Com esforço atirou-o às costas e, agarrando-se com a mão direita às arestas da rocha, suado e ofegante, conseguiu atingir o trilho. O homem começou a dar leves sinais de vida. Com o fardo às costas, continuou a viagem. Algumas centenas de metros adiante viu outro corpo caído semi-sepultado na neve. Colocou no solo o que trazia e inclinou-se sobre ele; imóvel e frio como pedra. Congelado. Observou-lhe as feições e, penalizado, reconheceu o companheiro tibetano. Atingiu, finalmente, uma aldeia e ali os cuidados dos aldeões completaram a cura do desconhecido.
Mais tarde, referindo-se ao episódio, comentou que ele mostrava muito bem a absoluta verdade das palavras de Cristo: “Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á”.

O seu coração apegou-se definitivamente ao Bhot. Ano após ano, naquela trabalhosa vida de pregador e apóstolo, abandonava a Índia durante o verão e aventurava-se pelas cabanas e cidades além-Himalaia. Ali, sofrendo por Cristo, teve algumas das mais profundas experiências espirituais da sua vida. A Índia tinha missionários, igrejas, pastores nacionais, liberdade e pregação. O Tibete estava órfão. O sadu abriu-lhe a sua grande alma juvenil.
E Kotgar, a velha Estação Missionária, transformou-se em base de operações. Dali partia ele para o seu campo, escalando o trilho tênue do pinhal por onde, meses depois, regressava exausto e jubiloso. Mas foi em Sabatu que, enfermo e envelhecido, galgou pela última vez, sob olhos amigos, a via familiar, e desapareceu à sombra das velhas árvores.

Histórias da estrada

Regressando do Tibete passou por uma das experiências mais desagradáveis da sua vida.
A Igreja Indiana desenvolvia-se sob o bafejo de orientação perigosa; possuidores de desejo incontido de ajudar, os missionários facilitavam muito a vida aos jovens convertidos que revelassem inteligência e desejo de aprender, admitindo-os aos estudos nos seus colégios. A noção de sacrifício na carreira cristã obliterava-se. A cruz de que Cristo falava seria imposta por circunstâncias externas; animosidade do ambiente, perseguições. Mas nunca deveria ser voluntariamente procurada. Quem tivesse oportunidade de ser cristão e viver tranquilo, necessariamente devia fazê-lo. Gestos como o de Sundar Singh, que buscava tarefas difíceis e perigosas, e elegia como campo do seu apostolado o país mais perigoso do mundo, eram raríssimos na Igreja da Índia.
Tal atitude espiritual necessariamente repontaria com maior nitidez nos Seminários.
O dr Lefroy, superintendente de Lahore, nutria pelo sadu profunda amizade e não abandonara a esperança de enriquecer o ministério anglicano com a sua colaboração. Em 1909 convidou-o para cursar o Seminário de Lahore. Constrangido pela amizade, Sundar resolveu tentar.
Logo compreendeu o erro. Sentia-se isolado. Os colegas não o compreendiam e chegavam a aborrecê-lo. Faltava espírito de sacrifício, àqueles futuros ministros cristãos. Preparavam-se para teólogos e oradores, sairiam cheios de ambição, dispostos a conquistar rapidamente um lugar onde brilhassem. O seminário fazia mestres de teorias religiosas, mas não edificava grandes personalidades cristãs.
Entre os demais, um dos jovens salientou-se pela antipatia a Sundar. Certo dia o sadu, isolado à sombra de uma árvore, estava esquecido do mundo. Sorrateiramente o inimigo aproximou-se, pronto para uma boa peça. Os lábios do santarrão moviam-se. Estaria falando sozinho? Pareceu ao rapaz ouvir seu nome. Curioso, aplicou o ouvido. Sundar, orando, pedia a Deus que lhe perdoasse qualquer ofensa cometida contra aquele colega. Que Deus o ajudasse a conquistar a sua simpatia, para que ambos vivessem como amigos. A partir dessa data iniciou-se uma amizade sólida, só interrompida quando o sadu desapareceu.
Mas o constrangimento permanecia. Não se adaptava à carreira eclesiástica. Andrews, que frequentemente o visitava, tinha a impressão de que ele era uma ave engaiolada, saudosa da liberdade e dos voos amplos.
Mesmo o superintendente logo compreendeu que o seu amigo nunca seria bom ministro. Chegava o tempo de ele ser ordenado diácono. Antes do exame foi perguntar se após a ordenação teria licença para pregar em qualquer Igreja Cristã. “Não. Nem pregar, nem para comungar na Ceia do Senhor”.
Depois de examinar cuidadosamente o assunto, Sundar Singh renunciou uma vez mais, e para sempre, às oportunidades do ministério regular, e voltou à vida livre, deixando-se guiar e governar inteiramente pela Providência Divina.

Certa vez indo à aldeia, dois homens passaram depressa por ele, e desapareceram numa curva da estrada. Ao fazer a mesma curva viu um homem em pé, consternadíssimo. Aproximou-se e verificou que era um dos que haviam passado por ele. Apontava um vulto coberto, à beira do caminho. Erguendo a capa, o sadu viu uma face rígida de cadáver.
- Caiu morto de repente. Ai de mim! Nem uma moeda de cobre tenho, para enterrar o meu maior amigo! Santo Homem, socorre-me!
Adiante havia uma ponte e as moedas eram para pagar o pedágio. Tomou as moedas e entregou-as. Continuou o caminho, mas logo depois ouviu rumor de passos na estrada. Voltou-se e deu com o homem, ofegante, olhos esbugalhados de pavor.
- Sadu, o meu amigo morreu mesmo!
Não compreendeu bem. Morreu mesmo. Como?
E o outro pálido, explicou que era um velho truque com que costumava enganar os viajantes: cada vez um se fingia de morto e o outro pedia esmola. Pois desta vez, viu que o companheiro estava imóvel, sem vida. E acrescentou:
- Benditos sejam os deuses; não era a minha vez!
Estava certo de que o sadu era um grande santo; a divindade matara o seu companheiro por castigo. Pedia perdão. Não o amaldiçoasse, ali estavam as moedas...
O sadu expôs a mensagem evangélica.
- Santo Homem, quero ser teu discípulo.
- Mas como serás o meu discípulo, se eu próprio já o sou de Outro?
- Mas permite ao menos que eu te acompanhe, Santo Homem. Quero reformar a minha vida.
E assim o acompanhou algumas semanas. Depois Sundar encaminhou-o aos missionários de Garhwal, onde foi batizado.

Diante dele estendiam-se dois caminhos. Indeciso, tomou um qualquer. Dezessete quilômetros adiante viu uma aldeia. Interrogando um dos moradores, verificou que estava errado e regressou à encruzilhada. Antes de lá chegar viu que alguém seguia a mesma trilha, metros adiante. Era um hindu que lia absorto. Tão absorto que só deu pela sua presença, quando ele quase o alcançava. Escondeu sobressaltado o livrinho, curvou-se reverente e acelerou o passo para acompanhá-lo. Sundar começou a falar-lhe de Cristo e imediatamente ele retirou das dobras do vestido o NT, com um sorriso aberto. Estava exatamente lendo o livro de Cristo, quando o sadu o alcançou. Tinha pensado que era um Saniasi hindu, e por isso ocultara o volume. Mas havia ali coisas que não compreendia bem. Por exemplo... e passou a mencionar  suas dúvidas, que o sadu foi resolvendo com textos do Evangelho. Quando atingiram o cruzamento, o homem deu graças a Deus, por aquele homem, a fim de ajudá-lo.
“E então eu compreendi o motivo por que havia errado o caminho – comentou o sadu, anos depois – Cristo enviara-me para auxiliar aquela alma”.
No distrito de Toria atingiu uma aldeia onde o povo não quis recebê-lo. Era o sadu cristão, e não queriam nada com cristãos. Viu-se forçado a passar as noites numa caverna próxima. Comia frutos silvestres e vinha para a praça cantar. Inutilmente. Maltratavam-no. Ao entardecer, um dia, regressou desalentado. Nem uma alma se abriria para a mensagem do Evangelho. Chegou à caverna, estendeu a capa e dedicou-se à oração. Quando se deitou, já estava escuro. Exausto, adormeceu.  A madrugada despertou-o com a desagradável impressão de algo quente e mal cheiroso nas proximidades. Voltou-se. Uma grande pantera dormia a seu lado. Retirou-se precipitadamente e fugiu. Passou o dia meditando sobra a maravilha da Providência Divina, que o guardara durante o sono. “Desde então nunca uma fera me fez mal”.

Um dia saiu de Kotgar e dirigiu-se a Narcanda, aldeia próxima, situada na estrada Indostão-Tibete. Os trigais ondulavam, um grupo de camponeses segava diligentemente. Deixando a estrada, o sadu procurou-o e, enquanto eles trabalhavam, começou a falar a respeito de Cristo. Taciturnos, cabeças baixas, nada disseram. Afinal, um deles resmungou qualquer coisa sobre “não querer nada com cristãos”, e outro disse um desaforo a respeito da “religião de estrangeiros”. Como o sadu continuasse, o que primeiro que resmungara apanhou uma pedra e atingiu-lhe a cabeça, que começou a sagrar.
Calou-se e foi sentar-se junto à estrada, observando o trabalho. Logo depois o que o ferira sentiu insuportável dor de cabeça e teve de abandonar o trabalho. Sundar Singh, silenciosamente, levantou-se apanhou sua foice e continuou seu trabalho. Os demais ficaram pasmados. Quando a tarde caiu, um deles convidou-o a comer na sua casa. Todos se reuniram para ouvi-lo. No dia seguinte procuraram-no, mas ele desaparecera. Anos mais tarde um daqueles segadores narrou num jornal evangélico hindu esse incidente, graças ao qual se convertera.

Em Rishi Kesh, às margens do Ganges, um grupo de sadus aglomerava-se em certo ponto da praia, cercado de populares. No centro, um sadu mais moço, com um livro na mão, falava calmamente. Quem olhasse o rosto de cada ouvinte veria atenção em alguns, tolerância noutros e zombaria e indignação nos demais. Imperturbável, o pregador continuava. Inesperadamente um homem do povo abaixou-se, e atirou-lhe areia aos olhos. Houve indignação contra a brutalidade e um dos presentes, exaltado, agarrou o agressor e foi entregá-lo ao policial sik, que observava de longe. O policial o prendeu, e dirigia-se ao posto quando foi alcançado pelo Santo Homem. A água com que lavara os olhos ainda lhe corria pelo rosto. Pedia que deixasse em paz o seu ofensor. Não faria queixa contra ele. E voltou à praia para reiniciar a pregação. O policial pensou alguns segundos, indeciso. Afinal, se o próprio ofendido pedia a soltura do culpado, que mal havia nisso? E largou o agressor que, ressabiado, voltou ao grupo. Ouviu com atenção. Terminada a palestra, pediu licença ao sadu para acompanhá-lo. Durante vários meses foi seu companheiro dedicado e fiel.

Na índia as coisas espirituais dominam o homem por toda a vida.  O povo vive num mundo de deuses e semi-deuses que se encarnam em vacas, em crocodilos, em outros animais, ou vagueiam no espaço, quando não escolhem homens para habitação. De sorte que muitos incidentes que a nós pareciam sem importância, assumem, ali, proporções de luta de morte entre as forças das trevas e o poder de Cristo.
No carro em que viajava ia um indivíduo que se dizia mágico. Hipnotizou um dos passageiros, e os demais, ouviam as suas frioleiras como se fossem pérolas de sabedoria.
O sadu interpôs-se, para desmenti-lo, e o mago ameaçou dominá-lo. Sundar inclinou a cabeça e começou a orar, enquanto iniciava o trabalho. Durante meia hora labutou e afinal, suado e exausto, disse que nada podia fazer por causa do livrinho que trazia consigo. Calmamente Sundar Singh retirou o NT e colocou-o no banco. Outra tentativa falhada, nova explicação: havia ainda em poder do Santo Homem uma página do livrinho. De fato, havendo encontrado no caminho uma página caída do Evangelho, Sundar a guardara. Retirou a folha e colocou-a junto ao livro. Nova tentativa, novo fracasso. Era a capa de sadu que tornava impossível hipnotizá-lo. Sundar tirou a capa. Afinal, ofegante, o homem confessou que não conseguia hipnotizar aquele Santo Homem. Havia na sua pessoa uma força misteriosa, maior que a dele. E então o sadu explicou ao mago e aos demais que realmente tinha um poder invencível – não dele, mas de seu guru, que era Jesus Cristo. E, enquanto o comboio resfolegava nas encostas, contou-lhes alguns incidentes da maravilhosa vida do seu Guru.

No decurso das suas viagens afrontou muitas vezes as ordens que proibiam terminantemente a pregação de qualquer religião estrangeira no seu território. Entre esses estão o Butão, o Nepal e o minúsculo Siquim, todos na orla do Tibete.
Penetrando no Nepal, dirigiu-se a Ilom, perto da fronteira. Logo que iniciou a pregação na cidade, um dos naturais da terra advertiu-o, em voz baixa, de que seria melhor voltar para a Índia, em lugar de se expor à morte ali. Continuou, mas não por muito tempo. Poucas horas depois, quando pregava na rua, uma escolta prendeu-o e levou-o para a cadeia local, onde o atiraram para o meio de assassinos e ladrões profissionais. Contemplando os mal-encarados companheiros, Sundar encheu-se de piedade. Iniciou palestra com eles e logo o ouviram atentos. À noite um deles providenciou um canto onde ele dormisse em paz. O sadu abriu o NT e anotou, na primeira página: “Nepal, 7 de junho de 1914. A presença de Cristo transformou a minha prisão num céu abençoado: como não há de ser o próprio Céu?”.
No dia seguinte, a palestra com os criminosos continuou. Não demorou muito e um deles declarou que quando saísse dali nunca mais reincidiria nos velhos vícios. Seria cristão, como o Saduji. Os carcereiros, abismados, foram relatar aos oficiais o que se passava e veio ordem de retirar o sadu cristão da cadeia e levá-lo ao tronco, na praça. Mãos e pés presos, despido, passou ali o dia e a noite. Colocaram sanguessugas no seu corpo, para lhe absorverem lentamente a vida, num suplício diabólico. Até a morte conservou cicatrizes desse tormento. Em torno, uma multidão selvagem fugida das páginas da História Medieval gritava e insultava. Quando o dia seguinte raiou, vieram os coveiros. Pasmados, verificaram que o sadu cristão não só estava vivo, mas conservava no rosto uma expressão inalterada de calma que fazia pensar na mais tranquila das noites. “Não sei porque, mas tinha o coração tão cheio de alegria que não podia abster-me de cantar e pregar”. Soltaram-no, maravilhados. Fraco pela perda de sangue e pelo sofrimento, caiu inconsciente, ali o deixaram. Residiam ali cristãos da Missão Saniasi, os quais serviam a Deus ocultamente. Esses irmãos vieram buscá-lo, e cuidaram dele.
Nesses anos duros, mas abençoados, a vida espiritual do sadu se aprofundou. As longas horas de prece eram de êxtase e visão. Nos momentos de dor uma estranha alegria o dominava. Sofrer por Cristo era para ele uma felicidade, após as primeiras lutas em que chegara a duvidar de que Deus o guardasse.
Um místico cristocêntrico

Quando lia o Evangelho, seu rosto transfigurava-se.
“O propósito único dos evangelhos é nos dar a conhecer a Cristo. Cristo é meu Salvador. É minha vida. É tudo para mim no Céu e na Terra. Certa vez viajei por uma região arenosa, ficando cansado e sedento. Subi a uma colina e procurei água. A visão de um lago distante trouxe-me alegria e revigorou-me a esperança. Longo tempo caminhei na sua direção, mas nunca o atingi. Mais tarde percebi que havia sido miragem – apenas ilusão de água, resultante da refração dos raios solares. Não existia ali água alguma. Assim também caminhei em minha vida, à procura da Água Viva. As coisas do mundo: riquezas, posição, honra e luxo, pareciam um lago e bebendo essa água pensei que a sede espiritual cessaria. Mas não encontrei uma gota que me saciasse. Morria de sede. Quando meus olhos se abriram, vi os rios de Água e senti-me satisfeito. A sede desapareceu. Desde então, sempre tenho bebido da Água da Vida e nunca mais senti sede no deserto deste mundo. O meu coração está cheio de gratidão.
“Sua presença me dá paz que sobrepassa todo o entendimento, sejam quais forem as circunstâncias em que me encontre. Na perseguição encontrei paz, alegria, felicidade. Nada pode tirar-me a alegria que encontrei no meu Salvador. Em casa Ele está comigo. Na prisão acompanha-me. Por Ele a prisão já foi transformada em Céu e a cruz em fonte de bênção. Segui-Lo e carregar a Sua cruz é tão doce e precioso. Como o mundo não pode expressar a doçura do mel, assim o pecador não salvo não pode expressar a doçura da Sua presença no coração. Somente a linguagem celestial poderia dar expressão adequada a essa paz celestial. Mesmo que eu me encontre em perigo, em tentação, rodeado de pecado e tristeza, por Ele, que me deu a Sua vida, sou salvo. Embora o mar seja salgado e os peixes vivam sempre nas suas águas, não ficam também salgados, porque vivem. Assim é com os que nEle recebem Vida – embora vivam no mundo, não são do mundo. Não apenas aqui, mas também no Céu nós nos encontraremos a nós mesmos nEle.
“Não ambiciono riqueza, posição ou honra. Nem o próprio Céu desejo. Mas necessito ‘dEle’, pois transformou meu coração em Céu. Seu Amor infinito expulsou o amor de outras coisas. Há cristãos que não conseguem compreender bem a Sua presença preciosa e vitalizadora, porque para eles Cristo vive no cérebro ou na Bíblia, e não no coração. Só quando lhe entrega o coração é que o homem o encontra. O coração é o Trono do Rei dos reis. A capital do céu é a alma onde esse Rei reina”.

Percebe-se bem que para o sadu o domínio de Cristo não era apenas questão de opinião ou de desejo, mas um modo de ser, uma segunda natureza – um temperamento.
Foi esse domínio que o levou a orientar a vida para um rumo que nunca teria escolhido no sikismo: vida ativa de apóstolo e pregador. Concentrado, tímido e avesso a chamar a atenção, desde a infância criado no recesso do lar e no regaço da mãe, o sadu preferiria mil vezes a vida tranquila de ermita, encafuado numa gruta do Himalaia, em constante comunhão com Deus, e livre da perturbação e do tumulto dos homens. Mas compreendia que somente aqui na Terra – como ele próprio disse mais de uma vez – teria oportunidade de sofrer por Cristo e de evangelizar o seu semelhante. Por isso abandonou a vida a qual o chamava sua formação psicológica, transformando-se em pregador itinerante.
“Tenho dito aos sadus indianos: vocês são sadus porque desejam torturar-se a si próprios. Eu o sou para servir. Não me torturo, embora já tenha sido torturado. Renunciei ao mundo. Quero estar no mundo, mas não quero o mundo.
“O Cristo não é apenas figura histórica, mas uma pessoa que vive e age nos nossos dias. Não vive apenas na Bíblia, mas também no nosso coração”.
Quando conversou com dois escritores ingleses afirmou:
“Antes de empreender o jejum de quarenta dias eu era frequentemente assaltado por tentações – quando escreverem o livro devem falar também de minhas fraquezas – especialmente quando estava cansado, costumava aborrecer-me ao me procurarem para conversar e fazer perguntas. Até hoje tenho essa dificuldade, mas de maneira alguma como antes do jejum. Amigos têm-me realmente dito que nunca observaram isto – mas mesmo assim é fraqueza que em nada agrada ter. Tem-me trazido muito aborrecimento e dúvida, mas foi-me talvez dada para me fazer humilde, como o espinho na carne mencionado por Paulo – que, as vezes, penso ser a mesma coisa. Ou talvez seja resultado de ainda viver no corpo, mas gostaria que não fosse assim. Outras tentações me assaltavam, antes do jejum. Quando padecia fome e sede, às vezes eu queixava-me e perguntava por que motivo o Senhor não me socorria. Ele me dissera que não levasse dinheiro comigo. Se tivesse o dinheiro, facilmente compraria o que necessitava. Mas depois do jejum, quando atacado pela privação, digo: ‘É vontade do meu Pai celestial, talvez eu tenha feito alguma coisa para merecer’. Também, antes do jejum, às vezes sentia-me tentado a abandonar a vida de sadu com suas dificuldades e voltar para o luxo da casa de meu pai, casar-me e viver no conforto. Não poderia eu ser bom crente e viver em comunhão com Deus lá também? Mas nessa ocasião compreendi que, embora para outros não fosse pecado viver assim no conforto, e ter dinheiro e um lar, a minha vocação era diferente; e o dom do êxtase que me foi concedido é melhor que qualquer lar. Nela encontro alegrias maravilhosas que transcendem as demais. O meu verdadeiro casamento foi com Cristo. Não digo que para os outros o casamento seja mau. Mas se já estou ligado a Cristo, como poderia casar-me com outrem?
“Tudo tem beneficiado a minha vida espiritual – fome e sede tanto como as demais coisas”.
Note-se que ele sempre considerou esse jejum um caso individual. Não julgava aconselhável que todos os cristãos fizessem o mesmo. Fora uma crise na sua vida espiritual – uma crise da qual saiu vitorioso, amadurecido e melhor preparado para os anos duríssimos que o aguardavam no Tibete.

O sul

Quando foi convidado para pregar em Madrasta, havia treze anos que se consagrara à vida de sadu cristão. Completamente embebido na meditação e no trabalho que escolhera, não lhe sobrara tempo nenhum nem interesse para verificar até que ponto a sua pessoa tinha impressionado a Igreja. Desceu do Punjab inconsciente daquilo que o aguardava.
Os cristãos do Sul já tinham notícias da suas, trazidas por missionários que o estimavam, por pastores nacionais e por cristãos seus conhecidos. Foi recebido com entusiasmo e após as primeiras conferências e consultas, o seu prestígio cresceu vertiginosamente. Os convites surgiam em escala crescente e o que ele imaginava ser rápida viagem para uma série de conferências transformou-se em trabalho exaustivo, de várias semanas consecutivas.
Trabalhador incansável, geralmente pegava duas vezes por dia: de manhã e à noite. No intervalo das pregações recebia visitas – dezenas de pessoas que se acotovelaram nos corredores do hotel, desejosas de expor problemas e pedir orações. Chegou a atender mais de cem pessoas por dia. Os auditórios cresciam sempre. Nos templos não havia lugar, e assentavam até na plataforma do púlpito. Depois o povo começou a chegar mais cedo e afinal verificou-se que vinham às três horas da tarde, para a reunião das seis. Terminada a conferência da noite, tomava o comboio, o barco, o carro e dirigia-se a outro ponto, para atender a novo convite. Em cidades onde havia escolas missionárias, fazia palestras especiais para os alunos, além das conferências públicas.
Embora viajasse sem uma moeda no bolso, e não pertencesse a nenhuma organização eclesiástica, jamais lhe faltaram recursos.
Em Travancore esteve na reunião anual de estudo bíblico, que geralmente congregava cerca de vinte mil fiéis. Quando se ergueu para falar, voltaram-se para a plataforma 32000 pessoas – um mar de cabeças atentas e respeitosas.
Em maio – corria o ano de 1918 – passou a Colombo, onde permaneceu durante seis semanas. Os jornais noticiaram amplamente seu trabalho.
De volta ao continente, a influenza apanhou-o em Calcutá. “Com a doença, Deus me deu descanso e tempo para orar, o que não fora possível fazer no Sul”. Curado, foi a Bolpur, em
visita a Rabindranath Tagore, com quem passou alguns dias.
Mas não podia demorar-se; esperavam-no na Birmânia. Visitou todas as grandes cidades desse país. Em Penang deu-se um fato único: quando terminou uma conferência especialmente dirigida aos siks, um dos presentes levantou-se e convidou-o a pregar na Gurdvara local. Nessa mesma cidade, após ouvi-lo, o chefe da policia deu tolerância de ponto a todos os subordinados para que pudessem escutar a mensagem também.
Do Estreito subiu à China, dali passou ao Japão.
Até aqui o sadu era uma figura singular bem conhecida nas estradas do Norte, nas aldeias da fronteira e no restrito círculo cristão do Punjab, onde a sua pessoa era grandemente estimada. Repentina e inesperadamente adquiria projeção mundial e o seu vulto começava a chamar a atenção curiosa da Igreja Ocidental.
A personalidade formada naqueles treze anos silenciosos de serviço intenso falava à igreja. E a Igreja imediatamente compreendeu que diante dela estava um homem de Deus. Um homem de Deus com a mensagem de Deus.

Homem em quem a imaginação predominava, partia sempre da ilustração para o enunciado da verdade, dando-a como prova desde o momento em que estivesse convenientemente exemplificada. Quem hoje lê as suas parábolas compreende imediatamente estar em contato com um homem fino e sensível poeta.
Não costumava escrever sermões. Orava longamente e durante a oração vinham-lhe à mente o texto, o assunto, o desenvolvimento. “Não me sento para escrever os meus sermões. Quando oro, recebo o texto, o assunto, as ilustrações. O pregador deve receber a mensagem do próprio Deus. Se for buscá-la em livros não estará pregando o seu próprio Evangelho: pregará o Evangelho alheio. Senta-se em ovos de outrem e choca-os, pensando que são seus...”.
Nem sempre levava para o púlpito um assunto determinado, mas nunca pregava sem longa meditação e sem ter em mente um grupo de ideias para o momento, dentre as quais escolheria aquelas que lhe parecessem mais adequadas ao auditório, cuja reação determinava em boa parte o rumo que dava à prédica.
O contato íntimo e contínuo com a natureza fornecia-lhe figuras e parábolas que eram a principal característica das suas palestras, juntamente como os vários e sempre interessantes episódios da sua vida errante.

Nesse tempo não possuía grande cultura. Mas os livros que se dedicara, como “A imitação de Cristo” e “Vida de S. Francisco de Assis”, haviam sido bem aproveitados. A Bíblia era-lhe familiar e também os livros religiosos da Índia. Como todo o seu interesse era religioso, não sentia necessidade de ampliar o círculo das suas leituras, embora aconselhasse os jovens a fazerem cursos e a cultivarem a mente. Contudo, se entendermos por cultura, não o acúmulo de noções, mas a capacidade de observar o mundo, compreender o homem, ter perante o universo atitude definida e certa, resultante de interpretação pessoal da realidade, então sadu já era homem culto. Palestrou com muitos sábios. Homens de cultura filosófica, científica ou artística ouviram-no pregar. Na Holanda reuniram-se certa vez duzentos homens; a elite cultural de Haia. E nunca qualquer destes homens saiu da sua presença com a impressão de que lhe falara um ignorante.
Quando regressou às montanhas amadas do Punjab, o sadu estava exausto. Aguardava-o, porém, notícia estimulante: Sher Singh convertera-se. Estranhos apertos de coração sentiu, quando o pai o estreitou nos braços.
Tibete, 1919

“Apesar de ter sido a viagem repleta de empecilhos, foi a mais fácil que fiz. Em alguns pontos os lamas receberam-nos bem, deram-nos chá salgado com Sampa. Certa vez perceberam que o meu cabelo, muito crescido, incomodava, e, como não tivessem tesoura, quatro lamas reuniram-se, apanharam o instrumento com que costumavam tosquiar as ovelhas e com ele mo cortaram.
“De Kiwar dirigimo-nos a Chikan e dali a Skite, Hause, Sasar e Pangre, e tivemos oportunidades felizes para pregar, mas os povoados eram muitos distantes e o banditismo comum assustava-nos. Um bom amigo disse-nos: ‘O senhor não pode viajar assim, sem espingarda ou faca, por aqui; muita gente já foi assassinada nesse caminho’. Respondi: Leo apenas a minha roupa e a Bíblia – que é a espada de Deus – e vai comigo o Senhor da Vida, o qual me protegerá. Graças a Deus atravessamos aqueles lugares terríficos, pregando entre assassinos sem incidente algum. Vi homens a quem bandidos e ladrões haviam cortado as pernas ou os braços; mas Deus com seu grande poder conduziu-nos em segurança.
“Dentre os eremitas tibetanos muitos têm uma vida extraordinária. Trancam-se num compartimento trevoso. Há os que fazem isso durante alguns meses; outros, por anos; e ainda outros durante toda a vida. Trancam-se tão cuidadosamente que nunca veem o sol, nem saem, mas ali ficam, sentados na escuridão, girando a roda de rezas, como se estivessem numa sepultura. Há, dando para o exterior, uma janelinha ou melhor, um buraco por onde o povo passa o alimento. Tentei várias vezes entabular conversação com eles, mas nunca consegui; o mais que pude fazer foi atirar pela abertura porções da Palavra de Deus, na esperança de que as lessem, se algum dia se desemparedassem.
“Aprendi com eles uma lição: se sofrem tanto pensando que vão atingir o Nirvana onde não há vida futura, nem felicidade celestial, nem qualquer esperança – na crença de que a salvação consiste no aniquilamento dos desejos, do espírito e da vida – com quanto maior entusiasmo não devemos nós carregar a cruz de Cristo, lembrando-nos da felicidade da vida eterna e da grandeza do trabalho que Ele realizu por nós, o qual nos dá e dará todas as coisas?”
A Igreja do Ocidente
Muitos motivos atuavam na mente do sadu, tendes a levá-lo ao Ocidente.
Sempre desejara conhecer a Palestina. Palmilhar as estradas por onde Cristo andou chegou a ser para aquele imitador literal de Cristo quase uma obsessão. Amigos afirmaram-lhe que seria fácil obter passaporte para a Inglaterra e dali para a Palestina.
Além disso, dizia-se que a Igreja do Ocidente, renegara a Cristo prostrando-se ante Mamom, e ele desejava verificar por si mesmo essa realidade. Era necessário também que o Oriente cristão fizesse ouvir a voz para contrabalançar o efeito do ensino dos swamis que espalhavam doutrinas teosóficas nos países ocidentais, com facilidade resultante em parte do encanto que o Oriente sempre conservou aos nossos olhos de gente prática ou pretensamente prática.
Já havia feito referência a esse projeto de viagem com amigos; mas as referências tinham sido muito vagas e imprecisas. Um dia, quando orava, veio-lhe à consciência que devia estender a sua mensagem ao Ocidente. O velho Sher Singh informado do desejo do filho, com prazer retirou dos seus cofres o dinheiro necessário para a viagem. E assim, quase repentinamente, o sadu Sundar Singh partiu para Bombaim, em janeiro de 1920. Os amigos mal tiveram tempo de pensar num programa de trabalhos ou em apresentações. As cartas que enviaram à Inglaterra saíram depois do barco que o levava.
Tomou rumo sem dinheiro no bolso, sem programa definido, com dois ou três antigos missionários a quem conhecera na Índia como únicos amigos na Inglaterra, sem meios de ganhar a vida. Tão despreocupado do próprio sustento como as aves do céu.
Essa viagem fez época no mundo ocidental. Os grandes templos da Inglaterra, da Escócia, da Irlanda, dos Estados Unidos e da Austrália foram pequenos para conter as multidões que o procuravam; houve ocasião em que teve de repetir o sermão ante nova massa humana, depois que o primeiro auditório se retirara. Os jornais das maiores cidades do mundo consagraram-lhe as melhores páginas, noticiaram o seu trabalho e pediram-lhe opiniões em entrevistas disputadas. Os grandes pregadores do Ocidente cederam-lhe os seus púlpitos e apresentaram-lhe ao povo.
Contudo, esse homem tinha apenas 31 anos de idade.
Havia em Sundar qualidades que obrigatoriamente encantariam os anglo-saxões: era um homem bravo, sadio, simpático e idealista. Seu vulto atraía imediatamente. Um homem que havia sofrido e estava pronto a sofrer ainda por Cristo, obrigatoriamente conquistaria o coração dos descendentes dos Pais Peregrinos e dos Covenanters.
Era hospede gentil e amável, acomodado a tudo, de palestra viva e simples, temperada de bom humor.
Em Birmingham visitou uma fábrica de chocolate; perguntaram-lhe se se divertira.
- Diverti-me, mais creio que as moças e os homens de lá se divertiram muito mais, só de me olharem.
- E por que não cobrou o espetáculo?
- Cobrei. Mas pagaram com chocolate e fiquei de tal maneira que nem jantar pude...
Noutra ocasião uma senhora ingenuamente perguntou-lhe se nos caminhos de ferro indiano não havia muito perigo de serpentes.
- Não, minha senhora. As serpentes da Índia não viajam; nem de primeira nem de segunda classe...
E deu gostosa gargalhada, sendo acompanhado pelos demais e pela própria interlocutora.
Dividido em grupos eclesiásticos que se guerreiam surda ou abertamente, o cristianismo ocidental nunca perdeu, contudo, a sede de unidade cristã – daquela unidade que cumpre a prece de Cristo e que essencialmente existe, visto que a Igreja é o Corpo de Cristo. A expressão orgânica e organizada dessa unidade tem sido prejudicada por vários fatores. Por isso mesmo a alma cristã recebeu alvoroçada a mensagem de um cristão que, respeitando embora a autoridade eclesiástica, não conhecia denominações cristãs, mas a Igreja de Cristo, e se sentia tão à vontade entre batistas como entre congregacionais, anglicanos, presbiterianos.
Verificou-se, também, num cristianismo em que se ensinava a resignação ao sofrimento por amor de Cristo ou em que se ajeitavam as palavras de Cristo a respeito da cruz para adaptá-las a uma vida mole de religiosidade barata, que o sadu não se conformava com o sofrimento, propriamente: tinha prazer nele; isto soava como paradoxo aos ouvidos de uma civilização dirigida em todos os seus pormenores para a eliminação da dor e de qualquer padecimento. Ali estava um homem que caminhava conscientemente para eles – porque os suportaria no serviço de Cristo; não se tratava da morbidez medieval, mas de um sofrimento produtivo.

O Ocidente também o impressionou; observou, desde a Inglaterra, que a nossa civilização é uma civilização dividida, que tem nome de cristã, embora seja em essência materialista. Abriga, porém, no seu seio vigorosa comunidade cristã. A vida no lar evangélico impressionou-o fortemente. Percebeu que no seio da família desaparecia o bulício da rua, sendo o lar dominado por uma paz tanto mais comovente quanto maior era o contraste com o mundo exterior; mas apesar disso sentiu que a Igreja no Ocidente não dedica à meditação e à comunhão com Deus o tempo necessário. Não nos esqueçamos de que para ele longa e ininterrupta meditação era tão vital como o respirar; quando foi obrigado a passar várias semanas  pregando sem cessar e o tempo lhe faltou para a comunhão com Deus, sentiu-se asfixiado e teve de cancelar trabalhos em perspectiva, a fim de passar alguns dias na presença de Deus.
A 25 de setembro desembarcou em Bombaim. Já não era apenas um entre centenas de sadus das estradas do Norte. Era uma personalidade mundial; seu horizonte geográfico expandira-se. Tinha diante de si um ministério “amplo”.
Após algumas semanas de descanso, em que escreveu sermões e meditações, tomou a vereda da montanha, cruzou os passos sempre nevados que a ventania fustiga sem cessar e penetrou desconhecido no Tibete.

Diário do Tibete – 1921

“Em princípio de maio, saímos de Kotgar rumo ao Tibete. Sempre pregando; assim chegamos a Kyeland, uma das três estações missionárias das imediações.
“Há ali perto cerca de quarenta cristãos ladakhins e tibetanos; estão a 320 quilômetros de Simla, e, desde a guerra, não têm com eles missionário europeu algum. Tivemos boa reunião, com cerca de trinta pessoas.
“Nesse lugar foi cortada há tempos uma árvore sob a qual se ofereciam sacrifícios humanos. Eis a maneira como isso se deu: Morava ali uma viúva cujo único filho tinha cerca de oito anos. Chegou a vez de sacrificá-lo e o lama – sacerdote budista – ouvindo-a chorar, disse: ‘Não chore. Vou entregar-me para ser sacrificado em lugar de seu filho’. No dia marcado para a cerimônia o povo encontrou-o sob a árvore. Voltando-se para eles, disse: ‘Não me toquem. Se seus deuses são verdadeiros, que venham eles mesmos e me despedacem’. Esperaram muito tempo e, como nada acontecia, tanto o lama como o povo perderam a fé nos sacrifícios humanos.
“Entrei no Tibete por outro caminho, acompanhado de duas pessoas, uma das quais tibetana e cristã. Tivemos boas oportunidades de pregar o Evangelho no Tibete Ocidental e distribuímos à farta trechos das Escrituras. Visitamos trinta e sete cidades e aldeias, inclusive Chuprang, Gnanama e Rukhsahak. Embora alguns dos lamas se opusessem, o povo sempre nos ouviu de boa mente. Visitamos também mosteiros e grutas, e os monges e eremitas prometeram ler as Escrituras que lhe demos, embora não gostassem que nos demorássemos com eles mais de quinze minutos.
“Não é seguro nem fácil viajar no Tibete. Faltam estradas e a população é muito esparsa. Andam-se 90 a 100 quilômetros sem se encontrar uma aldeia; as únicas pessoas que vivem nesse deserto são ciganos que dormem em tendas e cavernas e ganham a vida roubando os viajantes. Encontram-se também lobos e iaques selvagens, que já tiraram a vida de muitos. Certa vez eu adiantei-me aos companheiros. Quando o percebi, um iaque selvagem galopava sobre mim. Infelizmente não havia ali árvore para onde pudesse subir, apenas uma grande rocha; corri e fui sentar-me no alto. A fera rugia em torno, mas não podia alcançar-me. Dei graças a Deus por esse lugar seguro. E pensando na Rocha dos Séculos, o meu coração encheu-se de maravilhosa paz. Quando meus amigos viram o iaque, começaram a gritar e, ouvindo-os, uns ciganos que acampavam nas proximidades vieram espantar o animal a pedradas. Resolvemos passar a noite com eles, apesar do perigo – porque o homem, quando mau, é pior do que as feras. Tiraram-nos à força aquilo que levávamos, mas graças a Deus não nos mataram. Eu disse-lhes: “Vocês tiraram-nos tudo; mas ainda temos lago a dar-lhes” – e comecei a pregar. Ouviram atentamente e, operando o Espírito Santo nos seus corações, muito se comoveram. Pediram-me que lhes perdoasse o roubo e devolveram tudo que nos haviam tirado.
“Enquanto trabalhava pelas aldeias, viajantes contaram-me que um crente de nome T. Wangdi, a quem eu batizara tempos atrás, tinha morrido e, que, depois da sua morte, os demais cristãos do lugar haviam-se espalhado. Notícia triste – mas seja feita a Vontade de Deus. Creio que em tempo oportuno Ele levantará cristãos fiéis, a fim de trazerem esta terra negra e encarcerada aos pés de Cristo. Peço a Deus que faça frutificar, com a salvação de muitos, o trabalho feito para sua glória. Amém!”.

De volta ao Ocidente

Sundar Singh foi homem apaixonado por Cristo – homem que, em lugar de perder o primeiro amor, sentia aumentar a paixão espiritual por seu Redentor à medida que corriam os anos. Por isso nunca o abandonou o desejo de percorrer na Palestina.
Na primeira viagem ao Ocidente esse desejo fora importante para impulsioná-lo, mas ficara insatisfeito. Em 1922 os convites para voltar aos países europeus onde já estivera e a outros que não conhecia ainda, avivaram a esperança de conseguir passaporte para a Terra Santa. Desceu a Bombaim e afinal recebeu o passaporte desejado. Sher Singh novamente cobriu as despesas de passagem e o sadu, após alguns dias passados em companhia de Gandhi, que o convidara, embarcou para o Egito, de onde seguiria para Canaã.
Surgiu, afinal, aos seus olhos o país desejado.
Multidões árabes dos infectos bazares de Jerusalém; caravanas acampadas nas praças; soldados coloniais ingleses suarentos e vermelhos; velhas locomotivas resfolegantes – coisa alguma da Palestina moderna feriu a retina do sadu. Andou por aquelas terras embebido na vida e nos passos de Cristo. E as horas de oração passadas no Monte das Oliveiras e no Getsêmani foram, de acordo com as suas palavras, de grande influência na sua vida interior, reforçando mais a consciência da presença de Cristo em sua vida.
Esses dias de recolhimento eram necessários para a longa campanha que tinha pela frente.
Quando atingiu a Dinamarca, estava exausto. E sempre o povo se acotovelava, sedento do ouvi-lo, cobrindo praças, subindo árvores, aos telhados das casas, como uma nuvem de gafanhotos. Da Dinamarca passou à Holanda.
Sua resistência física e nervosa estava no fim; o método fora o mesmo de sempre: uma conferência por dia no mínimo e às vezes duas ou três; poucas coisas acarretaram tão grande tensão nervosa como pregar a multidões desconhecidas que manifestaram sede de ouvir. Além disso, a garganta do sadu não resistia mais.
Por essa razão, na Inglaterra, só cumpriu os compromissos anteriormente assumidos.
A 28 de julho embarcou à Índia. Após algumas semanas de tranquilidade nas montanhas, passou a atender a convites para convenções e congressos evangélicos nas grandes cidades do Norte: Deli, Ambala, Ludiana, Alaabad, Benares, Montgomery, Lahor...
Depois voltou às aldeias e à vida errante de sadu cristão.

O desejo de partir

Em abril de 1923 o sadu penetrou uma vez mais em Rampur. Cruzou as ruas poeirentas, deixou para trás a Gurdvara e o bazar ruidoso e apontado por aldeões que o conheciam, entrou na velha mansão da família.
Notou pela reação de seus irmãos que o velho sardar tinha os dias contados. Quando regressou aos montes Simla, onde residia na casa de Sher Singh, já estava consolado da perda certa.
É que ele também se inclinara rapidamente para a sepultura e a separação seria breve. O coração traía-o; às vezes tinha vertigens. Dores estranhas o feriam, uma ou outra vez, e o corpo já não tolerava as distâncias da Grande Estrada. Estava velho aos 34 anos.
Impedido de viajar resolveu condensar em livros a mensagem, que assim percorreria o mundo. Trabalhando intensamente durante 12 dias escreveu em urlu: “Realidade e Religião”. É um pequeno volume de meditações escritas por um pregador sem nenhum método de escrita, por isso, embora vigorosos e sinceros, os pensamentos tumultuam.
Tentou novamente pregar, no ano seguinte; atendeu a convenções, fez séries de conferências.
Mas um dia a vertigem o acometeu e caiu no púlpito, ante o auditório consternado. Cólicas insistentes maltratavam-lhe as entranhas. Pensava ele que fosse dos pulmões, embora os amigos afirmassem que o seu mal estava no estômago. De qualquer forma, um abutre desapiedado roia-lhe as vísceras.
Sher Singh morreu em abril desse ano e legou-lhe a casa onde morava. Aguardaria a morte ali?
Desejava morrer no Tibete. Seus ossos sentiam saudades da neve que fustiga os viajantes junto aos passos do Norte. Tentou a viagem, um pouco depois de morto o pai.
E em junho escreveu a um amigo: “Meus pulmões não me permitiram cruzar as montanhas. Tive de voltar”.
Regressava gasto e velho. O vigor antigo desertara totalmente e apenas os olhos, profundos e ardentes, atestavam que a vida espiritual não desmaiara também. Todavia, mesmo pelos olhos passava às vezes uma nuvem de misteriosa tristeza.
Iniciou uma viagem pelas aldeias próximas de Sabatu; surgiu-lhe uma úlcera na vista, e teve de voltar. Era como se uma brasa ardesse no globo ocular. Amigos levaram-no ao especialista que o operou. Inutilmente: perdeu aquela vista.
Desde então consagrou-se quase que exclusivamente ao estudo e à meditação. Estudou obras de divulgação científica e de psicologia.
Escreveu outros livros. Nota-se nos últimos a influência da leitura intensiva – não propriamente sobra as suas ideias, que já eram lúcidas e profundas, mas sobre o método literário.
Sua correspondência era grande, sendo-lhe dirigidas cartas dos quatro cantos do mundo.
Em abril de 1920 tentou novamente transpor a cordilheira, para pregar no Tibete. Além de Hardvar, mãos compassivas ergueram-se da estrada onde seu corpo jazia inerte e o levaram de volta a Rishi-Kesh. O sangue que vomitara formava na estrada uma poça sinistra.
Passava agora os dias no quarto, sentado, orando ou escrevendo. Às vezes caía em êxtase e todas as dores se apagavam ante a visão gloriosa.
Em frente estava a janela aberta para o Himalaia. Na primavera, quando se abria a rota para o Tibete, não se conteve.
A 13 de abril de 1929, o sr. Watson, superintendente do Leprosário de Sabatu, surpreendeu-se com a sua visita. Estava arquejante, da breve caminhada. Anunciou o propósito de atingir o Tibete, pela “Estrada do Peregrino”. Resolvera ir. Poderia o irmão Watson cuidar da sua correspondência dando respostas às cartas urgentes? Apenas uma precaução natural em quem corre riscos. Sim, sabia que voltaria.
Watson acompanhou-o até a porta, seguido de Sanu Lal, pregador do leprosário. Estreitou-lhe a mão, pesaroso, e permaneceu na soleira, contemplando distraidamente os dois cristãos hindus que se afastavam na estrada de Kalka.
Meia hora depois Sanu Lal regressou: o sadu prosseguira para a estação, onde embarcaria com destino a Rish-Kesh. Ali tomaria a “Estrada do Peregrino”, em companhia de mercadores tibetanos com quem anteriormente se entendera por carta.
---
Foi Watson o ultimo cristão europeu que viu sadu Sundar Singh. Por mais que o buscassem, desapareceu sem deixar de si vestígio algum.


Quem procura, encontra e se regozija
Denise Gaspar
A Palavra fala por si mesma. Não são pregações, doutrinas nem ensinos ou quaisquer outras coisas. Jesus é o Verbo e o Espírito Santo é Quem nos convence da Veracidade da Palavra. É incrivelmente maravilhoso o testemunho de homens conhecendo a Cristo diretamente pela Palavra. Sem testemunhos, sem falação, sem falsas facilitações. Eles, de coração quebrantado, sedentos... e a Palavra, Jesus.
E, existe outro jeito de conhecê-Lo???
O Senhor não rejeita um coração que O busque com sinceridade e inteireza. Jesus tem prazer em Se revelar revelando o Pai. Todos os mistérios de Deus estão ocultos em Cristo. Por isso Ele veio, morreu e ressuscitou. Foi para nos revelar o Caráter do Pai que até então os homens não haviam percebido pelos mandamentos, pelas alianças feitas com Seus servos e com Seu povo. Seu Caráter não foi reconhecido pela manifestação de Sua Bondade, Longanimidade, Justiça e Amor. Então, Jesus veio e disse claramente: Quem vê a Mim, vê ao Pai; Quem crê em Mim crê no Pai; Quem faz a Minha Vontade está fazendo a do Pai; Quem está em Mim, está no Pai.

Sundar Singh um menino nascido na Índia, cujas tradições e cultura não falam de Jesus, nem mesmo do falso Jesus, esse menino “desejava ardentemente, como criança recém-nascida, o genuíno leite espiritual, para que, por Ele, (a Palavra), lhe fosse dado crescimento para a salvação”. Sundar sabia que havia um Caminho, ele o desejava e não descansou em procurá-lo e não fechou seu coração ao encontrá-lo. O Caminho não era o que ele pensava, nem o que conhecia, mas a sinceridade de seu coração fê-lo reconhecer e render-se a Jesus. E não cessou sua caminhada só porque encontrou Jesus. O encontro foi apenas o início da jornada. Ele queria conhecê-Lo mais e prosseguir em conhecê-Lo, ter intimidade, desfrutar de Sua Presença.
Ele entendia bem a dificuldade da maioria dos cristãos:
“Há cristãos que não conseguem compreender bem a Sua presença preciosa e vitalizadora, porque para eles Cristo vive no cérebro ou na Bíblia, e não no coração. Só quando Lhe entrega o coração é que o homem O encontra. O coração é o Trono do Rei dos reis. A capital do céu é a alma onde esse Rei reina”.

Como diz o autor da biografia: “A direção de Deus na vida humana evidencia-se a cada momento, principalmente quando nos entregamos à orientação divina. Por isso mesmo, Sundar aprendeu a atribuir tudo a Deus, que o guardava, alimentava, abrigava e levava a lugares onde a sua presença era necessária”.
Conhecer Jesus, o Senhor Palavra, reconhecê-Lo Senhor de senhores, entregar-se e render-se ao Seu Senhorio, muda radicalmente a vida de uma pessoa. Tudo se faz novo; a natureza antiga morre, nasce um filho de Deus. Comprado e lavado pelo Sangue do Altíssimo. Está selada a Nova Aliança sobre sua vida.
Assim sendo, tudo o que importa é a Palavra. Caem por terra doutrinas, teologias, crenças, costumes... Daí Sundar Singh, jovenzinho ainda, questionar a europeização e a institucionalização da fé. Postura e entendimento em comum com todos os homens que vimos até aqui nessa série: Moddy, Kaboo, e Nee. Todos os que experimentaram a intimidade com o Senhor e por isso marcaram a história do cristianismo tiveram essa postura. Não é uma posição de rebeldia, nem uma tentativa de criar novas regras. Sempre digo ao meu irmão que Jesus é o dono da bola, é Ele quem estipula as regras do jogo. E esses homens entenderam isso. E se renderam às Suas regras. Por isso rejeitaram as regras, os formalismos e religiosidades humanas. Não era pessoal contra essa ou aquela corrente. É pessoal com Jesus, em conformidade com a Vontade de Deus.
Sundar ‘não entendia’ o motivo pelo qual os hindus que se convertiam tinham que se vestir, falar, cantar... viver como se ingleses fossem. Não entendia por que não havia respeito com a cultura e os valores hindus naquilo em que não agride nem desacata a Verdade de Cristo. Por que era necessário subjugar a cultura como se essa estivesse se submetendo a uma dominante, superior e intermediária entre eles e Deus?
Ele não entendia e nem eu tão pouco.
Por isso, Deus o levou, assim como fez com Moody, Kaboo e Nee, a vários lugares onde o cristianismo já estava cauterizado por doutrinas. Querendo mexer e sacudir corações. Ou como chamamos: avivar a fé e o amor nos corações. Quem era Sundar Singh? De onde vinha? Como se trajava? Qual eram suas origens e ‘pedigree’? Que choque!!! Deus usa o que não é para desbancar os que pensam ser. Deus usa o que não é para envergonhar aqueles que pensam que são pela sua fixidez e pelas próprias vaidades.

Deus cura uma criança através de Sundar, então ele percebe que, pela cultura de seu país, isso faria dele um curandeiro. Seria um deus habitando entre os homens e a idolatria o cercaria, não haveria como anunciar a Cristo. Ninguém o procuraria para ouvir a Palavra, o procurariam pelos milagres. Será que só na Índia do início do século passado corria-se esse risco? E muitos se perdem, perdem o foco de seu chamado, do propósito de Deus para as vidas.
Por isso, diante do milagre e da sua repercussão ele afirmou: “Percebi que, embora eu repetisse que quem curara fora Cristo, o povo começava a considerar-me um milagreiro; concluí que não devia fazer isso novamente porque encorajaria a superstição e desviaria a atenção do Evangelho, que eu pregava”.
Em outra oportunidade:
“Não mereço abençoar alguém com estas mãos que já despedaçaram as Escrituras. As mãos de Cristo é que abençoam”.
Todos sabemos a importância da cura. Quem gosta de estar doente? Sabemos como Deus tem prazer em livrar o Seu povo de toda espécie de mal. Inquestionável. Queremos tudo o que Deus tem para nós. E a Palavra nos garante que Ele já nos abençoou com toda sorte de bênçãos espirituais nas regiões celestiais em Cristo. Eu não abro mão de nenhuma delas.
Contudo, aquele que nasceu de Deus tem seu maior prazer em revelar o Pai, em anunciá-lo. Em dizer que há algo muito maior do que todas as bênçãos temporais: a Vida Eterna. Nada é mais precioso do que fazer conhecer o Senhor Palavra. A partir daí toda a sorte de bênção é acrescentada e corre atrás de quem O confessa.

Noutra ocasião um homem pediu para ser seu discípulo, andar com ele e aprender a ser como ele. Ao que respondeu com uma sabedoria que nos faz muita falta nos dias de hoje: “Mas como serás o meu discípulo, se eu próprio já o sou de Outro?”. Jesus disse para irmos e fazermos discípulos. Isso é verdade. Só que o discipulado é d’Ele. O discipulador é Ele. Fazermos discípulos significa apresentar Cristo às pessoas, despertar nelas o amor pela Palavra para que sejam discípulas de Jesus e não nossas. Ele é o modelo, a referência, a essência. Ele é o único capaz de nos dar uma nova vida, novos sentidos, novos propósitos. Ele é o único capaz de nos dar a Paz que o mundo não pode dar. Ele é o único a nos presentear com a Alegria que excede todo entendimento. Ele é o Caminho, e a Verdade, e a Vida, e a Luz, e o Pão, e a Porta... Ele é tudo em todos e sem Ele nada do que existe existiria.

As tramas e os cuidados de Deus... uau!
Algo me chamou a atenção assim que comecei a leitura: as atitudes de seu pai. Sher Singh era sardar, governava um dos três principais estados siks. Ele era autoridade para impor e fazer acatar os princípios de sua cultura, e como faria isso acolhendo um filho rebelde?
A despeito da seriedade imposta pelo cargo e da rigidez exigida pelo hinduísmo, percebemos a Mão e a Benevolência de Deus sobre sua vida com relação ao filho caçula. Foi o pai que o matriculou na escola presbiteriana, comprou-lhe a Bíblia, repreendeu-o quando ele se recusou a estudá-la e quando a queimou, e , pacientemente, deu-lhe tempo quando o filho anunciou sua conversão, não o tratando com os rigores da lei e da sociedade, como fez o pai do outro menino que acabou envenenado.
Tudo sob o controle Absoluto de Deus dando tempo para que Sundar, ainda muito menino, se fortalecesse na fé, amadurecesse na comunhão com o Espírito Santo e tivesse discernimento da Vontade do Pai para sua vida. Ele mesmo confessa que algumas vezes pensou em retornar ao conforto do lar. Com certeza o teria feito caso tivesse saído de casa antes de estar firmado na Rocha. Deus é Bom!!! E Suas Misericórdias duram para sempre!!!

Sundar testemunha sobre a importância do jejum para livrá-lo das tentações. O jejum foi um marco em sua vida de intimidade com Deus.  O jejum em si, ou seja, o passar fome nada é. Pode, até, significar mais arrogância e prepotência. O jejum que faz a diferença é a quebra da vontade, a entrega dela ao Senhor. “Seja feita a Tua Vontade e não a minha”.
Quero contar o que tenho vivido quanto a isso. Entreguei minha vontade à Vontade de Deus. Tive um marco, não foi um jejum, nem foram 40 dias, mas alguns anos de relutância com o senhorio de Cristo. Eu queria coisas, sonhei com algumas a vida toda, me preparei para elas; eu sabia que eram boas e pensava serem o melhor para mim. De fato, são boas e o melhor para algumas pessoas, mas não eram o propósito de Deus para minha caminhada. Entendia com a mente, falava sobre essa rendição, mas, na verdade, não abria mão da minha vontade. Continuava senhora de minha vida. Até que um dia desisti de lutar. Me rendi. “Não entendo nada, abrir mão não é o que quero, mas me rendo. Verdadeiramente, venha o Teu Reino e seja feita a Tua Vontade”. As coisas mudaram, o peso do jugo saiu, a alegria me invadiu, as tentações e ansiedades não encontram mais respaldo quando se aproximam.
Acredito que os 40 dias de jejum representaram a ‘entrega’ na vida de Sundar. Foi um marco. A libertação do ‘eu’. Ele mesmo relata que depois desse período as tentações tinham um peso menor. Ele estaria mentindo se dissesse que não as viu mais nem de longe. Ainda há, no meu caso, muito a ser quebrado, tratado, desfeito, refeito... disso não tenho a menor dúvida. Mas também não há medo. Estar na Olaria de Deus é um privilégio; motivo de alegria, não de dor. Depois que o processo de entrega começa e você desfruta de todos e tantos benefícios... temer o quê? Como alguém pode temer o Amor?




Para a maioria das pessoas o problema no momento da salvação é como ser liberto do pecado. Mas para mim, a salvação do pecado e meu modo de vida estavam associados. Se eu aceitasse Jesus como Salvador, simultaneamente O aceitaria como Senhor. Ele me libertaria não apenas do pecado, mas também do mundo”.
Watchman Nee


Editorial

Essa edição comemora os cinco anos de Pitada de Sal. Nossa alegria e gratidão são tamanhas. Jamais poderíamos imaginar que Deus nos traria até aqui. Somos gratos pela Sua direção e cuidados. Cada número tem sido uma experiência nova de dependência e sustento. Senhor Jesus, Obrigada porque Tu És Soberano; Tu És o Deus Todo-Poderoso que não desiste de vasos frágeis como nós. Obrigada porque a Tua Revista tem sobrevivido a nós. Obrigada por Tua Direção.
A série: Entregues a Deus nos traz a história do irmão Watchman Nee. O testemunho está no livro de Charles W. Hiang, Watchman Nee, um homem de Deus, da Ed. Abbas.
Nee nasceu em 04-11-1903 e se converteu aos 17 anos. É costume entre os chineses a escolha de um novo nome quando sofrem uma reviravolta em suas vidas. Ao comprometer-se com Cristo, o jovem Henry Nee mudou seu nome para Nee To-sheng que em inglês expressa-se Watchman Nee, que significa vigia.
Pr Nee foi um homem firmado na Palavra de Deus, determinado ao evangelismo e, com especial dedicação ao discipulado. Buscava a Deus na certeza de que Sua Vontade é Boa, Perfeita e Agradável. Por isso, seu pensamento ainda é polêmico. Ele cria que, uma vez que Jesus era seu Senhor e Salvador, absolutamente tudo o que lhe acontecia estava sob o Seu controle, era para edificação de sua vida e para Sua glória.
Nasceu e viveu na China, uma terra que logo seria corroída pela aparente total aridez espiritual. Seu prazer com a Palavra e em compartilhar o que Deus derramava em seu coração foi um forte instrumento pelo qual o Senhor susteve seu povo em tempos difíceis de perseguição.
É certo que seus ensinamentos permaneceram, prevaleceram e sustentaram muitos corações. Certo que suas orações ainda estão na Presença de Deus e ainda podemos encontrar respostas surgindo por todos os cantos do seu país. Por todos os cantos da Terra, já que o transbordar de seu cálice não ficou limitado à China. Certo é que muitos no Ocidente, que se gabava de ter sido o portador das Boas Novas aos chineses, tenha se alimentado de seus escritos e suas orações. Certo é que hoje estejamos nos alimentemos de Deus através do irmão. Jesus, obrigada por isso!
Graças a Deus pela vida do irmão Nee, pela vida daqueles irmãos que não retrocederam, mas deram suas vidas por amor a Cristo.
Queremos nos desculpar pela falha cometida na edição anterior, onde fomos presenteados com o testemunho de Kaboo. Deixamos de informar a fonte bibliográfica: “Samuel Morris”, de Lindley Baldwin, Ed. Betânia.
Boa leitura,
                                                                      Denise Gaspar



Testemunho da Graça de Deus

Vivos pela Graça, vivendo a Graça

 

Watchman Nee




O significado da Cruz

Após ter aceitado a Cristo, Watchman Nee orou a Deus para que lhe fosse enviado um crente maduro, que pudesse ensiná-lo acerca das verdades da Palavra de Deus. Foi direcionado por Deus à missão de Margaret Barber, em White Teeth Rock, nos arredores de Foochow. Descobriu uma das personalidades mais inesquecíveis que jamais encontraria em outra pessoa, uma mulher que lhe ensinaria lições sobre uma vida de ministério.
Ela era uma pessoa da Cruz, crucificada com Cristo e, portanto, indiferente à mera oposição mortal. Parecia impossível reprimir sua fé. Com idade bastante para ser sua mãe, a senhorita Barber inspirou Watchman com sua devoção radical à Cruz e sua persistente paixão pela Palavra de Deus.
“Mantenha-se quebrantado”, ela lhe dizia com freqüência. “Não acredite nas boas coisas que as pessoas dizem sobre você. Você deve permanecer quebrantado. A Palavra afirma que, se seus caminhos forem agradáveis ao Senhor, Ele fará que seus inimigos estejam em paz com você, (Pv16:7). Ele Se agrada muito mais com seu quebrantamento. Lembre-se da Cruz, To-sheng. Você deve permanecer quebrantado”.
Ela certificou-se de que ele aprendera bem essa lição. Colocou-o propositadamente sob o ataque de um supervisor que o impelia à desordem. O temperamento de Watchman aflorava cada vez que ele discordava desse homem, alguns anos mais velhos que ele, mas de capacidade notadamente inferior à sua. Logo após cada controvérsia, procurava Margaret e acaloradamente expunha suas queixas.
“Ele está errado de novo!” – reclamava To-sheng. “ele nunca faz nada da maneira como eu sei que deve ser feita. Você deve falar-lhe e corrigi-lo”. Previsivelmente, Margaret respondia com firmeza: “As Escrituras dizem que o mais jovem deve obedecer ao mais velho. Você tem muito a aprender”. Repetidas vezes Watchman afastou-se, zangado com ela, com as Escrituras e com a vida em geral. Mas lentamente começou a entender. Mais tarde escreveria:
“Após uma disputa, eu ia ter com a irmã Barber esperando que ela me defendesse. Mas acabava chorando novamente após ela me dizer: ‘Se aquele colaborador está certo ou não, é outra questão. Ao acusar seu irmão diante de mim, você está agindo como alguém que carrega a Cruz? Está agindo como um cordeiro?’. Quando ela me questionava dessa maneira, eu me sentia muito envergonhado e jamais esquecia... Naquele ano e meio, aprendi a obedecer aos colaboradores mais velhos e acabei percebendo o que significa carregar a Cruz”.
Tal como Margaret, Watchman tornou-se uma “pessoa da Cruz” e recusou-se a se defender quando falsamente acusado.
Watchman ficou tão impressionado com os métodos incomuns pelos quais Deus consistentemente provia Margaret Barber com dinheiro e decidiu também viver pela fé em relação a essa questão.

A missão: levar pessoas a Cristo


Quando não estava aprendendo com a senhorita Barber, Watchman concluía seus cursos no Trinity College, em Foochow, e evangelizava a todos que conhecia. Ao manter sua promessa solene de ler o Novo Testamento inteiro no mínimo uma vez por semana, ele foi sarcasticamente apelidado de “Depósito de Bíblia”. Ainda assim, nada o impedia de testemunhar para seus colegas. “Lá vem ‘O Pregador’”, diziam debochando dele. Quase um ano depois, nem uma única pessoa havia orado aceitando a Cristo.
Ele estava mais do que desencorajado quando um colaborador da missão disse-lhe à queima-roupa: “Você é incapaz de levar pessoas ao Senhor porque existe algo interpondo-se entre Deus e você. Pode ser que se trate de alguns pecados secretos com os quais você ainda não tenha lidado completamente ou algo pelo que você esteja em débito com alguém”.
Watchman ficou chocado e orou. Fez uma lista de cada pessoa que ele possivelmente pudesse ter ofendido, dirigiu-se a elas, confessou seu erro e pediu perdão humildemente. Inscreveu os nomes de setenta colegas em seu caderno e orou por eles individualmente todos os dias. Em alguns meses, todos eles, exceto um, haviam renascido!
Esses eram dias excitantes, quando a fé era recente, os ideais, elevados e a palavra “impossível” não constava do vocabulário de Watchman. Com seus amigos recém-convertidos, chamados de Faithful Luke, Simon Meek e Wilson Wang, começou reuniões de oração dirigidas pelos estudantes na capela de Trinity. Logo o salão não os comportava mais.
Os rapazes encontraram um gongo para chamar a atenção e o estrondeavam no mercado. Uma multidão se reunia e os rapazes cantavam e pregavam as Boas Novas. Distribuíam brochuras falando do plano da salvação, e carregavam cartazes enormes anunciando o próximo local de pregação. Prenunciando as camisetas que um dia se tornariam populares entre os jovens evangélicos americanos, Watchman e seus amigos criaram seu próprio guarda roupa de testemunhos. Compraram camisas lisas e brancas e inscreveram nelas arrojadas mensagens cristãs, fazendo uso de letras vermelhas, bem festivas. Logo havia estudantes secundaristas por toda parte usando essas “camisas do evangelho”, anunciando: “Jesus Cristo é o Salvador Vivo” e “Deus Amou o Mundo de Pecadores”. Algo extraordinário estava acontecendo em Foochow, e os habitantes da cidade começaram a comentar o fato.

Watchman apaixonou-se pela Palavra de Deus. Após sua conversão, ele mergulhou em um estudo tão profundo da Bíblia que poucos heróis históricos da fé cristã foram capazes de igualar. Aos dezoito anos, ele consistentemente empregava pelo menos 20 formas de estudo bíblico, desde um estudo geral de todos os livros da Bíblia, até o estudo intenso de um livro em particular, a fim de explorar sua profundidade; desde o estudo das palavras em seus idiomas originais, o grego e o hebraico, até a garimpagem das riquezas de todas as profecias bíblicas; desde os estudos biográficos de todos os personagens da Bíblia, até um estudo sistemático de todas as suas doutrinas.
Ele usava diversas Bíblias diferentes de acordo com tipos específicos de estudo. Uma delas reservava para escrever notas abundantes nas margens à medida que seu conhecimento ia se acumulando. Outra, mantinha livre de anotações de modo que pudesse discernir novas abordagens para os textos. Não demorou muito para que se tornasse conhecido como um rapaz consumido pela Palavra de Deus.
O tempo que investiu lendo a Bíblia e grandes autores cristãos logo exerceu um efeito considerável em sua experiência em diversas áreas-chave, incluindo o batismo. Estudou as passagens que tratavam do batismo e conclui duas coisas que foram revolucionárias para a China naqueles dias. Primeiro, ele concluiu que o batismo era para os cristãos que compreendiam que ele significava submeter sua vida à autoridade de Cristo. Ele também reconheceu que a bíblia retrata o batismo como uma experiência de completa imersão; a mera aspersão não transmite a imagem poderosa do Novo Testamento, o abandono do sistema mundano pago rumo à novidade de vida.
Mais tarde ensinaria: “Por favor, lembre-se, não é apenas você que está sob as águas. À medida que você submerge, um mundo inteiro desce com você. Ao emergir, você emerge com Cristo. Para você, o mundo está submerso, morto na morte de Cristo e nunca para ser ressuscitado. É através do batismo que você declara isto: ‘Senhor, deixo meu mundo para trás. Sua Cruz me separa dele para sempre!’”.
Esse estudo meticuloso da Palavra de Deus levou Watchman a tomar duas importantes decisões adicionais. A primeira tinha a ver com a Santa Ceia e a segunda, com o desligamento de sua denominação. Durante todo o ano de 1921 pesquisou exaustivamente nas Escrituras sobre essas questões. Descobriu que os crentes deviam reunir-se frequentemente para partir o pão em memória de Cristo. Em sua denominação a Santa Ceia só era celebrada quatro vezes ao ano. Watchman encarou a mesma questão que Martinho Lutero e outros reformistas formularam séculos antes: Obedeço ao claro ensinamento das Escrituras ou submeto-me à autoridade da tradição da igreja?
De certo modo, por toda a sua vida Watchman Nee esteve às voltas com o fato de a Reforma ter demorado a chegar à China. Tal como Lutero, ele olhava à sua volta e via uma igreja carnal, tremendamente desinteressada, abandonando a ortodoxia, e ele questionava por que aquela igreja não podia seguir as diretrizes bíblicas. Se tivesse se expressado em latim, Watchman teria proclamado o grito de guerra dos reformadores: “Sola Scriptura!” – somente a bíblia.
As noticias dando conta de que toda a família Nee havia se batizado por imersão e que muitos deles estavam se encontrando privadamente a fim de celebrar a Santa Ceia chegaram aos ouvidos do superintendente distrital da Igreja Metodista. Este fez-lhes uma visita e manifestou sua preocupação.
Logo depois que ele partiu, Watchman viajou a fim de fazer a Margaret Barber uma pergunta: “Como se sente em relação ao fato de meu nome constar do livro da vida na Igreja Metodista?”.
A senhorita Barber respondeu-lhe com a franqueza de sempre: “To-sheng, temo que dentre os nomes que constam daquele livro da vida, muitos estejam mortos e não poucos deles estejam perecendo. Se seu nome está gravado no Livro da Vida no Céu, que beneficio lhe trará um livro da vida terreno? E se seu nome não está gravado no Livro da Vida celestial, em que esse livro terreno o beneficiará?”.
Watchman retornou para casa e escreveu uma carta bastante ousada. Embora seus pais estivessem preocupados com o fato de os missionários ocidentais poderem sentir-se ofendidos por ela, eles subscreveram a carta na mesma tarde.
“Entendemos que divisões não são bíblicas e que o denominacionalismo é pecaminoso, (1Co1: 10-13). Sendo assim, por favor retire nossos nomes de seu livro da vida. Nossa atitude não envolve qualquer animosidade pessoal, mas simplesmente o desejo de obedecer às Escrituras”.
Quatro dias após, uma torrente interminável de visitantes começou a aparecer na soleira da porta; o pastor, o bispo, o superintendente, diversos missionários, o diretor da escola e muitos outros. Cada qual trazia a mesma mensagem: “Esse passo é demasiado drástico para algo tão insignificante como o método de batismo. Se você deseja ser imerso, daremos lugar a você para isso”.
A resposta unânime da família Nee era franca e indicativa de sua nova resolução de serem cristãos verdadeiramente bíblicos.
“O batismo por imersão e o abandono da denominação não constituem a questão central, aqui. Não passam de dois itens dentre milhares que exigem nossa obediência. A questão real é se obedeceremos ou não às Escrituras”.
Watchman Nee deixou a igreja, e estava apenas começando a entender do que se tratava a igreja real.

Onde está o Deus de Elias?


Em 1922, um grande reavivamento havia começado em Foochow. Quando não estavam envolvidos em trabalhos escolares, grupos de rapazes, de 60 a 80 deles, liderados por Watchman, saíam em missões evangelísticas. Esse testemunho noturno causava um efeito profundo; grande número de jovens estudantes estava se convertendo a Cristo. Cada um deles juntava-se à aventura, trajando suas camisetas evangelísticas por toda a cidade, exibindo mensagens: “Creia no Senhor Jesus Cristo” e “Jesus está voltando”.
O movimento fortaleceu-se graças a cruzada evangelística liderada por uma pregadora visitante vinda de Tientsin, Ruth Lee, mulher carismática que se tornaria importante influência na vida de Watchman. Seu testemunho e pregação eletrificavam sua jovem platéia.
A senhorita Lee contou sobre os anos que investira promovendo o ateísmo como diretora de um colégio público. Na verdade, seu zelo pela incredulidade era tanto que ela saía em busca dos estudantes cristãos, confiscava suas Bíblias e publicamente as queimava. Porém, os estudantes se comprometeram a orar por ela. Em pouco tempo ela aceitou a Cristo.
A senhorita Lee renunciou imediatamente a seu cargo público e começou a pregar. Tantas pessoas foram salvas durante os seus encontros que prosseguiram com as reuniões mesmo após ela ter ido para outra cidade. Consequentemente, Watchman e alguns de seus amigos acabavam pregando todas as noites para grandes multidões. “Ao longo de todo um ano”, disse ele, “eu sentia um desejo ardente de pregar. Era-me simplesmente impossível permanecer em silêncio. Pregar havia literalmente se tornado minha vida”.
Quando as reuniões se tornaram habituais, Watchman e outros cristãos passaram a visitar com frequência vilarejos próximos durante os finais de semana e feriados, com o intuito de pregar o evangelho. Pelo fato de esses jovens evangelistas fazerem parte da elite intelectual, praticamente todas as pessoas que encontravam – desde os trabalhadores e soldados mais humildes até eruditos e líderes civis – respeitavam e prestavam atenção ao que diziam.
Eles estabeleciam em suas acomodações o “centro de operações”, invariavelmente reservando um dos aposentos para “orações ininterruptas”. Sempre que o evangelismo pelas ruas e os trabalhos noturnos tinham inicio, cada obreiro cumpria seu turno a fim de manter uma vigília permanente de oração, 24 horas.
Mesmo durante essa fase inicial, Watchman já exibia sinais do que mais tarde se tornaria a paixão de seu ministério: a tarefa de discipular aqueles que estavam sendo salvos e a consequente fundação de igrejas locais. Muitos de seus colegas pensavam ser o evangelismo o ministério mais importante que poderiam realizar. “Mas Deus abriu meus olhos”, ele testemunhou mais tarde, “a fim de que eu pudesse ver com bastante antecedência, que Ele ergueria igrejas locais em diversas partes da China. Minha visão estava voltada para o renascimento de igrejas locais”.

Watchman decidiu que aquele ano de doutorado seria o último de sua educação formal. Ele e seu amigo, Faithful Luke, se encontravam 3 vezes ao dia com outros estudantes para orarem e criam que Deus estava lhes dizendo a mesma coisa. Para desapontamento da maioria dos parentes e funcionários da escola, os dois pararam seus estudos acadêmicos e, assim, abrindo mão de uma lucrativa carreira na elite chinesa. Em vez disso, fariam voto de pobreza e entrariam para um ministério cristão de tempo integral.
Justamente quando o ministério de Watchman estava ganhando impulso espiritual, sofreu um duro golpe. Leland Wang e outros obreiros informaram-no polidamente de que ele não era mais bem-vindo para os cultos de adoração. Também lhe pediram que não comparecesse à convenção das férias de janeiro em Foochow, que reunia cristãos de toda a região – um evento que Watchman havia ajudado a organizar.
O movimento anticristão (consequência do rancor político chinês contra todas as coisas “ocidentais” após a Rebelião dos Boxers) estava tomando impulso a fim de se opor à recente atividade evangelística – e a maior parte das críticas concentrava-se na figura de Watchman. “Chegou a hora de nos separamos, To-sheng”, disseram os Wangs. “As coisas se tornarão mais fáceis para nós, sem você”.
Watchman sabia que os líderes (incluindo diversos missionários ocidentais) estavam sendo pressionados pelo governo para que se comprometessem com diversas questões, e eles sabiam que Watchman jamais o faria. Seria mais conveniente transferir esse pregador ‘radical’ para a periferia do movimento. Muito embora compreendesse os motivos, ficou arrasado com a traição de seus amigos.
Watchman mudou-se de Foochow para Mahsien, uma pequena vila de pescadores, onde Faithful Luke já estava. Alugou uma pequena cabana e dedicou-se ao estudo da Palavra de Deus. Também esboçou alguns projetos de publicação de uma revista cristã, à qual chamou de Revival (Renascimento ou Reavivamento). Ele tinha esperanças de escrever artigos que pudessem ajudar os recém-convertidos a crescerem na fé. Mas ele estava passando por profunda depressão, fruto da dissidência de seus irmãos de Foochow, e achava difícil começar o trabalho. Foi quando Faithful Luke o visitou.
Fizeram o que havia se tornado natural para ambos após longos meses de prática. Eles oraram. Diante do litoral do Grande Mar da China, empenharam-se em orações agoniadas até sentirem que haviam obtido a mesma resposta. Ambos criam que Deus estava lhes dizendo: “Deixem os problemas comigo. Vão e preguem as Boas Novas!”.
Eles receberam um convite urgente da madrasta de Faithful Luke para que fossem pegar em uma vila pagã, onde ela trabalhava como parteira. A vila de Mei-hwa estava localizada numa ilha fora da costa chinesa, e os dois levaram consigo 5 irmãos em Cristo. Após uma semana de intenso trabalho espiritual, nenhuma conversão. Os habitantes ignoraram o pequeno, mas ativo grupo.
Movido por frustração, Kuo-ching Lee, o membro mais jovem do grupo, gritou para uma multidão de aldeões: “O que há com vocês? Por que não crêem?”. “Oh, nós cremos”, disse um porta-voz. “Nós cremos em nosso grande rei, o deus Ta-wang. Ele nunca falha conosco”.
Ao perguntar o que isso significava, Kuo-ching foi informado de que nos 286 anos, Ta-wang havia feito o sol brilhar no dia do festival – dali a dois dias. Impetuosamente, anunciou: “Então, eu lhes prometo que nosso Deus, o Deus Verdadeiro, fará chover nesse dia, o 11º”. A multidão aceitou o desafio. “Não precisa dizer mais nada”, eles responderam. “Se chover no dia, então, seu Jesus é, de fato, Deus. Estaremos prontos para ouvi-Lo”.
Watchman, que passara o dia pregando em outra localidade, consternou-se ao ser informado sobre o pacto. Foi tentado a repreender Kuo-ching, em vez disso orou. “Pai, será que fomos longe demais? Devemos deixar essa vila agora, antes que Teu nome seja denegrido? Devemos deixar essas pessoas mudarem por si próprias?”
‘Onde está o Deus de Elias?’ – foi a resposta à sua prece, fazendo Watchman lembrar-se do profeta que havia orado por chuva após três anos de seca. No dia seguinte, durante um período de oração, a pergunta voltou, para confrontar seu espírito. Watchman estava convencido de que o Senhor prometia o impossível: chuva num dia que não vira uma só gota em quase três séculos. De fato, ele estava tão certo que levou o desafio de Kuo-ching pelas ruas, anunciando-o a todos que estivessem ao alcance de sua voz. Os aldeões foram preparados para um confronto entre deuses, marcado para o dia seguinte.
O alvorecer ensolarado de um céu sem nuvens despertou Watchman de um sono pesado pela manhã de onze de janeiro. Ele protegeu os olhos do brilho intenso e foi olhar o movimento pela janela. Os incrédulos aldeões passavam apressadamente, ocupados em sua rotina diária, preparando-se de maneira ativa para as festividades pagãs daquele dia.
“Senhor, isso não se parece nada com a chuva que Tu...” – sua oração foi interrompida: ‘Onde está o Deus de Elias?’.
Vestiu-se e juntou-se aos seis companheiros a mesa, para o café da manhã. Havia apreensão em suas faces quando Watchman inclinou a fronte para conduzi-los na oração de graças pela refeição. “Pai, por favor, aceita nossa oração como uma suave lembrança de que Tu prometeste responder ao desafio do deus-demônio no dia de hoje. Muito embora não haja uma nuvem sequer no céu, nós cremos na Tua promessa”. Antes que ele pudesse dizer “Amém”, os sete amigos ouviram umas poucas gotas caindo sobre o telhado.
Ao primeiro sinal de chuva, diversas crianças do vilarejo começaram a cantar: “Deus existe, Ta-wang não existe! Deus existe, Ta-wang não existe!”. Os mais velhos eram persistentes. Correram para o santuário e transportaram o pesado ídolo de seu deus numa plataforma, carregando-o pelas ruas escorregadias. Ao começarem a implorar aos brados que ele parasse a chuva e derrotasse aquele Jesus, os céus se abriram num aguaceiro torrencial.
A cena do lado de fora da porta de Watchman era divertida. Onde estava o Deus de Elias? Estava desencadeando uma tempestade, de proporções nunca vistas pelo povo de Mei-hwa. A água já tinha alcançado o nível do pórtico de muitas casas, e chovia a cântaros por toda a cidade. Watchman teve que se esforçar para não rir, ao ver os carregadores do ídolo lutando para não perder o equilíbrio.
Onde estava o deus Ta-wang? Oscilava no topo da plataforma, surdo ante os gritos de seus adoradores. Foi então que os carregadores escorregaram e o ídolo veio abaixo, espatifando-se na calçada. A cabeça e o braço esquerdo saltaram longe do resto do corpo. Os habitantes do vilarejo teriam ouvido a comemoração dos seis obreiros de Watchman, se o rugir da tempestade não fosse tão alto.
A estátua danificada foi levada às pressas para uma casa, onde um sacerdote pagão passou algum tempo fazendo preces diante dela. Quando a tempestade finalmente abrandou, ele saiu pelas ruas proclamando: “Hoje era o dia errado. O festival deve ser realizado no 14º dia, às 6 horas da tarde”.
Watchman sabia que Deus ouvira o desafio, e orou em silêncio: “Senhor, concede-nos tempo bom até a hora mencionada. Temos muito o que fazer”. E pelos próximos três dias e meio, os amigos evangelizaram ousadamente sob o mais límpido dos céus. Mais de trinta aldeões que haviam vivido nas trevas converteram-se publicamente a Cristo, até às 6 horas da tarde do 14º dia. Exatamente na hora estabelecida, uma tempestade gigantesca, que rivalizava com a primeira, desabou sobre o vilarejo. O dilúvio resultante decretou o fim do domínio de Ta-wang sobre o povo, para sempre.

Tudo depende da fé


“To-sheng”, disse Margaret Barber durante uma das visitas de Watchman à missão, “uma pequena folha de uma árvore pode bloquear a lua inteira, conforme o ponto de vista de uma pessoa”.
“Mas, senhorita, que folhas são essas que preciso remover para permanecer inteiramente na luz?”
“Meu jovem amigo, se eu podar sua árvore para você, você nada aprenderá. Você precisa encarar a verdade interior por si mesmo”.
Ele retornou à sua existência espartana e passou longas horas refletindo sobre sua vida. Sua honesta autoanálise levou-o a perceber duas barreiras que o estavam impedindo de seguir em total obediência, duas pequenas folhas que bloqueavam sua visão do plano perfeito de Deus. A primeira área problemática era sua dúvida em relação à fé.
Após a formatura no Trinity College, Watchman deixou para trás a educação formal e tornou-se autodidata em teologia e nas Escrituras. Independente do quanto estudasse, não conseguia eliminar um temor que o perseguia há anos: de que um ateu instruído ou um brilhante crítico da Bíblia pudesse convencê-lo de que a Palavra de Deus não era confiável. Ele temia que as dúvidas decorrentes disso pudessem forçá-lo a afastar-se da fé. Dois incidentes o sossegaram.
O primeiro foi a história contada pelo alfaiate de nome Chen. A única parte da Bíblia que o Chen possuía era uma página que havia encontrado, contendo os últimos 12 versículos do Evangelho de Marcos. Ele entesourou cada palavra e veio a conhecer a Jesus Cristo pessoalmente através delas. Após muito orar, decidiu testar o versículo 18 (“... pegarão em serpentes; e, se alguma coisa mortífera beberem, não lhes fará mal; se impuserem as mãos sobre os enfermos, eles ficarão curados”). Muito embora soubesse, instintivamente, que o dom da Salvação em Cristo fosse muito mais importante que o dom de cura, ele iniciou uma campanha de porta em porta a fim de provar a veracidade do texto. Deus honrou sua fé simples; e após a cura miraculosa de um de seus vizinhos, ele retornou a sua loja para continuar trabalhando e diariamente testemunhando a seus clientes.
Watchman ficou profundamente comovido por essa historia e passou a lançar mão de uma resposta confiante sempre que era atacado por eruditos liberais e críticos da fé: “Sim, existe uma grande dose de razão no que você diz – mas eu conheço meu Deus. Isso é o suficiente”.
Outro incidente não apenas o curou de quaisquer dúvidas remanescentes acerca da fé cristã, mas levou-o a confrontar a segunda área problemática que o impedia à obediência completa. Numa vila próxima, encontrou um lavrador recém-convertido que estivera adiante de um dilema moral. Seu pequenino campo de arroz ficava exatamente acima da corrente de irrigação da encosta, e ele trabalhava duro para bombear manualmente a preciosa água montanha acima até o tanque de retenção. Repetidamente, seu desonesto vizinho, da fazenda abaixo da sua, subia a encosta sorrateiramente e drenava seu suprimento de água a fim de irrigar seus próprios campos.
Frustrado e zangado, o lavrador procurou por seus novos amigos na igreja, em busca de conselho. “Ame seus inimigos e ore por aqueles que o perseguem”, citaram as palavras de Jesus. Após orarem juntos, sabia o que fazer. “Devo andar a segunda milha”, disse ele. Logo de manhã, montou seu equipamento e bombeou água suficiente para os dois campos pertencentes ao vizinho. Então, à tarde, ele bombeou um suprimento para o seu próprio campo.
Esperando vingança em vez de amor, o vizinho ficou profundamente tocado. Subiu a montanha e perguntou ao lavrador cristão por que ele havia agido de maneira tão bondosa. Após diversos encontros, havia dois lavradores cristãos vivendo naquela encosta.
Quanto mais Watchman observava o Espírito de Deus operando nas vidas daqueles que encontravam a Cristo, menos ele duvidava de sua fé. Sabia que agora deveria lidar com a segunda barreira que o mantinha longe de ser preenchido com a “medida da estatura da plenitude de Cristo”: sua conformidade à forma ocidentalizada (e frequentemente inerte) de quase-crença, que se passava por cristianismo em seu país.
Por toda a China, o estado da igreja institucional havia decaído para um morno secularismo religioso. A inveja denominacional e os sacerdotes orgulhosos haviam praticamente paralisado o movimento do Espírito em meio ao sistema eclesiástico estabelecido pelos missionários ocidentais. Como resultado, o sentimento nacionalista antiocidental, anticristão, estava encontrando receptividade entre muitos chineses.
A corrupção da igreja era óbvia, e ainda assim Watchman via muitos jovens famintos de alimento espiritual – muito embora estivessem desiludidos com a forma presente do cristianismo na China. Ele se convenceu de que a resposta estava num retorno ao padrão da Verdade de Deus, encontrada no Novo Testamento. E tomou uma decisão: em vez de capitalizar o fervor nacionalista e antimissionário da época, ele manteria seus contatos ocidentais e devotaria sua vida ao melhoramento da qualidade espiritual da vida cristã dos chineses. Ele disse: “Na obra de Deus tudo depende do tipo de obreiro enviado e do tipo de conversão obtida”.
Watchman um dos poucos a compreender claramente o problema real da igreja na China: a fé era demasiadamente superficial; não estava enraizada no conhecimento da Palavra de Deus.
Watchman sabia que de algum modo teria que conscientizar seus compatriotas de que o Cristianismo era mais do que o perdão inicial dos pecados ou a mera garantia de salvação. Os cristãos imaturos precisavam aprender a vencer o pecado diariamente, como um diligente “povo da Bíblia”. Jesus precisava ser mais do que Aquele que nos conduz ao Paraíso; Ele deveria ser nossa própria vida na Terra.
Mas como poderia ele transmitir esse conceito a seu povo? Ele estava demasiadamente ocupado pregando nos vilarejos, sem dispor de tempo para escrever com a seriedade necessária, para registrar seus pensamentos na forma de livros. “Além do mais”, considerou ele, “sou muito jovem para um projeto desta magnitude... e tenho uma vida inteira pela frente”. Deus estava prestes a mudar o seu modo de pensar.
Watchman contraiu tuberculose. Por acaso, ouviu o dr Wong comentar: “Pobre rapaz! Lembra-se do último caso semelhante? O paciente morreu em seis meses”.
De início, Watchman foi novamente tomado por uma profunda depressão. “Senhor, como isso pode estar acontecendo? Tenho tantas coisas a fazer por Ti. Como o fim pode estar tão próximo se eu mal comecei?”.
Após uma nova bateria de exames o dr afirmou: “Você não deve mais vir me consultar. Eu estaria apenas tirando seu dinheiro. Não posso lhe dar esperanças”. Por mais estranho que isso parecesse, essa notícia acalmou seu espírito e animou-o a agir. Watchman concluiu: “Se vou morrer em breve, Senhor, que seja enquanto estiver escrevendo sobre todas as coisas maravilhosas que o Espírito Santo tem me ensinado a partir de Tua Palavra”. Assim teve início sua luta para escrever O Homem Espiritual, a obra-prima de sua, até então, curta vida.
Com a ajuda de Faithful Luke, Watchman foi deixado aos cuidados de Margaret Barber. E foi lá que a febre alta, que acompanha a tuberculose avançada, apoderou-se de seu corpo. Ele persistiu em escrever, muitas vezes redistribuindo suas anotações, outras vezes perdendo vários dias por absoluta falta de memória.
Certa vez permaneceu inconsciente, por um período tão longo que se espalhou o boato de sua morte. Ao melhorar, viu a expressão de preocupação de Margaret. “Meu querido To-sheng, a vitória está em Cristo”. Quando consciente podia ouvi-la citando-lhe as Escrituras: “Aquele que sofreu na carne deixou o pecado”, citou 1Pe4:1. “To-sheng, você pode me ouvir? O poder se aperfeiçoa na fraqueza. O Senhor está fortalecendo seu interior... Não há nada de novo no que você está passando. Você está simplesmente ‘levando no corpo o morrer do Senhor Jesus Cristo. Não desista, meu jovem amigo. A vitória está em Cristo”.
A febre retornou, mas Watchman recusou-se a se dar por vencido. Tendo pedido caneta e papel, pôs-se a escrever sofregamente. Uma enfermeira já experiente, que visitava Margaret e que havia feito o possível por ele, desfazia-se em lágrimas cada vez que o via: “Já vi muitos pacientes, mas nunca um tão doente quanto este. Temo que ele só tenha três ou quatro dias de vida”.
Quando seus colegas tentaram convencê-lo de que ele morreria se insistisse naquele esforço, ele se calou e pôs-se a escrever ainda mais resoluto. A enfermidade agravou-se de tal modo que, quando deitado, Watchman não conseguia mais respirar sem sentir dores. Assim, ele se apoiava em uma cadeira de encosto alto, pressionava seu tórax contra a escrivaninha e punha-se a escrever. Mais tarde ele testemunhou: “Satanás vinha até mim naquele quarto e dizia: ‘já que você vai morrer logo, por que não de modo confortável e sem dor?’. E eu retrucava aos gritos: ‘O Senhor deseja dessa maneira. Agora, caia fora daqui!”.
Após 4 meses de luta diária, todos os quatro volumes de O Homem Espiritual  estavam empilhados sobre a mesa. Tomado pela debilidade, Watchman orou: “Agora, permita que Seu servo parta em paz”.
Ele agonizava... e sabia disso. Ruth Lee, em visita à missão, convocou diversos cristãos a orar e jejuar por três dias em favor dele. Ao final desse tempo, em sua cama e com dificuldades para respirar recitou três versículos que lhe vieram à mente. A Palavra de Deus lhe dizia: “... pela fé já estais firmado” (2Co1:24). Ele ergueu-se lentamente de seu leito de morte e vestiu-se com as roupas que não usara por 166 dias. Mais cambaleante do que propriamente de pé, encharcado de suor, lembrou-se: “... andamos por fé” (2co5:7). Deu dois passos e sentiu que ia desmaiar. “Onde queres que eu vá?” – perguntou ao Senhor. A resposta lhe veio: “Desça a escada até o quarto onde se encontra a irmã Lee”. Com grande dificuldade, ele atravessou o quarto e abriu a porta para o vão da escada. Ela era perigosamente íngreme, e parecia impossível de transpor. “tudo é possível ao que crê”, (Mc9:23), sussurrou-lhe o Espírito Santo, e ele começou a descer. A cada passo, ele exclamava: “Andamos por fé; andamos por fé!”. Ao final dos 25 degraus, se deu conta de que estava totalmente curado!
Alguns dias depois, em uma manhã de domingo, Watchman permaneceu de pé num culto matinal de adoração e caminhou por três horas, pregando poderosamente a Palavra de Deus.

Morrer para viver com Cristo


Enquanto trabalhava em algumas mudanças cosméticas em O Homem Espiritual, foi tocado por uma passagem em Romanos, que ele julgava ter compreendido anteriormente. Mais tarde, no livro A vida Cristã Normal, ele relatou essa poderosa experiência:
“Durante anos após minha conversão, sempre me foi ensinado que o caminho para a libertação era considerar-me morto para o pecado e vivo para Deus, (Rm6:11). ‘Considerei-me’ como tal de 1920 a 1927 e, quanto mais fazia isso, mais vivo para o pecado eu claramente estava. Simplesmente não conseguia acreditar-me morto para o pecado. O problema era que ninguém havia me mostrado que o conhecimento, (v6), deve preceder a suposição, (v11). Durante meses afligi-me e orei sinceramente, lendo as Escrituras e buscando luz. Finalmente, disse ao Senhor: “Se eu não puder entender isso – que é algo tão fundamental – não pregarei mais.
“Lembro-me de que numa certa manhã – e como poderia eu esquecê-la? - estava sentado no andar superior lendo Romanos, quando cheguei a estas palavras: ‘... sabendo isto, que foi crucificado com ele o nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído, e não sirvamos ao pecado como escravos’. Sabendo isto! Como eu poderia saber? Orei: ‘Senhor, abre meus olhos!’ – e então, em um lampejo, eu vi.
“Eu havia lido anteriormente a passagem de 1co1:30: ‘Mas vós sois d’Ele, em Cristo Jesus...’ e tornei a lê-la. E pensei: o fato de eu ser dEle, em Cristo Jesus, é obra de Deus! Isso era espantoso! Se Cristo morreu, e isto é um fato concreto, e se Deus me pôs em Cristo, então eu também devo ter morrido. Subitamente percebi minha unicidade com Cristo: que eu estava nEle, e que quando Ele morreu, eu morri. Minha morte para o pecado era uma questão do passado e do futuro.
“Saltei da cadeira e desci correndo as escadas. ‘Irmão’, eu disse para o rapaz que trabalhava na cozinha, agarrando-o pelas mãos, ‘... você sabe que eu morri?’. Devo admitir que ele pareceu totalmente confuso. ‘O que quer dizer?’ – exclamou. Então eu prossegui: ‘Você não sabe que Cristo morreu? Não sabe que eu morri com Ele? Não sabe que minha morte é um fato tão real quanto a dEle?’.
“Ah! Era tão real para mim! Senti vontade de anunciar minha descoberta aos gritos, pelas ruas de Shanghai. Daquele dia em diante, nunca mais duvidei nem por um momento da finalidade daquela palavra: ‘eu havia sido crucificado com Cristo; não era mais eu quem vivia, mas Cristo é que vivia em mim’”.
Essa revelação tornou-se um marco em sua vida. A partir desse momento, era quase impossível ofendê-lo. Por que ele retaliaria ao ser criticado? Ele já havia morrido para a autopromoção. Tomou a decisão de nunca mais defender-se nem levantar argumentos, ao ser pessoalmente repreendido. Como de costume, o teste não tardou a vir. Certo dia, um colaborador mais jovem confrontou-o na presença de diversos cristãos. Um amigo de Watchman observou a cena e mais tarde relatou: “O homem apontou seu dedo e deu socos na mesa, repreendendo Watchman por quase quatro horas. Mas ele manteve-se calmamente sentado na cadeira, sem sequer mudar de expressão. Por vezes, chegou a aquiescer com a cabeça, mostrando estar de acordo. Tanto quanto eu percebia o quão injusto o acusador estava sendo, eu sabia que Watchman estava submetendo-se a tal circunstância que Deus havia permitido”.
Pouco a pouco, ele se foi tornando uma pessoa da Cruz. Com um novo senso de paz, aprendeu a aceitar cada problema que surgiu em seu caminho como uma nova oportunidade para crescer espiritualmente.
Finalmente Watchman estava percebendo o que Margaret Barber havia tentado ensinar-lhe ao longo de tantos anos: que o único lugar onde um cristão amadurece é no vale das sombras da morte. Para esse fim, o Senhor havia preparado outro vale a ser atravessado.
Ele visitava sua estimada mentora por uns poucos dias, quando a febre da tuberculose retornou violentamente. Ele havia se extenuado pregando e a chegada do inverno trouxe-lhe uma tosse violenta e algo ainda pior, embora ele não tenha se dado conta. Watchman havia contraído uma doença cardiovascular, angina pectoris, que lhe acompanhou o resto da vida.
Com fortes dores retornou ao lar em Foochow, para perto da família. Ao ver o estado de seu filho, Peace Nee temeu que ele não fosse viver por muito mais tempo. Deitou-o na cama cheio de cuidados, mas na manhã seguinte ele se levantou e saiu. Foi reconhecido apenas por alguns moradores, caminhando vagarosamente pelas ruas com a ajuda de uma bengala. Com os cabelos desgrenhados, olhos marcados por profundas olheiras escuras e rosto macilento e pálido. Watchman era uma sombra distante daquele jovem vigoroso de futuro brilhante, que havia se graduado tempos atrás.
Sua mãe convenceu-o a consultar uma junta médica. A prescrição foi repouso absoluto no clima do Monte Kuling. Após uma viagem de barco, Watchman viu-se no sopé do Kuling, observando a escadaria íngreme que ascendia pela encosta até sua residência de verão, mais de 1000 metros morro acima. “Quando puder descer esta escadaria por minha própria conta, estarei pronto para deixar este lugar”. Uma liteira o levou até um casebre, onde dormiu por 4 dias seguidos.
À medida que se recuperava, ele fazia curtas caminhadas até os mirantes paisagísticos que exibiam o verdejante Vale do Yang-tse-Kiang. Numa dessas ocasiões, argumentava com Deus acerca de seu estado de saúde e, por fim exclamou: “Pai, o Senhor simplesmente precisa restaurar a minha saúde. Há tanto trabalho a ser feito!”.
A resposta chegou rápida: “Isso é assunto Meu”, disse o Senhor. “Confie em Mim e pare com isso!”. Mas dia após dia ele caminhava argumentando com Deus: “Pai, quanto tempo mais devo esperar? Tão poucos ouviram falar de Ti, e esses poucos precisam ser discipulados. Quando estarei bem?”. E a voz interior se fez ouvir novamente: “Você deve confiar em Mim, Meu filho. Deve parar de pensar nisso e confiar em Mim”.
Desta vez, Watchman arrependeu-se imediatamente. Achou um galho pesado no meio da trilha e, ajoelhando-se, cravou-o no chão o mais fundo que pôde: “Senhor, eu confio em Ti! Essa questão sobre minha saúde termina aqui!”. Mas tão logo se levantou para retornar, foi varrido por uma onda de ansiedade e náusea. E começou a argumentar com Deus outra vez.
Antes de cair na armadilha, ele se conteve. “O que estou fazendo? É o inimigo, novamente”. Com raiva de sua estupidez retornou onde fincou a estaca e, apontando dramaticamente para ela, exclamou alto, para que satanás e o mundo todo ouvissem: “Senhor, aqui neste lugar eu abandonei a questão da minha saúde. Eu me recuso a tomá-la de volta!”. E tanto quanto os registros mostram, ele nunca o fez.
De fato, quando ele parou de pensar sobre sua difícil situação, sua saúde melhorou e ele teve energia mental para repensar sua fé crescente. “Quando vim ao Senhor pela primeira vez”, escreveu mais tarde, “tinha minha própria concepção de como era um cristão. Pensava que um verdadeiro cristão deveria sorrir de manhã à noite. Se a qualquer momento ele se derramasse em lágrimas, teria deixado de ser vitorioso. Pensava, também, que um cristão deveria ter uma coragem inabalável. Se, sob quaisquer circunstâncias, ele exibisse o mais leve sinal de medo, estaria abaixo dos meus padrões. Mas ao ler a carta autobiográfica de Paulo em 2 coríntios, constatei que ele se sentia ‘abatido’, muitas vezes ‘perplexo’, imerso em ‘muitas lágrimas’ e até mesmo ‘a ponto de desesperar da própria vida’. Descobri que Paulo era um homem e muito semelhante ao homem que eu conhecia”.
Além dessa experiência, a passagem de 2Co4:7 tornou-se um lema em sua vida: “Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência seja de Deus e não de nós”. Mais um alicerce foi acrescentado à sua estrutura espiritual, assim como a resolução de nunca mais surpreender-se caso Deus permitisse que uma circunstância que surgisse em seu caminho fosse mais forte do que nunca.

Evangelizar e discipular


“Vou lhes contar uma parábola sobre uma centopeia que conheci”, ele anunciou. “Certo dia, quando a centopeia estava prestes a sair para uma caminhada, examinei suas pernas a fim de descobrir qual delas se moveria primeiro. Seria a perna esquerda ou a direita? Ou, quem sabe a oitava, ou a décima? A centopeia tornou-se uma vítima da autoparalisia, ficou lá parada, tentando decidir qual das pernas se moveria. O problema essencialmente mental acabou tornando-se um problema prático.”
“Mas se você não sabe que perna mover primeiro, como será possível iniciar uma jornada?” – perguntou Wu-cheng, sentado na terceira fila.
“Em primeiro lugar, não tomando isso como um problema”, respondeu. “Todos nós nos esforçamos muito para ser religiosos. Mas é muito mais fácil vivermos com Deus que conosco mesmo. Como Paulo exortou seus amigos em Éfeso, simplesmente ‘andai em Seu Amor’”.
“Mas o que aconteceu à centopeia?” – alguém perguntou.
“Finalmente, o sol começou a surgir. Sem pensar, nossa pequenina centopeia correu para ver o nascer do sol, sem perder tempo em considerações sobre qual das pernas moveria primeiro. Simplesmente andou, esquecendo-se por completo de como deveria fazê-lo. Quando o problema mental se foi, o problema prático também desapareceu. A verdade é que quanto mais tentamos lidar com a aridez interior, com a depressão e com a estagnação, maior é a incapacidade de superá-las. Tais coisas se tornam um problema, porque fazemos delas um problema. Se nos esquecemos delas e as tirarmos da mente, elas desaparecerão”.
“Mas essa história de ‘esquecer o assunto’ não contradiz o que você nos ensinou antes? Você não nos instruiu, por tantas vezes, a lutarmos contra o diabo?” – perguntou John Chang.
“Não, meu caro amigo”, disse num tom gentil. “Resistir ao diabo é muito diferente do que tentar enfrentá-lo por conta própria. Você sempre perderá a batalha. O inimigo só pode ser vencido pelo Sangue do Cordeiro. Você resiste ao diabo tendo Cristo como escudo. Além disso, resistir ao diabo não é sinônimo de aridez espiritual. Vencemos o desânimo e a tirania das expectativas religiosas impossíveis, simplesmente esquecendo-nos deles. A verdadeira fé não está relacionada às nossas tentativas; ela está relacionada à nossa morte. Todos precisamos aprender a caminhar em Seu Amor”.
“Pastor, sabemos que suas palavras são corretas. Mas como podemos aprender a caminhar no Amor de Jesus?”, perguntou John Chang.
“Amado”, respondeu percorrendo o salão, “antes de minha conversão, devotei minha vida ao acúmulo de bens materiais: roupas, notas altas na escola, dinheiro e assim por diante. E mesmo por alguns anos após ter sido salvo, mantive esse hábito de acumular bens – ainda que agora se tratassem de bens espirituais: religiosidade, altos princípios morais, sabedoria e paciência. Mas eu ainda tateava numa espécie de escuridão, tentando acumular bens pessoais na forma de virtudes que, pensava eu, estruturariam minha vida cristã – e sem chegar a lugar algum, a despeito de meus esforços. Vocês não percebem, meus amigos? Estive acumulando bens espirituais e não me tornei melhor por isso. Não entrem nesse beco sem saída. Ele os paralisará, tal como à centopeia. Então, certo dia, eu estava lendo uma passagem em Fp1:19:21:
Porque estou certo de que isto mesmo, pela vossa súplica e pela provisão do Espírito Santo de Jesus Cristo, me redundará em libertação, segundo minha ardente expectativa e esperança de que em nada serei envergonhado; antes, com toda a ousadia, como sempre, também agora, será Cristo engrandecido no meu corpo, quer pela vida, quer pela morte. Porquanto, para mim o viver é Cristo, e o morrer é lucro.
“... para mim o viver é Cristo...” - repetiu ele. “Agora vocês entendem? Passamos a vida toda nos esforçando para sermos semelhantes a Cristo, e terminamos descobrindo que tal meta era impossível já desde o primeiro esforço. Enquanto lutamos para tornar-nos mais semelhantes a Cristo e a cada dia nos tornamos desanimados quando isso não acontece, Ele simplesmente deseja viver Sua Vida, para sempre, dentro de nós. Pois, para mim, viver é Cristo. É o próprio Cristo vivendo através de nós: falando, testemunhando, agindo como pai, como amigo, escrevendo e cantando através de nós!
Ah!!! Não quero mais ser semelhante a Jesus; quero que Jesus seja Ele próprio vivendo dentro de mim. Assim que percebi essa verdade, uma nova vida começou para mim. Daqui por diante, sua vida diária pode ser resumida em uma frase: ‘Caminhar em Seu Amor’”.
Ao final do sermão, a congregação manteve-se sentada, em silêncio, meditando no que ouvira.

“Precisamos fazer mais do que evangelizar”, Watchman afirmou quando o grupo de estudo bíblico se reuniu na casa de Peace Nee. “Nosso Senhor investiu sua vida nos 12 discípulos ao longo de 3 anos e meio, antes de ordenar-lhes que saíssem pelo mundo. Estamos ganhando pessoas para Cristo sem investir nossas vidas nelas”.
“Mas, irmão Nee”, disse Peace Wang, “a Bíblia nos diz para efetuarmos a obra de um evangelista”.
“Sim, amiga, mas o maior evangelista de todos, depois do próprio Senhor, disse ‘... estávamos prontos a oferecer-nos, não somente o Evangelho de Deus, mas, igualmente, a nossa própria vida’. Os cristãos na China são superficiais e desarraigados. São como nuvens sem chuva. Após virem a Cristo, alguém deve ajudá-los a aprofundar a fé”.
A partir daí, iniciou-se de maneira humilde o que talvez tenha se tornado o mais eminente movimento eclesiástico da breve história cristã da China. Watchman, Ruth, Peace e John Wang dedicaram-se a uma definição mais ampla de evangelismo, do que seus predecessores. Estavam convencidos de que, se seguissem o padrão original de evangelismo do Novo Testamento, o resultado seria uma igreja local forte, cujos membros seriam discipulados diariamente.

A igreja em Shanghai crescia a olhos vistos e possuía uma irrepreensível qualidade de vida e espírito, e logo ficou conhecida. Desde o começo Watchman sentia forte apreensão quanto à popularidade. “Meu destino é ser arrebatado ou martirizado”, confessou a amigos, “recuso-me a ser admirado”.

Por essa época a mãe de Watchman veio assisti-lo numa conferência bíblica em Shanghai. O rigoroso regime espiritual que ele manteve por mais de 10 anos, (estudando o NT inteiro no mínimo uma vez por mês, memorizando porções enormes do AT e frequentemente orando até 4hs por dia), causou um profundo impacto em sua mãe durante a primeira mensagem. Alguns dias ouvindo-o, essa mulher devotada, ela própria uma admirável estudiosa das Escrituras, confessou: “O que meu filho pregou foi tão profundo que fugiu à minha compreensão; e eu era orgulhosa demais para fazer-lhe perguntas; mas ao observar sua vida, fui levada a curvar-me ao solo, em sinal de respeito”.

“Qual o objetivo de seu trabalho aqui?”, perguntou Charles Barlow. “Para que eu possa informar aos meus confrades na Inglaterra”.
“Prover leite espiritual para os jovens cristãos, e alimento sólido para os mais velhos”, respondeu Watchman. “Enfatizamos especialmente a Salvação da Cruz. Mas estamos ainda mais preocupados com a condição espiritual dos cristãos. Pregamos toda a verdade de Deus e não apenas uma parte dela. Nos empenhamos em conscientizar as crianças de Deus acerca dos perigos, tanto quanto o fazemos em relação aos erros do modernismo. O senhor sabe que a Bíblia é nosso único padrão. Não tememos pregar a pura Palavra da Bíblia, mesmo que os homens se oponham; mas se não se tratar da Palavra da Bíblia, poderemos nunca concordar com ela, mesmo que todos aprovem”.
Os relatórios enviados ao London Group de Bretheren causaram impacto espiritual tamanho que em outubro de 1932 representantes da Grã-Bretanha, Austrália e Estados Unidos embarcaram rumo à China.

Não somos do mundo


  A chegada tardia da delegação não o fez interromper sua mensagem:
“Em Jo8:23, nosso amado Senhor disse à Sua congregação judaica: ‘Vós sois cá de baixo, Eu Sou lá de cima; vós sois deste mundo, Eu deste mundo não Sou’. Vamos atentar para o uso das palavras ‘lá’ e ‘deste’. A palavra em grego em cada caso é ek, que significa ‘fora de’ e indica origem. A expressão usada é Ek tou kosmos: ‘lá’, ou ‘fora deste mundo’. Sendo assim, o sentido da passagem é: ‘Seu lugar de origem é cá embaixo; Meu lugar de origem é lá em cima. Seu lugar de origem é este mundo; Meu lugar de origem não é este mundo’. A pergunta aqui não é: ‘Você é uma pessoa boa ou má?’, mas: ‘Qual seu lugar de origem?’. Nós não perguntamos: ‘Isto está certo’ ou ‘Isto está errado?’, mas: ‘Qual a origem disto?’. É a origem que determina tudo. ‘O que é nascido da carne, é carne; o que é nascido do Espírito, é espírito’. Assim, quando Jesus Se dirige a Seus discípulos, pode dizer, usando a mesma preposição em grego: ‘se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu; como, todavia, não sois do mundo, pelo contrário dele vos escolhi, por isso o mundo vos odeia.
“Aqui temos a mesma expressão,’não sois do mundo’, mas, em acréscimo, temos uma outra expressão ainda mais poderosa: ‘...dele vos escolhi’, (‘Eu escolhi vocês para saírem do mundo’). Nesse caso a ênfase é duplicada. Tal como antes, existe um ek, ‘fora de’, mas, além disso, o verbo ‘escolher’, eklego, que por si só contém um outro ek. Jesus está dizendo que Seus discípulos haviam sido ‘escolhidos para fora, para saírem do mundo’.
“Aqui temos esse duplo ek na vida de cada cristão. Deus nos chamou para fora. Para fora desta vasta organização chamada kosmos, para fora de todo este grande volume de bens individuais dedicados a ela e envolvidos nela. Para fora, livres de tudo isto. E assim nasceu o termo ‘igreja’, ekklesia, os ‘chamados para fora’, de Deus. Se você é um deles, então você é um chamado para fora.
“Na condição de povo de Deus, temos dois títulos: se olharmos para nosso passado histórico, somos ekklesia, a igreja; mas se olharmos para nossa vida presente em Deus, somos o corpo de Cristo, a expressão terrena dEle, que está no céu. Do ponto de vista de Deus sobre Sua escolha por nós, estamos fora do mundo; mas do ponto de vista de nossa vida, não somos absolutamente do mundo, mas lá de cima. Por um lado somos um povo regenerado, totalmente desvinculado daquele sistema, posto que nascemos lá de cima por meio do Espírito.
“Na condição de povo de Deus, o céu não é o nosso destino, mas nossa origem.
“Estamos falando de algo extraordinário – que existe em vocês e em mim um elemento essencialmente sobrenatural. A vida que recebemos como dom de Deus veio do céu e de modo algum procede do mundo. Ela não tem correspondência com o mundo, mas está em perfeita correspondência com o céu; e, embora precisemos interagir com o mundo diariamente, ela nunca permitirá que nos acomodemos e nos sintamos à vontade nele.
“Meus queridos amigos, algum de vocês, tal como Ló, terá montado sua tenda na direção de Sodoma? Terá alguém cravado tão fundo as estacas de sustentação a ponto de não se capaz de retirá-las na manhã em que nosso Senhor voltar? Estará alguém sentindo-se tão à vontade neste mundo, um mundo que, segundo nos disse Jesus, jaz no maligno?...”
Depois que todos haviam se retirado, Watchman foi cercado pelos membros da delegação que começaram a cumulá-lo de perguntas.
Depois de muito conversarem, Charles Barlow disse que o pr Nee precisava ir à Inglaterra. “Suas intenções são as melhores”, respondeu, “mas o que o faz pensar que eu seria mais bem recebido do que nosso próprio Senhor o foi. Jesus disse: ‘Sereis odiados de todos por causa do Meu Nome’. Quando o mundo encontra em nós uma natural honestidade e decência humanas, ele as aprecia e se predispõe a nos tratar com o devido respeito. Mas tão logo encontra, dentro de nós, coisas que não são próprias de nós mesmos, porém da Pessoa de Cristo, sua hostilidade recrudesce imediatamente. Mostre ao mundo os frutos do cristianismo, e ele aplaudirá; mostre-lhe o próprio cristianismo, e ele se oporá vigorosamente. A evolução natural do mundo jamais será capaz de produzir um único cristão. A assim chamada civilização cristã, tal como a sua, ganha o reconhecimento e o respeito do mundo. O mundo pode tolerá-la; pode até mesmo assimilá-la e utilizá-la. Mas a vida cristã – a vida de Cristo no cristão – essa ele odeia; e seja onde for que o mundo a encontre, ele se oporá a ela até a morte”.
“Então’, falou Barlow, “o senhor está dizendo que devemos abandonar este mundo para viver a vida de um asceta?”.
“Não, meu caro amigo. Ao contrário, os cristãos ocupam um espaço vital no mundo. Jesus disse ao Pai: ’Não peço que os tires do mundo; e, sim, que os guarde do mal’. É justamente esse o problema com a maior parte da Cristandade. De maneira insana, pessoas religiosas tentam sobrepujar o mundo isolando-se dele. Como cristãos, essa não deve ser em absoluto nossa atitude. Somos chamados a sermos vencedores aqui mesmo. Tendo sido criados de modo distinto do mundo, aceitamos com alegria o fato de Deus ter-nos posto nele. a vida de Cristo dentro de nós é a única salvaguarda de que precisamos. Onde existe vida autêntica, poderá haver medo de mistura com o mundo?”
Como se tivesse ouvido apenas parte do que dissera, Barlow insistiu. “Eu irei”, respondeu para assombro de todos. “Mas não serei a bênção à qual o senhor se refere”.
A hospitalidade foi tão cordial nos primeiros dias, que seu pressentimento parecia sem sentido. Fazendo um retrospecto, Watchman sentiu que era uma novidade, era o “interessante jovem da China”, e não era levado a sério.
Desde o começo ficou impressionado com a abrangência do conhecimento dos anfitriões. Porém, sentiu-se incomodado com a arrogância espiritual ao ouvir comentários como: “Existe alguma coisa no campo da revelação espiritual que nós de Brethren não conheçamos? Trata-se de uma perda de tempo ler o que outros cristãos já escreveram. O que eles podem oferecer que já não saibamos?”.
Ao ser-lhe concedida a rara oportunidade de tecer comentários durante uma cansativa discussão doutrinária, Watchman pôs-se de pé:
“Meus caros irmãos, sua compreensão da verdade é vasta, mas em meu país o proveito que ela teria se esgotaria assim”, disse estalando os dedos, “se, quando a necessidade surgisse, vocês não pudessem expulsar um demônio”. Mais tarde, comentou com Barlow: “Seu povo possui uma maravilhosa luz de entendimento, mas, puxa, uma fé tão pequena”.
Evidentemente a franqueza de Watchman ofendeu muitos membros de Brethren e a divergência parecia ser o caminho inevitável.


A progressão geométrica do Amor


Muito embora sua paixão estivesse voltada ao ensino e discipulado, Watchman sentiu a oportunidade e ao reunir os cristãos em Shanghai, desafiou-os ao evangelismo, mesmo que isso significasse mudarem-se para outras cidades.
“Por vocês não estarem testemunhando muitos ainda não ouviram as Boas Novas. Estarão eternamente separados de Deus. Eis o triste resultado de nossa apatia! É absolutamente impossível para uma pessoa possuir a luz e não brilhar. Assim como não existe dente que não mastigue e fonte que não flua, também não existe vida que não possa gerar vida. Todo aquele que não tem interesse em ajudar pessoas a se arrependerem e crerem no Senhor, precisa, ele próprio, arrepender-se e crer no Senhor. É possível para um homem ser tão avançado espiritualmente a ponto de não mais conquistar almas? Eu lhes digo que isso é algo que vocês não podem superar; trata-se de uma incumbência para a vida toda. Alguns de vocês que pensam estar espiritualmente adiantados já ouviram que essa é a característica de um cristão maduro, o de ser ‘canal de água viva’. Não discordo totalmente disso. Mas precisamos estar em comunhão com o Espírito Santo de modo que a Água Viva possa fluir de nós.
“Mas permitam-me dizer também que o canal da vida possui duas extremidades: uma delas encontra-se aberta na direção do Espírito Santo; mas a outra desemboca na direção dos homens. A Água da Vida não fluirá se apenas a extremidade direcionada ao Senhor estiver aberta. A outra extremidade, aquela na direção do mundo, deve igualmente estar aberta, para que haja fluxo. A razão pela qual muitos não possuem poder diante de Deus deve-se ao fato de estarem fechados, ou na extremidade direcionada ao Senhor, ou naquela direcionada aos pecadores. A China ainda pode ser conquistada para Cristo se abrirmos nossos corações para os homens”.
“Mas somos tão poucos e nosso país é tão grande. Você nos deu uma tarefa impossível”, disse um colaborador.
“Eu nada lhes dei. É o Senhor quem dá. E é dEle a tarefa a ser executada através de vocês...”.

Durante uma viagem Watchman e Shepherd passaram horas conversando.
“Fale-me a respeito, caro To-sheng”.
“Estou aprendendo que incutir nos cristãos a importância do testemunho não é o mesmo que ensinar-lhes como levar pessoas ao Senhor – e a falta de tal conhecimento fará que a maioria de seus testemunhos seja ineficaz”.
“Estou percebendo esse ‘como’, observando você durante essas semanas”, respondeu Shepherd. “percebi que antes de tentar levar alguém ao Filho, você prepara primeiro o seu coração diante do Pai”.
“Você está absolutamente certo. Salvar almas requer trabalho básico de oração. Antes de falar com uma pessoa, você deve orar a Deus. Certa vez conheci dois irmãos muito dedicados à missão de levar pessoas ao Senhor. Mas em meu contato com eles, percebi instantaneamente que algo estava errado. Eles não oravam por aqueles que desejavam ganhar para Cristo. O interesse pelas pessoas, destituído de responsabilidade diante de Deus é inadequado e, portanto, ineficaz. É preciso assumir primeiro essa responsabilidade perante Deus e só depois trabalhar entre as pessoas”.


A inveja e as ciladas


Um comunicado da entidade separatista London Group de Brethren acusava Watchman de teve comunhão com cristãos menos “eminentes” que apregoavam que: “a qualquer um que se disser cristão será permitido partir o pão, independentemente das associações religiosas ou correlatas com as quais estiver envolvido”. Informava ainda que se quisessem manter-se associados ao Group, precisariam cortar relações com outros grupos e congregações. “A verdade está do nosso lado...”.
Os presbíteros reuniram-se com Watchman para discutir o problema. John Sung perguntou: “pr Nee, a que estão se referindo quando dizem que o senhor ‘comprometeu a fraternidade’?”.
“Você já sabe a resposta para isso. Como vocês já sabem, em minha visita à Inglaterra participei de cultos de adoração na companhia do amado pr T. Austin-Sparks no Christian Fellowship Center em Honor Oak Road, ao sul de Londres”.
“Mas eles não são apóstatas. Representam uma das mais admiráveis igrejas da Grã-Bretanha”, emendou Faithful Luke.
“Exatamente. De fato, é minha opinião que eles têm muito mais a ensinar, tanto a nós quanto ao London Group Brethren”.
“A conversa está tomando um rumo perigoso”, disse Y.A. Wu. “Não podemos esquecer de que eles foram os primeiros a reconhecerem a validade de nossa igreja”.
“Meu caro irmão Wu, é melhor que sejamos reconhecidos pelo Espírito Santo, em, quem ‘todos nós fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só Espírito’. Se Ele estava certo ao dizer através do apóstolo Paulo que ‘todos nós somos um em Cristo Jesus’, então, como cristãos no NT, precisamos tomar uma decisão. Ou nos preocupamos mais com o que o mundo pensa a nosso respeito, ou com a opinião de Deus acerca de nossa fidelidade. O mundo dá muita importância ao status social – à raça a qual pertencemos, à nossa formação e assim por diante. ‘Preciso manter minha honra’, diz o mundo, ‘preciso proteger meu status’. Mas, uma vez que nos tornamos cristãos, devemos expurgar todo tipo de discriminação. Ninguém deve levar seu status ou posição social para diante de Cristo e da igreja – falo do homem renovado; somente o antigo homem agiria assim. Nada que pertença ao antigo homem deve persistir dentro da igreja”.
“Quer optemos por reconhecer tal fato, quer não, sempre haverá diferenças entre as nações”, disse Sung. “Que dizer dos ingleses que mesmo agora tratam nosso ministério com ar de superioridade, ou nossos vizinhos, os japoneses, que ameaçam nossa própria segurança? Talvez seja hora de aprendermos a distinguir nossos amigos de nossos inimigos”.
“Com exceção de Satanás, o Senhor não possui inimigos, somente amigos em potencial. E essas diferenças de que fala, são culturais, não espirituais. Não importa que idioma nossos vizinhos falem, o Espírito Santo só se expressa na linguagem do Amor. Ainda bem que alguns de nós não estivemos presentes ao Concílio de Jerusalém em Atos 15, ou poderíamos ter aprovado uma lei na qual todos os gentios deveriam primeiro tornar-se judeus antes de se tornarem cristãos! Não, meus amigos. Não existem mais diferenças entre as nações. A cada vez que nos achegamos ao Senhor, o fazemos não como ingleses ou chineses, mas como cristãos. Não devemos jamais nos aproximar de Deus com base em nossa nacionalidade. Esses fatores externos devem ser excluídos, uma vez que somos unidos pela vida de Cristo. Cristãos americanos, ingleses, indianos, japoneses ou chineses, somos todos irmãos e irmãs no Senhor. Ninguém pode fazer distinção entre nós, como filhos de Deus. Não podemos ter um ‘cristianismo americano’; se insistimos em ter a América, não podemos ter Cristo. O mesmo vale para a China. Se pusermos nosso nacionalismo à frente de nossa fé, não poderemos ter Cristo...”.
“Ah, mas foi o senhor quem nos ensinou que existem diferenças entre irmãos e irmãs”, disse Wu. “A Escritura Sagrada não diz que a uma mulher não deve ser permitido ensinar ou exercer autoridade sobre um homem?”
“Novamente você está falando de um aspecto cultural e não espiritual”, respondeu Watchman. “Quando a igreja se reúne, o homem atua de modo distinto do da mulher, tal como acontece na família – marido e mulher assumem responsabilidades diferentes. E quem pode dizer qual das duas é a mais importante? Argumentos fortes poderiam ser levantados, de parte a parte. Mas em Cristo, não pode haver o masculino e o feminino. Nem o homem nem a mulher ocupar posição em particular. Por quê? Porque Cristo é tudo e está em todos. Na vida espiritual não existem meios de diferenciar homens e mulheres. Irmão Lee”, disse Watchman voltando-se para Witness Lee. “Lembra-se do que nosso amigo carpinteiro disse quando lhe perguntei: ‘Daniel, em que condição espiritual se encontram os irmãos de sua região?’.”
“Nunca me esquecerei. Ele disse: ‘Refere-se aos irmãos masculinos ou aos irmãos femininos?”.
Diante disso, todos os homens deram uma boa risada, e Watchman prosseguiu: “Exatamente! Considero essa uma excelente expressão. Ele não sabia se eu me referia aos irmãos ou às irmãs. Em Cristo, não há desigualdade. Portanto, estimulemos os novos convertidos a absorverem a idéia de que, ao nos achegarmos a Cristo, transcendemos a relação masculino/feminino. Somos todos irmãos e irmãs. Cada um de nós é uma nova criatura em Cristo. Todas as diferenças naturais foram anuladas em Cristo. Nós, portanto, devemos banir de nossos corações qualquer espírito que cause divisão. O Espírito de Cristo só nos permitirá uma única resposta ao London Group de Brethren. Estamos de acordo?”.
Os presbíteros de Shanghai foram unânimes. Escreveram: “Devemos fazer uma distinção entre os ‘pecados’ (sejam morais ou doutrinários) que prejudicam a fraternidade com Deus e os ‘pecados’ que não produzem tal resultado. Por certo sabemos que pecados como o adultério e a incredulidade em Cristo, advindos da carne, certamente causariam o afastamento dessa comunhão, mas com relação aos outros ‘pecados’, as citadas ‘más associações’, cremos que a comunhão com Deus não é prejudicada. O fato é que um filho de Deus, nos diferentes sistemas, a quem julgávamos inadequado para a fraternidade, caminha ainda mais próximo a Deus do que nós. É o Espírito, e o Espírito somente, que pode decidir quem se adéqua ou não à fraternidade. A razão pela qual acolhemos um homem é que Deus o acolheu (Rm14:3). Assim, o mandamento divino é: “Acolhei ao que é débil na fé”, (Rm14:1). Devemos acolher aquele que Deus acolheu. Esse mandamento é claro, decisivo e abrangente”.
Ao retirar o apoio do London Group ao movimento Little Flock (Pequeno Rebanho), liderado por Watchman, a carta declarava: “Falhamos deploravelmente em nossa falta de zelo espiritual ao impor apressadamente nossas mãos sobre quem não conhecíamos suficientemente. Não somos capazes de caminhar ao vosso lado. Isso, naturalmente, também se aplica àqueles que mantêm relações de fraternidade conosco”.
A igreja de Shanghai ficou profundamente chocada e entristecida pela resposta negativa. O desgosto de Watchman tornou-se ainda maior quando percebeu que a carta havia sido assinada por seu amigo, Charles Barlow. As palavras de Zacarias 13:6, lhe vieram à mente: “Se alguém lhe disser: ‘que feridas são essas nos teus braços?’, responderá ele: ‘são as feridas com que fui ferido na casa dos meus amigos’”.

Qual é a missão da igreja?


Embora a decisão do London Group fosse entrincheirar-se em seu exclusivismo, o movimento Little Flock preferiu espalhar o evangelho além das fronteiras da China. Watchman e diversos colaboradores atravessaram o Rio Golden Sand rumo ao Tibet e foram calorosamente recebidos pelos aldeões. Quando muitos deles encontraram a Salvação em Cristo, o grupo traduziu a Bíblia para o tibetano e treinou líderes, para o estabelecimento de igrejas.
De modo similar, outras equipes evangelísticas de Shanghai, e logo já havia mais de trinta novas igrejas por todo o país. Após terem conquistado diversas localidades para Cristo, os evangelistas centralizaram suas atividades em uma casa pertencente a um cristão, alimentando os convertidos, durante todo o tempo, com transcrições dos sermões de Watchman e com artigos de sua revista. Seu dom de explicar questões doutrinárias usando uma linguagem franca e compreensível proporcionou a cada uma das igrejas locais uma base sólida para o crescimento.
Watchman e seus colaboradores concentraram seus esforços nessa meta de plantar igrejas constituídas de compatriotas que renunciassem a seus pecados e submetessem integralmente suas vidas ao senhorio de Cristo. À medida que uma das pequenas congregações crescia, presbíteros eram destacados com a missão de dirigir-lhe o ministério e alimentar o pequeno rebanho.
Uma das razões para o rápido amadurecimento das igrejas residia no fato de que cada cristão se tornava um participante ativo –  eles cresciam no conhecimento da Palavra estudando os livretos de Watchman.
Ele ensinava que o sistema claro-laicidade, com sua inerte divisão de hierarquia, classe e posição, não era condizente com as Escrituras e reduzia o cristianismo a uma forma de organização humana. Como foi corrompido o plano original do Senhor para Seu Corpo, o modelo eclesiástico ocidental, com seu sofisticado sistema de clero assalariado, acabaria sufocando o zelo dos novos cristãos na China. Watchman e seus colegas determinaram que não haveria distinção entre clero e laicidade nas igrejas Little Flock; todos eram sacerdotes conjuntamente. Eles também entendiam que o verdadeiro servo de Deus deveria viver pala fé, não como um funcionário contratado ganhando um salário.
Embora Watchman permanecesse fiel a essa crença pelo restante de seu ministério, sua preocupação em ajudar financeiramente muitos colaboradores (o que mais tarde precipitou uma crise real em sua vida) era crescente. De fato, em meados de 1937, o movimento mantinha em campo 128 apóstolos de tempo integral, evangelizando, estabelecendo igrejas e alimentando convertidos. Em seu coração o pastor Nee sentia-se responsável por todos eles.
No verão de 37, Watchman foi convidado a pregar o evangelho em Manila. Lá recebeu a notícia de que os japoneses tinham iniciado a invasão da China, em larga escala, começando pela ocupação de Pequim. A máquina de guerra nipônica, sob liderança do imperador Hirohito, havia sido estimulada pelos sucessos anteriores obtidos por Hitler e Mussoluni na Europa e na África.

Fazendo uso de estradas alternativas chegaram a Hong Kong, onde seus pais viviam. Ali alguns amigos missionários o convenceram de que era um momento oportuno para que fossem à Inglaterra. Havia um clamor entre diversos círculos cristãos na Grã-Bretanha para que seus escritos fossem traduzidos para o inglês. Após orar com sua família e esposa, Charity, a respeito desse assunto, retornou a Londres sem saber que sua esposa estava grávida.
Ao chegar, viajou com T. Austin-Sparks para o sul a fim de participarem da convenção ‘Aprofundamento da Vida Espiritual’, em Keswick. Havia sido convidado pelo diretor local da China Island Mission para orar pelo evento. Ao cruzar a plataforma para a oração, o pastor chinês, recém-exilado de sua cidade dilacerada pela guerra, passou pelo participante japonês. Todos os presentes, cientes da tensão, jamais se esqueceram do que ouviram:
“O Senhor reina. Nós afirmamos com segurança. Nosso Senhor Jesus Cristo está reinando, e Ele é o Senhor de tudo; nada pode afetar Sua autoridade. Forças espirituais pretendem destruir Seus interesses na China e no Japão. Sendo assim, nós não oramos pela China; tampouco pelo Japão; mas nós oramos pelos interesses de Teu Filho na China e no Japão. Não culpamos nenhum homem, pois eles são apenas instrumentos nas mãos de Teu inimigo. Nós defendemos a Tua Vontade. Ó Senhor, despedaça o reino das trevas, pois essas perseguições à igreja estão ferindo a Ti. Amém”.
O programa daquele dia foi encerrado com a celebração da Santa Ceia. Sob uma faixa onde se lia: “Unidade em Cristo Jesus”, Watchman compartilhou o pão e o cálice com seu novo irmão japonês. Diversos ingleses presentes testemunharam em primeira mão que Watchman Nee de fato vivia de acordo com o espírito da carta que havia escrito 3 anos antes para o London Group.


Oração indefinida – Resposta indefinida


A Europa oscilava à beira de uma nova guerra mundial. Watchman observava como a timidez dos Estados Unidos e de outras democracias ocidentais infundia em Hitler a confiança para levar adiante seu mal disfarçado plano de conquistar o mundo. Diante da hesitação das democracias em se envolver, a Alemanha, a Itália e o Japão formaram o que se tornou conhecido Eixo Roma-Berlim-Tóquio.

Na condição de um forasteiro na Inglaterra, Watchman pressentia que o fim do mundo estava próximo. Ele aproveitou esse período para orar e aprimorar seus conhecimentos referentes à Segunda Vinda de Cristo. Uma parte de seu próprio mundo realmente chegou ao fim quando recebeu uma carta de Charity, ainda em Hong Kong, revelando sua gravidez e contando que havia acabado de sofrer um aborto natural.
Watchman não tinha meios de saber que ela não conceberia outra vez, apenas pensava em seu sofrimento sem sua presença. Mas, com o recrudescimento da guerra sino-japonesa, ele foi forçado a prolongar sua planejada estada na Europa.

A igreja na Inglaterra e o seu excesso de organizações missionárias eram deficientes quanto ao discipulado. Com a franqueza e a facilidade de expressão que lhe eram características, Watchman escreveu o livro examinando a partir das Escrituras as diretrizes de Deus para a vida eclesiástica. Sua publicação representou um sopro de ar fresco a um grande numero de obreiros cristãos, incutindo-lhes a esperança de que construir “igrejas vivas e vigorosas” era o único modo de preservar os resultados de seus trabalhos. Em maio de 1939, na mesma época que Watchman estava prestes a deixar a Inglaterra para retornar à companhia de Charity, Rethinking the Work, (ao pé da letra, Repensando o Trabalho), foi publicado em Londres, gerando críticas entusiasmadas no meio eclesiástico. Para um homem que desdenhava a popularidade, descobriria que permanecer anônimo em sua terra natal seria mais difícil do que jamais fora.

Era bom estar de volta em casa, mas Shanghai nem de longe lembrava a cidade animada e mercantilizada que ele havia deixado. Os centros comerciais estavam em ruínas e as ruas infestadas de mendigos. Watchman percorria os becos à procura dos perdidos e abandonados. Não era raro encontrá-lo num dia chuvoso, acocorado sob a marquise de uma loja semidestruída, rindo e conversando com os mais variados tipos de trabalhadores agora maltrapilhos. Distribuía sopa e pregava-lhes o Evangelho de Cristo. Nessa época escreveu a um amigo:
“Descobri que muitos já se tornaram mais endurecidos, a fim de se protegerem. E alguns dos cristãos em melhor situação têm louvado o Senhor, pois não estão sentindo quaisquer dos sofrimentos que os cercam. Quanto a mim, devo confessar que estou sensível a todo tipo desses padecimentos; apenas estou me ancorando no Senhor”. Depois disse: “Mesmo que uma pessoa tivesse mil corações, o que vem acontecendo à nossa volta já seria o suficiente para quebrantar todos eles. Contudo, meu Pai, é Deus! Nunca aprendi a amar tanto a palavra ‘Deus’ quanto amo hoje. Deus!”.

No domingo seguinte à invasão da Polônia pelos alemãs, Watchman falou ao seu rebanho sobre uma arma para a qual não havia defesa. “A oração pode fazer tudo aquilo de que Deus é capaz. Cada um de vocês precisa agora crer nisso mais do que jamais creu. A situação na Europa só irá piorar e nosso próprio país está sendo arrancado de nós. Mas as armas que devemos usar para retaliar não são as armas do mundo. ‘Porque as armas de nossa milícia não são carnais, e, sim, poderosas em Deus, para destruir fortalezas’. Precisamos aprender a ser um povo de oração...
“Precisamos aprender a orar especificamente. Orações indefinidas resultam em respostas indefinidas. Apesar disso, alguns oram com um objetivo específico em mente e ainda assim não recebem resposta. Algum de vocês pode pensar num motivo para isso?”... “Você está certo meu irmão. Mas quem é esse homem que guarda lugar para o pecado em seu coração? Ele não é o homem em Rm 7, que faz o que odeia. Ele falha, mas ele odeia aquela falha, arrepende-se sinceramente por ela ter acontecido e resolve não mais agir do mesmo modo. Mas o homem que guarda lugar para o pecado em seu coração é aquele que não vai abandonar seu pecado, nem em sua conduta, nem em seu coração. Ele se arrepende somente quando é apanhado. O Senhor é Santo, por isso Ele não ouvirá a oração de tal pessoa... Vocês devem achegar-se ao Senhor, dizendo: ‘Eis aqui um pecado que meu coração acha difícil abandonar, mas agora peço o Teu perdão. Estou disposto a abandoná-lo; peço-Te que me libertes dele para que ele não permaneça em mim. Eu não o quero e me oponho a ele’. O Senhor perdoará seu pecado se você o confessar a Ele”.
“Mas pr, e se eu tiver feito todas essas coisas e ainda assim não receber a resposta? Tenho orado diariamente por 3 anos para que os japoneses se retirem de nossa terra...” perguntou  Peace Wang.
“Uma oração de 3 anos é menos urgente para Deus se a necessidade permanece? Nosso Senhor disse que devemos ‘orar sempre e nunca esmorecer’. A razão pela qual a viúva em Lc18 tanto insistiu em bater à porta foi o fato de ela ter permanecido fechada. Mas sua persistência finalmente fez que a porta se abrisse. Devemos continuar orando até que, como aconteceu na parábola, o Senhor observe a nossa insistência. Não se trata de um sinal de incredulidade, mas simplesmente de um outro tipo de fé.
“Contudo, irmã Wang, a questão que você levantou é precisamente a razão de eu ter chamado todos aqui: por que devemos orar a respeito da guerra? Dirijo-me a vocês não como chineses, mas como homens e mulheres em Cristo... Portanto, devemos saber como orar. Deve ser possível para cristãos britânicos e germânicos, chineses e japoneses, ajoelharem-se e orarem juntos, e dizerem todos ‘amém’ ao que for pedido. Caso contrário, deve haver algo errado com nossa oração. Podemos lembrar a Deus sobre a atitude do Japão em relação a Ele, mas também devemos lembrá-Lo de que, na China, cristãos e missionários têm grande intimidade com o Estado corrupto. Na última guerra européia, houve muitas orações que desonraram a Deus. Não vamos incorrer nesse erro.
“A igreja deve estar acima das questões nacionais e dizer: ‘Nós, aqui, não pedimos uma vitória chinesa nem japonesa, Ó Senhor, mas tudo o que possa favorecer uma coisa que é preciosa para Ti: o testemunho de Teu Filho’. Uma oração assim não contém palavras vazias. Se toda a igreja orasse dessa maneira, logo a guerra poderia estar decidida ao modo de Deus”.
O pr Nee nunca permitiu que seu rebanho encarasse os japoneses ou os países do Eixo como seus inimigos. Sob a sua liderança a igreja de Shangai tornou-se pequena para a realização dos cultos. Foram esses, provavelmente, os melhores anos que a igreja em Shanghai conheceria, e os mais felizes do ministério de Watchman e Charity. Ela permanecia nos bastidores, envolvida no ministério pessoal. Watchman era um homem em constante movimento. Estudava as Escrituras, escrevia artigos para revistas, panfletos evangelísticos, manuais de instrução para seus colaboradores e ensinava numa infinidade de classes, acerca do estilo de vida cristão.


O cristão e as Guerras


O crescimento do movimento Little Flock, e o da igreja de Shanghai, gerou oposição. As acusações contra Watchman eram infundadas, uma vez que ele flexibilizava ao máximo seus horários da igreja e frequentemente obedecia à direção do Espírito ao programar seus encontros. Foi acusado de ser “ladrão de ovelhas”, pois muitos saiam de seus trabalhos e se uniam a seu ministério.
Um compatriota, alegando ter “informações secretas”, publicou um panfleto dizendo que Nee estava recebendo grandes montantes de capital estrangeiro, acusando-o de malversação desses fundos. Para piorar, um amigo missionário, invejoso, virou-se contra ele e redigiu um artigo para uma revista de grande circulação, atacando injustamente tanto sua pessoa quanto seu trabalho.
Ao ser aconselhado a defender-se, Watchman disse: “Se eu provasse que estou certo, ficaria provado que meu irmão está errado; mas que vantagem haveria no fato de meu irmão estar errado? Não, eu fui prevenido pelas Escrituras de que ‘todos quantos quiserem viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos’. Não posso esperar menos que isso”. Sua propensão para o otimismo seria de grande ajuda durante os tempos difíceis que estavam por vir.
O Japão vinha tentando conquistar a China desde o fim da década de 30. Embora a ocupação nipônica abrangesse grande parte da China oriental, os chineses não se renderiam. Assim, quando a guerra eclodiu na Europa em 1939, o Japão vislumbrou a oportunidade de expandir-se em outra direção, confiscando colônias européias no sudeste da Ásia. Os Estados Unidos intervieram a fim de deter a agressão japonesa, proibindo a venda de material potencialmente bélico ao Japão; aço, ferro e óleo para aviação.  Como o Japão sofrendo os efeitos do boicote, o general Tojo Hideki decidiu tomar uma atitude drástica.
Ele ordenou um ataque surpresa à esquadra americana em Pearl Harbor, Havaí. Na manhã de 7 de dezembro de 1941, os bombardeiros japoneses destruíram ou danificaram 19 navios, despedaçando os aviões americanos ainda em solo, matando mais de 2400 pessoas, entre soldados e civis. No dia seguinte, em Shanghai, os japoneses afundaram as canhoneiras americanas e britânicas em Whangpoo Harbor e realizaram um ataque relâmpago sobre 5 milhões de habitantes.
Quando os japoneses se preparavam para invadir Hong Kong, Nee recebeu a notícia do falecimento de seu pai, vítima de um ataque do coração. Triste e temendo pela segurança da mãe, ele partiu para providenciar o funeral.
Ao retornar à igreja em Shanghai, encarou uma crise financeira violenta. A ocupação da China oriental paralisou o comércio. O suporte financeiro advindo dos membros da igreja praticamente não existia mais, numa época em que centenas de igrejas recentemente plantadas precisavam de sustento e milhares de recém-convertidos necessitavam não só de cuidados espirituais, mas de dispendiosa educação cristã. Nessa época o movimento Little Flock abrangia 70 mil membros em 700 congregações. Watchman era responsável por 128 “apóstolos” de tempo integral, pastores itinerantes que percorriam as estradas implantando novas igrejas e evangelizando. Só a igreja em Shanghai mantinha mais de 200 colaboradores.
Alguma ajuda veio da Inglaterra, mas Watchman sabia que o movimento estava em perigo. Ele e Charity oravam incansavelmente e foram respondidos. Seu irmão George, um químico com seus próprios laboratórios de pesquisa, convidou Watchman a tornar-se seu sócio na instalação de uma companhia farmacêutica em Shanghai.
Watchman não tinha como saber que isso levaria a seu aprisionamento, tortura e morte nas mãos dos comunistas. De fato, devido a decisão, ele começou a enfrentar uma sucessão de desastres. Tudo o que sabia era que a oportunidade era conveniente.
Nos primeiros meses de 1942, o China Biological Laboratories (CBC) foi inaugurado. Um dos pioneiros na fabricação de drogas sintéticas no país, o CBC empregou muitos dos colaboradores e apóstolos de meio-expediente de Watchman, ajudando-os com os salários que mantiveram seus ministérios. Na condição de presidente do quadro de diretores recentemente formado, Watchman estava sempre em trânsito, entre reuniões de negócio e os afazeres da igreja.
Não demorou para que seu amigo Faithful Luke e uma delegação de colegas o procurassem em sua modesta casa: “Meu caro To-sheng, por que você abandonou a obra para dedicar-se ao comércio?”.
“Você nunca foi um homem de meias palavras, meu velho amigo, mas estou simplesmente fazendo o que meu irmão Paulo fez em Corinto e Éfeso. Trata-se de algo excepcional e em meio expediente. Dedico uma hora por dia ao treinamento dos representantes da empresa; após esse período trabalho na obra do Senhor”.
Chen Zexin, um dos colaboradores mais chegados a Nee, observou: “Mas quando Paulo fazia suas tendas, tratava-se de um trabalho manual. Você está dirigindo uma grande empresa. É preciso um compromisso total. O tempo dedicado ao Senhor está comprometido. Você deve reconsiderar”.
Watchman baixou o olhar e disse com tristeza: “Sou como uma mulher que perdeu o marido e precisa trabalhar fora por necessidade financeira.”
Inevitavelmente, os presbíteros, incluindo seu amigo dr Yu, classificaram-no como renegado. Segundo a opinião deles, aquele que havia ajudado a fundar a igreja de Hardoon Road agora era considerado inapto para pregar lá. Mais uma vez, Watchman sentiu-se profundamente magoado, traído por seus amigos, mas resolveu prosseguir silenciosamente provendo suporte financeiro aos colaboradores que eram dependentes dele.
Assim, como era de costume, aceitou os acontecimentos como a própria disciplina de Deus e preferiu o silêncio à autodefesa.
Numa ocasião, um jovem perguntou por que ele aceitava seu destino sem revidar. Obteve uma resposta no clássico estilo Watchman Nee:
“Um dia você verá que é preciso tempo para que a vida real amadureça. A não ser que se possua uma mente larga, a juventude não pode fazer muito em termos de amadurecimento. A maturidade é uma questão de ampliação da capacidade. Você deve permitir que Deus lhe conceda tempo para sofrer desmedidamente; então sua capacidade será ampliada...
“Uma pessoa descobre se uma fruta está verde ou madura quando a morde. A fruta verde é azeda e amarga, sendo também dura e difícil de morder. Somente a fruta madura é doce e aromática. A fruta requer tempo para amadurecer, e o amadurecimento de um cristão requer tempos difíceis. Eis porque nunca devemos tentar nos esquivar da disciplina do Espírito Santo. Esquivar-nos dela nem que seja por uma única vez significa desperdiçar uma oportunidade de ampliarmos nossa capacidade. Isso prolongará o tempo necessário ao amadurecimento da vida em nós e até mesmo exigirá que retomemos essa lição a fim de alcançarmos a maturidade”.
“O senhor está me dizendo que eu devo esperar ansioso pelas dificuldades”?
“Eu nada estou pedindo. As Escrituras afirmam; ‘Meus irmão, tende por motivo de toda a alegria o passardes por várias provações’. O fato é que você nunca voltará a ser o mesmo após passar por um sofrimento. Ou você terá sua capacidade ampliada ou se tornará mais calejado. Por essa razão, quando estiver passando por uma fase difícil, procure prestar atenção. Sempre faço a mesma pergunta aos meus amigos após eles terem passado por algum tipo de sofrimento: ‘O que você aprendeu do Senhor?’.”

Ele não só foi impedido de pregar, como, sua amiga, Ruth Lee convencida a abandoná-lo. Nee não se deixou vencer. Ele e George transferiram a fábrica para Chungking, onde adquiriu uma área que foi destinada ao treinamento de pastores leigos. Sua intenção era estimular o despertamento espiritual nas províncias não controladas pelo Japão. Esses 3 anos foram investidos em viagens entre Shanghai e Chungking. Cumpria a dupla função de dirigente de um empreendimento bem sucedido, que empregava refugiados cristãos e seus próprios colaboradores, e de evangelista itinerante com zelo de discipulador.
Nesse meio tempo, a igreja de Hardoon Road sofria sem sua liderança. A ocupação japonesa havia tornado quase impossível os encontros habituais. Watchman tomou conhecimento da situação e desejou ardentemente estar lá para ajudá-los. A igreja prosseguia a passos trôpegos enquanto a atenção do Japão estava voltada para o ocidente.
Em 6 de agosto de 1945, Hiroshima foi alvo de ataque atômico pelos americanos. Em que 70 mil pessoas morreram. Três dias depois, outra bomba em Nagazaki, 40 mil pessoas foram ceifadas. O imperador Hirohito foi obrigado a render-se em 7 de setembro. Uma semana depois o Japão iniciou sua retirada da China.
Watchman podia retomar sua viagens e dar prosseguimento a seu ministério longe de Shanghai. Ciente que continuava ‘banido’ de sua igreja, o casal Nee voltou para Foochow. Transformaram a pequena propriedade de sua infãncia num centro de treinamento para obreiros. Ao mesmo tempo afastou-se da CBC, transferindo as operações para seu irmão e certificando-se de que seus rendimentos futuros continuariam a ser remetidos a vários ministérios. Sabia que sob a influência de Witness Lee a igreja de Shanghai retomaria seu crescimento e o enviou para lá. As famílias que se reuniam às escondidas em “igrejas domésticas” retornaram aos cultos.
Ainda assim, Watchman permaneceu nas sombras, estudando a Bíblia e redigindo novos manuais de treinamento que não sabia se seriam lidos um dia. Muitos cristãos continuavam confusos com relação às mentiras que foram levantadas contra o pr Nee porque ele nunca se defendeu.
Watchman não arredou pé: “Sendo o caminho dos homens agradável ao Senhor, este reconcilia com eles os seus inimigos”. Confidenciou: “Deixei a questão nas mãos de Deus”.
No fim de 1946, Witness abordou os presbíteros: “Vocês estavam no Espírito, quando decidiram rejeitá-lo? E qual foi o resultado? São capazes de afirmar hoje que aquela decisão trouxe vida?”. Depois de um ‘não’ a cada pergunta, um dos colaboradores confessou: “O caso do irmão Nee feriu-nos mortalmente, e não há palavras para descrever o alcance das conseqüências. A acusação de que ele colaborou com o inimigo é totalmente infundada e muitas coisa que têm sido ditas não se baseiam em fatos concretos. Tudo isso foi obra do demônio e serviu para expor nossa própria deficiência espiritual naquela época, mas esperamos ter podido aprender a lição”.
Enviaram uma mensagem convidando o pr Nee a dirigir uma conferência bíblica. Com alegria contagiante, ele aceitou o convite imediatamente. Após terem se confessado mutuamente e assegurado uns aos outros o perdão, a reconciliação estava completa.


Ainda Há Tempo...


Em 47, o exército do Governo Nacionalista de Chiang Kai-shek lançou ofensiva contra Mao Tse-tung e o Partido comunista Chinês. Após tomar a cidade, anunciaram sua vitória. Tudo não passou de bazófia. Os comunistas eram guerrilheiros experimentados, tendo apenas efetuado uma retirada estratégica.
Watchman sabia que mesmo o governo nacionalista sendo corrupto, era melhor para a igreja estar sob seu regime do que se os comunistas assumissem o poder. Até mesmo a ocupação japonesa era preferível. Ele sabia das conseqüências para o cristianismo caso um governo ateísta e hostil tomasse o poder. Ele e seus amigos permaneceram em oração.
Poucos meses depois o Exército de Libertação do Povo marchou através da China e dizimou os nacionalistas. O pr Nee percebeu o perigo que se aproximava e a importância do tempo que restava. Seus amigos insistiram que ele fugisse para Taiwan, mas ele jamais hesitou diante de seu chamado: fazer que o evangelho de Jesus Cristo penetrasse toda a China. Ao contrário, sua determinação se fortaleceu.
Reuniu seus colaboradores e revelou um plano elaborado junto com Witness: o “evangelismo de migração”; um conceito apresentado no livro de Atos: “Quando Deus espalhou Seu povo pelo mundo afora através da perseguição, havia milhares de cristãos em Jerusalém e um movimento constante no exterior. Não obstante, quando Paulo retornou a Jerusalém, aquele mesmo número imenso de cristãos ainda se encontrava lá. Não devemos permanecer estacionados. Devemos nos pôr em movimento e abrir caminho para outros, para que sejam acrescentados tantos mais quanto os que se moveram. Hoje, 1947, a china possui cerca de 450 milhões de habitantes e apenas 1 milhão de cristãos. Ministre a todos os cristãos o mesmo treinamento, envie-os a campo, e veremos a igreja proclamando o evangelho por toda parte. Eles não precisam esperar pela perseguição. Seja ou não através da perseguição, eles precisam sair a campo”.
Sabia que a perseguição estava próxima, mas pensava que Deus poderia poupá-los tempo suficiente para ganhar a China: “Eu creio que dentro de 14 ou 15 anos, toda a China pode ter sido ganha através do evangelho. Vamos dar o melhor de nós para que isso aconteça. ‘Dai a Deus o que é de Deus’.” A reação foi sem paralelos na história da igreja chinesa. A frase gerou uma expansão de doações sacrificiais. Alguns seguiram o seu exemplo e transferiram fábricas inteiras, negócios e empresas para o movimento. O registrado em Atos 4 se repetiu, muitos cristãos entregaram jóias, roupas e economias de toda a vida para a causa do evangelho.
Tendo como cenário a guerra civil, os cristãos se reuniam para sessões urgentes de treinamento antes que famílias inteiras de “emigrantes” deixassem Shanghai e Foochow rumo ao interior para evangelizar e implantar novos centros de fraternidade. Watchman e seu quadro de professores trabalhavam dia e noite, preparando lições e treinando os obreiros quanto às qualificações de um servo cristão, o ministério da Palavra de Deus, o problema da doença, como ganhar almas, como estabelecer uma igreja e como estudar a Bíblia. O sentido de urgência que ele transmitia ampliava tanto a profundidade do compromisso quanto o nível de entusiasmo dos participantes. Ele redigiu um editorial em sua revista de Shanghai que dizia: “Estamos vivendo dias críticos, além de qualquer coisa que já tenhamos pensado”.
Os resultados foram extraordinários. Centenas de famílias mudaram-se após o treinamento; em 1948, mais de 200 congregações haviam sido estabelecidas para o Reino. A generosidade dos novos convertidos chamou a atenção do partido comunista, para o qual o termo “capitalista” equiparava-se a “inimigo” e que alimentava graves suspeitas contra quem acumulasse riquezas.
Em 31-12-49, o Exército de Libertação do Povo marchou sobre Pequim sem resistência. Quando alcançaram o sul da capital de Nanking, os piores temores de Nee se cumpriram. A China logo estaria sob o regime comunista. Watchman reuniu os cristãos e, após muita oração, sentiu a resposta. Sabia que dispunha de algumas semanas antes do Exército chegar a Shanghai, e decidiu não perder tempo. “Ainda há tempo para pregar o evangelho”!
Decidiu enviar seus colaboradores mais confiáveis para as regiões onde teriam liberdade por mais algum tempo. Witness iria para Taiwan, Faithful para Cingapura, Simon Meek para Manila e sua amada Charity para Hong Kong.
“Mas, o que você vai fazer?” – perguntaram.
“Meu chamado não mudou, meus caros irmãos. Não sou grande coisa como pastor, mas permanecerei com meu rebanho”.
“Se você ficar, poderá ser o fim”.
“O fim desse mundo é o começo de um melhor. E, além disso, lembre-se daquilo que Peace Wang sempre diz: ‘O Senhor preside aos dilúvios, como rei presidirá para sempre!”(Sl29:10).
Witness tentou de novo: “Mas se você não se importa com sua vida, então importe-se conosco, que precisamos de você!”.
Esforçando-se para escolher bem as palavras, Watchman respondeu: “Se eu me importasse menos com vocês, eu me importaria mais com minha vida. Nas atuais circunstâncias, somente uma coisa realmente importa: se a casa está ruindo, tenho crianças dentro dela e devo protegê-las, com minha própria cabeça, se for preciso. Precisamos aproveitar ao máximo cada oportunidade, pois os dias atuais são difíceis.‘... remindo o tempo, porque os dias são maus’. Nós desperdiçamos chances demais no passado. A cada dia Deus nos concede mais oportunidades. Remir o tempo significa nos apegarmos hoje às oportunidades que Deus nos tem apontado. Quando a igreja enterra um talento ocorre uma perda séria. Pensamos que, pelo fato de nosso novo salão de culto estar pronto, podemos sossegar pelo resto da vida. Nós pregamos, 10 ou 20 almas são salvas e pensamos que nos saímos bem. Mas se a intenção do Senhor era a de que ganhássemos mil almas em um dia, então 990 foram perdidas. Quando Deus Se move, também devemos nos mover”.
E eles se moveram. Os apóstolos, pastores e evangelistas das igrejas Little Flock redobraram seus esforços; o evangelismo tornou-se sua mais alta prioridade.
Nesse tempo, Mao Tse-tung ocupava a presidência do Partido Comunista Chinês, tendo Chou En-lai como seu primeiro-ministro. Sob a liderança dos dois, em 25 -05, entraram em Shanghai e mudaram a vida dos cristãos. Fecharam todas as igrejas dos vilarejos na periferia da cidade. Detinham grandes levas de pessoas e instauravam julgamentos populares para proprietários de terra, comerciantes bem sucedidos. Após executarem suas vítimas, suas terras e posses eram confiscadas e redistribuídas entre os camponeses pobres e trabalhadores comuns. Era somente uma questão de tempo para que voltassem sua atenção para Watchman Nee.
En-lai começou convocando 3 líderes protestantes liberais para uma reunião privada. Delinearam um documento que marcaria o inicio da derrocada do verdadeiro cristianismo na China, segundo as expectativas do presidente Mao. O documento, Manifesto Cristão para as Igrejas Protestante explicava os princípios do “novo movimento cristão”. Esse ficou conhecido como Movimento Reformista de Autonomia Tríplice da Igreja de Cristo na China, em Oposição à América e de Ajuda à Coréia. O objetivo de Mao era absorver a igreja expulsando todos os missionários estrangeiros e tornando-a autônoma, auto-sustentável e auto-difundida. Nomes como “Deus” e “Jesus” não poderiam ser mais usados, a única publicação permitida era governamental, significando o fim do ministério editorial de Nee. O tempo era curto e ele sabia disso.
No fim de 1951, Watchman pregava um de seus últimos sermões gravados:
“Considerem o milagre da multiplicação dos pães e peixes. A questão não era a qualidade de material em mãos, mas a bênção que dela adveio. Mais cedo ou mais tarde devemos reconhecer que o que conta não é a situação de nossas posses ou a quantidade de nossos talentos. É somente a partir da bênção do Senhor que o homem obtém seu sustento. Um dia, nossos próprios recursos, nossa capacidade, nossa fidelidade, todos eles nos proclamarão sua falta de sentido intrínseco. O tremendo desapontamento que os dias vindouros trarão, deixará exposta nossa total insuficiência. Essa lição, meus amigos, não é facilmente aprendida. As esperanças de tantas pessoas ainda estão concentradas nos poucos pães em suas mãos, não na bênção do Senhor. O que temos em mãos é tão pouco que chega a ser desprezível, mas ainda assim continuamos a contar com isso; e quanto mais o fazemos, mais difícil a obra se torna. Meus irmãos e irmãs, os milagres advém da bênção do Senhor. Devemos ser capazes de confiar na bênção de Deus e aguardá-la. E muitas vezes descobriremos que, mesmo tendo feito uma grande trapalhada em relação às coisas, de algum modo tudo permanece bem. Uma pequena bênção pode nos fazer prosseguir, mesmo em meio a uma grande dificuldade.
“O que é uma bênção? É a obra de Deus onde não existe nada ou ninguém que possa responder por Sua obra. Muitos de nós apenas esperam resultados valendo-se da própria capacidade, mas a bênção é um fruto que não tem correspondência alguma com o que somos. Não se trata meramente de um trabalho envolvendo causa e efeito, pois se tomamos como referência para avaliação aquilo que investimos, simplesmente obstruímos o caminho através do qual Deus opera além de nossa avaliação. Se, por outro lado, confiarmos de todo coração na bênção do Senhor, descobriremos que coisas acontecem e que são totalmente dissociadas de nossa capacidade, superando até mesmo os nossos sonhos. Amados vocês devem buscar Sua bênção hoje. A única garantia com a qual vocês podem contar em relação ao amanhã é a de que serão perseguidos por viverem uma vida piedosa em Cristo Jesus. Em breve chegará o momento em que suas capacidades de nada adiantarão para salvá-los. Chegará ainda o momento em que vocês acreditarão que tudo está terminado. Mas com Sua bênção sobre vocês, será apenas o inicio”.
Os meses subseqüentes testemunharam o recrudescimento do domínio comunista sobre a China. Em abril de 51, milhares de intelectuais de Shanghai foram presos e remitidos a um programa de “reeducação ideológica”. Muitos cristãos foram detidos, dentre eles alguns colaboradores de Watchman. Chou En-lai estava tomando coragem para se opor ao pastor mais amado da China.
Cinco dias depois, o periódico Tien Feng publicou uma ordem para que a igreja participasse de encontros de acusação. As igrejas foram intimadas a censurar publicamente e a entregar às autoridades todos os “elementos imperialistas e seus patéticos colaboradores” e, desse modo, demonstrar que eram dignas de se aliar à Reforma de autonomia Tríplice da Igreja.
Em agosto, o Tien Feng vangloriava-se de que já tinham acontecido 73 encontros de acusação. Cada encontro era marcado por discursos acusatórios previamente ensaiados, para difamar determinados cristãos em particular, objetivo era caluniar o cristianismo. Esse movimento ganhava força e a igreja que se recusasse a participar era observada cuidadosamente. Uma a uma as igrejas foram sendo absorvidas. Depois de enfraquecer severamente a infraestrutura da igreja, foi o momento de atacar o seu líder mais popular. Em novembro o jornal publicou um artigo intitulado A Revelação da Organização Secreta e das Ações Obscuras da Igreja Little Flock. O que surpreendeu o pr Nee foi ter sido escrito por uma de suas congregações.
Após ler o artigo, Ruth Lee perguntou o que ele faria para se defender. Ele respondeu: “Você mais do que ninguém sabe como Deus lidou comigo no passado. Após ter sido afastado da comunhão em Foochow quando era jovem, seguiu-se um grande reavivamento naquela região. Então o Senhor lançou mão de uma séria enfermidade a fim de ajudar-me a decidir se iria devotar minha vida á igreja local em vez de tornar-me um evangelista popular. Depois contra a guerra contra o Japão, Ele forçou-me através de meus próprios amigos a retirar-me do ministério por uma temporada, com o intuito de trazer-me de volta com maior energia e entendimento. E agora, isso. Por que essa experiência seria diferente de todas as outras? Não, cara Ruth, eu não vou retaliar. Ela contém todos os sinais de que Deus está trabalhando novamente em minha vida. Ele tem mais a me ensinar e eu não vou recusar a dádiva. Além disso, sempre há alguma verdade em cada crítica”.
Watchman e seus colaboradores começaram a correr contra o relógio, preparando material bíblico para os cristãos que fossem deixados para trás. Os obreiros dormiam em média 2 hs por noite, enquanto Watchman ditava novas lições para Ruth Lee e seus assistentes. Ele andava de um lado para outro, expondo a Palavra de Deus até as primeiras horas da manhã. Já praticamente sem voz, desabava na cama para um rápido cochilo antes de se levantar e retomar a tarefa. Essa rotina prosseguiu até que o inevitável som dos coturnos dos soldados ecoou por sua rua. Watchman deu um abraço em Charity, despediu-se dela e gritou para os amigos: “Avisem a todos em Hong Kong para desvincularem da igreja todos os negócios seculares”. Foi detido pelo Departamento de Segurança Publica em 10 de abril de 1952, sob a acusação de capitalismo ilegal. Tinha 50 anos e nunca mais conheceria outro momento de liberdade humana.


Camaradas cristãos


Watchman não se queixava dos ratos que infestavam sua cela, da comida intragável, da privação do sono ou dos demais sofrimentos de sua vida na prisão. Mas sentia falta de sua amada Bíblia. Foi a primeira coisa que tiraram dele. Por ter sido mantido em regime fechado e incomunicável, pouco se sabe dos sofrimentos a que foi submetido nos 20 anos que se seguiram. Mesmo que tivesse recebido permissão para escrever sobre suas condições, jamais teria revelado seu padecimento. Agnus Kinear relata em Against the Tide:
“Tentativas ferozes foram feitas com o intuito de reeducá-lo de acordo com a neurose nacional; uma renúncia indolente a toda a liberdade de pensamento. Dispomos de abundante documentação referente aos métodos de reeducação ideológica então em uso: as longas horas de interrogatório, as preleções políticas, os implacáveis carcereiros, a ocupação de celas por ‘camaradas estudantes’ persuadidos e convertidos, e o estridente e rancoroso falatório nos encontros dos grupos de debate. O fato de não ter havido nenhuma mudança em seu coração e nenhuma confissão de utilidade prática diz muita coisa a respeito da permanência do poder de Deus dentro dele”.
Até a época do encontro de acusação, as autoridades já tinham produzido um processo judicial de 2.296 páginas. As acusações iam de intriga imperialista e espionagem em prol de atividades contra-revolucionárias hostis à política do governo até atentado à moralidade e irregularidades financeiras. Os comunistas fizeram tudo o que puderam para instigar os membros da igreja a denunciá-lo. Mas recolheram poucas e absurdas declarações que pudessem ser levadas a sério.
Quando Ruth Lee, Peace Wang e o dr C. H. Yu foram intimados perante a congregação, recusaram-se a fazer qualquer acusação. Foram presos junto com vários outros membros da igreja. Na semana seguinte pelo menos mais 30 líderes foram presos. A ordem era fazer uma varredura na igreja Little Flock por toda a China, assim 2000 cristãos foram encarcerados, muitos nunca mais foram vistos.
Watchman permaneceu diante de seus acusadores designados pelo governo por 12 dias. Ele permanecia em silêncio. O jornal de Shanghai, publicou uma charge editorial com a legenda “Dai”. Trazia um desenho de uma casa de dois andares, com pessoas no andar de cima sendo achacadas por um ladrão mascarado sentado na escada, exigindo que elas jogassem todos os seus bens em um funil rotulado: ‘Dai a Deus o que é de Deus’. Ali tudo era jogado, inclusive uma bata chinesa e um casaco tirados do próprio filho em lágrimas. Uma faixa no chão dizia: Para Obra da Contra-Revolução. Uma caricatura do pr Nee junto aos relógios, joias... e uma prostituta em seu colo.
Após o ataque da mídia os líderes da igreja foram intimados a tomar medidas especiais informando aos cristãos os “crimes de Watchman Nee”. Na edição de fevereiro, o Tien Feng publicou um artigo de 11 páginas expondo os supostos vícios do pr Nee: Expulsem os Impiedosos lobos da Igreja.
Um programa sistemático de “lavagem cerebral” dos membros das igrejas Little flock por toda a China foi posto em ação logo em seguida. Aos cristãos era concedida a oportunidade de confessar publicamente suas más ações e de aliar-se ao Movimento de Autonomia Tríplice. Muitos dos que se recusavam eram detidos e desapareciam. Todos os encontros de oração, estudos bíblicos e outras atividades cristãs não autorizadas em residências particulares foram declarados ilegais e severamente reprimidos. Os pastores itinerantes foram declarados foras-da-lei e caçados. Demorou pouco para que a “reorientação” da congregação de Watchman fosse considerada completa. Sua adesão ao Movimento veio logo. O governo podia afirmar: “toda a igreja da China encontra-se sob uma única autoridade”.
O nome de Charity estava na lista dos “procurados”. Mas, doente devido ao estresse e prestes a perder a visão por causa da hipertensão, foi internada sob vigilância, tão logo se recuperou foi detida e encarcerada. Watchman não tinha como saber de seu sofrimento.
Watchman ajustou-se à rotina de tortura psicológica. Seu dia era dividido em 3 turnos de 8hs: trabalho forçado, ‘reeducação”, solidão. O inverno impingia-lhe um frio congelante e o verão, calor insuportável, mas mantinha-se vigilante e procurando coisas rastejantes para completar sua alimentação. Após alguns anos de semi-inanição, estava esquelético, mas sua mente permanecia afiada e seu espírito, indomável.
Recusava-se a denunciar qualquer de seus colaboradores, (Ruth Lee e Peace Wang permaneciam presas por não mentirem sobre ele) e, mesmo sob pressão, mantinha-se firme na fé e íntegro. Enquanto os auto-falantes berravam propaganda ideológica, ele recitava as Escrituras em voz alta e conservava sua mente na paz de Cristo. Vários prisioneiros libertados informaram que dormiam embalados pela doce voz de barítono que entoava canções baseadas na Bíblia, compostas por ele.
Embora o “Grande Salto a Frente”, do presidente Mao incluísse o fechamento de todas as igrejas e a extinção do cristianismo, a fé irreprimível continuava a expandir-se em pequenos focos de resistência por toda a China. Um reavivamento eclodiu entre estudantes alimentados pelos escritos de Watchman. Tal como ele, esses jovens memorizavam capítulos e livros inteiros do NT – para o caso de serem presos e privados de suas Bíblias. O Tien Feng informou que a polícia estava descobrindo “atividades pecaminosas” de contra-revolucionários em toda a parte, tais como cura pela fé e expulsão de demônios.  Naquele ano o livro de Watchman, A Vida Cristã Normal, foi publicado na Índia, e um trabalho teve inicio ali.
Originalmente sentenciado a 15 anos, que expiraram em 1967. Charity havia sido libertada em más condições de saúde e esperava o retorno do marido. Cristãos de todo o mundo estavam orando, mas nenhuma notícia surgiu.
Um comunicado chegou à igreja de que a República Popular recebeu uma oferta de resgate por parte dos cristãos ocidentais e da Ásia. O texto dizia que o governo estava propenso a deixar que o casal Nee “desertasse para o ocidente mediante o pagamento”. Assim que a esperança brotou, foi publicado que o acordo era fora de questão. Aqueles que conheciam o pr Nee não se surpreenderam. Ele não se furtaria a qualquer sofrimento que Deus houvesse planejado para ele.
Em maio de 1968, um refugiado chinês buscando asilo no ocidente contou que havia sido guarda carcerário no Primeiro Centro de Detenção em Shanghai. Lá, ele fora testemunha do ódio dos piores criminosos da China, e que não esperava encontrar ali um filho de Deus. Mas, através do testemunho inabalável de um prisioneiro de longa data, um certo “Nee To-sheng”, ele havia aceitado Jesus como Senhor e Salvador. É óbvio que Watchman nunca encarou a prisão como uma ‘punição’ por pregar o evangelho, mas, em vez disso, como uma ‘plataforma’ para o mesmo.
Watchman recebeu a notícia do falecimento de Charity. Ele sabia que ela tinha a esperança de que, após ele ter cumprido a sentença total de 20 anos, poderiam estar juntos. Porém, poucos meses antes desta data perdeu o equilíbrio e caiu de um banquinho e não resistiu aos ferimentos. Ele recebeu muito mal a notícia.
Em 12 de abril de 1972, completou seus 20 anos de cárcere, padecendo de dolorosos problemas cardíacos. Ainda assim, não lhe concederiam liberdade. Mas liberaram uma carta à sua irmã, cheia de restrições: “Cara irmã: recebi sua carta de 7 de abril e tomei conhecimento de que você não tem tido retorno acerca das coisas que me enviou. Tudo o que você menciona tem, de fato, chegado até mim e lhe sou muito grato. Você sabe que minha condição crônica ultimamente tem sido companheira constante. Os ataques, naturalmente, são penosos, mas nos intervalos não é tão difícil. Ainda assim, conservo minha alegria pessoal, portanto, não se preocupe, por favor. Espero que você se cuide e que a alegria preencha seu coração. Desejando-lhe tudo de bom, Shu-tsu”.
Digno de nota. Esse homem amável, de quase 70 anos, assinou sua última carta com seu apelido de infância. Até o fim manteve sua simplicidade, com a fé sincera de uma criança. E embora, não tivesse permissão para mencionar o nome de Deus, o Espírito de Cristo transborda nesse comunicado final.
Em primeiro de junho, Watchman entrou em regozijo eterno e foi ao encontro de Charity. O que havia pregado agora estava realizado: “Nada fere mais que a insatisfação com nossas circunstâncias. Todos começamos a administrá-la em busca da tranquilidade, mas existe uma outra tranquilidade que descobrimos quando aprendemos de Jesus a dizer: ‘Eu te agradeço, Pai, pois isso parece bom para Ti’. Deus sabe o que faz e não há nada acidental na vida do cristão. Nada que não seja bom pode acontecer a quem é exclusivamente dEle. Com o que estamos comprometidos? Não com a obra cristã, mas com a Vontade de Deus, para sermos e fazermos aquilo que Lhe agrada. O caminho de cada cristão já foi traçado por Deus. Se no entardecer da vida, pudermos dizer como Paulo: ‘completei a carreira’, então realmente seremos abençoados. Os santos do AT serviram a sua geração e passaram adiante. Os homens passam, mas o Senhor permanece. O próprio Deus leva embora Seus obreiros, mas concede outros. Nossa obra sofre, mas Ele nunca. Ele permanece sendo Deus”.


Um homem entregue a Deus

Denise Gaspar


Os textos, mais que isso, os ensinos do pr Nee sempre me impactaram profundamente, embora não tivesse nenhuma ideia de sua história pessoal. Em todas as leituras que havia feito percebi que Watchman é o apóstolo Paulo dos tempos modernos. A profundidade das mensagens... sempre nos é servido alimento sólido... Algo para ruminarmos e meditarmos por toda a vida. São mensagens que se retomam e vivificam em várias situações no correr da vida.

Um coração que seja só Seu é o que Deus procura. Um coração que O busque com integridade e sinceridade, alguém que deposite sua confiança n’Ele, disposto a amá-Lo. Nee foi um homem temente a Deus. Cujo prazer estava em meditar dia e noite na Verdade e nos Propósitos de Deus.
Temente a Deus e desejando ardentemente o centro de Sua Vontade para sua vida. No momento em que enfrentou a tuberculose, ele não pediu a cura, mas que pudesse cumprir o propósito de Deus, que conseguisse escrever o livro, partilhando com muitos o que Deus lhe dava.  Manteve-se firme mesmo quando satanás vinha confrontá-lo insinuando que desistisse da vida antes do tempo e de outra forma que não fosse a de Deus para ele. Manteve-se todo o tempo submisso a Deus.
É comum pensar que, uma vez em Cristo, ‘coisas ruins’ não vão mais acontecer, ou que basta uma ‘determinação’ ou um ‘bater de pé’ para que elas se vão. Antes de qualquer outra coisa é bom lembrarmos que o Senhor Jesus nos alertou que no mundo existem aflições, e que elas veem para todos, quer sejam ‘bons’, quer sejam ‘ruins’. Disse que na hora das intempéries da vida a grande diferença está no alicerce do coração. O livro de Jó é polêmico por conta disso. Jó era um homem íntegro, reto, que se desviava do mal. Esse testemunho a seu respeito foi dado por ninguém menos do que Deus. E, no entanto, passou por tudo o que passou. Ele precisava conhecer a Deus intimamente. Veja a vida dos discípulos, após a ascensão de Jesus... lembre-se das arenas que nossos irmãos enfrentaram... Deus disse a Ananias que fosse falar com Paulo porque ele veria o quão precioso é sofrer por Cristo...
Watchman sabia bem disso, por isso disse que os sofrimentos fazem parte de nosso amadurecimento. É neles que temos mais intimidade com o Pai. São oportunidades para crescermos em fé, no conhecimento do Caráter de Deus, no desprendimento de coisas que de fato não fazem a menor diferença para nossas vidas. São oportunidades para crescermos na arte do amor, do perdão, da doação, da perseverança...

Nee To-sheng não queria Deus só para si, para seus deleites e satisfação pessoal. Não tinha a visão capitalista-narcisista do “eu tenho e eu sei o que os outros não têm e não sabem”. Não tinha a visão mercantilista de vender aos poucos e em migalhas as verdades aprendidas como se apenas ele fosse capaz de recebê-las, entendê-las e transmiti-las. Essa característica abençoada e abençoadora de um verdadeiro homem de Deus, percebo, hoje, no pr Caio Fábio. Com que alegria, persistência e firmeza anuncia a Mensagem da Cruz: o Amor. Sem rodeios, sem discriminação, sem distorções a pretexto de facilitar ao entendimento de todos. Entregam a Palavra como Deus a dá, confiando que é o Espírito que abre o entendimento e convence a cada um no seu particular.
Vejo no pr Nee um homem com o chamado como o de Paulo não só para o evangelismo, mas principalmente para o discipulado. Homens que tiveram prazer sem igual na Palavra e na comunhão com Deus, prazer em partilhar a Palavra com alegria, com intensidade e sem rodeios nem meias palavras, sem discriminação, sem doutrinas.
Na vida do pr Nee vemos o mesmo cuidado de Moddy e de Kabbo em discipular pessoas. Quer direta ou indiretamente. Nenhum desses homens dedicou-se unicamente ao evangelismo. Eles se dispunham a cuidar das ovelhas discipulando-as, preparando-as para a Caminhada, dando-lhes suporte para tal. Eram o que chamamos de avivalistas, eram também e antes de tudo pastores. Pessoas que se dedicam para que outras cresçam na fé. Ensinando-as e estimulando-as aos fundamentos dá fé, à intimidade com Deus e à vida de santidade.
Como carecemos dessa disposição-entrega-amor nos dias de hoje! Em tempos de tantas heresias, blasfêmias e comércio. Doutrinas, teologias; títulos para alguns, afazeres para outros... muitas pregações, muita falação... pouca ou nenhuma Palavra. Ensinos de doutrinas, muitas teologias e histórias, muito psicologismo... e Jesus do lado de fora, batendo à porta, dispondo-Se a entrar. Em tempos tão difíceis suas reflexões são atuais, necessárias.... imprescindíveis.
Jesus do lado de fora, batendo à porta, desejando ser reconhecido, esperando ser aceito. Desejando Reinar. Mas não há espaço para Seu Senhorio, porque sendo Senhor acabam-se os títulos, os méritos, as ‘obras’, os causos, as indiferenças, as diferenças; acabam-se as vantagens, os personalismos, as patotas, as fofocas, a politicagem, as vendas, as compras... Com Seu Senhorio prevalece a Vontade de Deus que nos chamou para as obras de obediência por fé, nos chamou para amar e para viver o ministério do perdão e da reconciliação.
O pr Nee, assim como o apóstolo Paulo, não se limitaram a Salvação de Deus, mas ansiavam e viviam sob o Senhorio de Cristo. Desejavam viver a eternidade e o desfrutar da comunhão com o Pai já aqui nessa terra e não no por vir.
Daí Deus poder manifestar-Se de forma poderosa na vida de ambos, fazendo deles vasos novos, vasos de honra. Podendo ensiná-los a viverem bem em toda e qualquer situação. Aprenderam o quebrantamento, por isso podiam se regozijar em Deus em todos os momentos, mesmo nos de limitação e adversidade. Essa é a alegria da Salvação que o salmista pediu que lhe fosse restituída. Essa é a alegria que independe das circunstâncias. Essa é a Paz que o mundo não pode roubar. Essa é a Alegria do Senhor que Se manifesta em força em nós.
Quebrantamento em Deus não significa, de forma alguma, conformismo, nem resignação. Quebrantamento em Deus significa intimidade com Jesus. Eu O conheço, estou sob seu Senhorio, O reconheço em todos os meus caminhos, conheço Seu Caráter, sei de Seu Poder, sei que ninguém pode me tocar sem a permissão d’Ele, por isso sei que haja o que houver, venha a luta e a adversidade que vierem Ele está no Controle Absoluto de Tudo.
Portanto, conclusão óbvia: tudo coopera para o meu bem.
Portanto, conclusão óbvia: tudo é para que o Nome do Senhor seja glorificado e muitos abençoados, salvos, libertos e transformados.
Isso é o que vimos até aqui nos testemunhos de Moddy, Kaboo, Nee e nos tantos que participaram da caminhada com eles. Nessa biografia o destaque não é só para Nee, vemos a importância de outras pessoas como as senhoritas Barber e Lee, sua mãe e tantos outros.

Por viverem sob o Senhorio de Jesus, Deus pôde manifestar-Se a muitos por seu intermédio. Daí Deus operar maravilhas e fazer reboliços profundos superando o tempo e o espaço. O quanto recebemos de Deus através de Paulo nos dias de hoje? O quanto recebemos de Deus através de Nee To-sheng nos dias de hoje? Graças a Deus, Jesus continua procurando um coração que deseje ser só Seu. Graças a Deus, Ele continua fazendo reboliços santos para manifestar Seu Amor e Sua Graça aos homens. Graças a Deus, Deus É. N’Ele não há sobra de variação, mudanças, discriminações, acepções. Deus é Amor, por isso Ele Ama e ponto final. Como diz o pr Washington Souza, Deus opera no caos. O Espírito de Deus não procura homens ‘bons’ aos quais quer Se revelar, porque Jesus veio para os doentes, para os que reconhecem que não são bons e não têm méritos, veio para os que precisam e dependem totalmente da Bondade de Deus. O Espírito de Deus paira sobre o caos e ali opera milagres.
Watchman não apenas anunciava a Cristo, seu cuidado não era apenas de um evangelista ou um avivalista tradicionais. Ele tinha o cuidado de discipular as vidas alcançadas. Não bastava apresentar a Palavra; levar a pessoa à Salvação, seu esmero estava em ensiná-la a caminhar, a ter intimidade com o Pai... Por discipular não seja lido ensinar doutrinas, costumes e teologias locais, nem fazer cópias suas no vestir, falar, gesticular, não! Discipular, para Nee, assim como na Bíblia, era ensinar as verdades e os ensinamentos de Cristo. Discipular alguém era torná-lo discípulo de Cristo e não de Watchman.
Esse é o 3º testemunho da série Entregues a Deus, e em todos digo que não gosto de biografias. Como historiadora nunca gostei de me deter à vida de uma pessoa, seus ‘feitos’, seus ‘méritos’, como se algo na história tivesse acontecido unicamente por causa dela.  São histórias de homens sobre homens, exaltando-os, mostrando suas lutas e superações, esforços e méritos, como se eles sozinhos fossem capazes, por seus talentos e determinação própria, de moverem a História. Os homens são fruto de variados fatores quer reforçando-os ou rejeitando-os.
Contudo, Pitada de Sal levada pelo Espírito Santo, chegou às biografias. Pensei; “Ok, Senhor! O que Tu queres nos mostrar?”.
Essa sequência biográfica, a qual o Senhor está nos conduzindo e na ordem em que Ele está propondo tem mexido demais comigo. Porque tenho visto, não a história de homens talentosos, corajosos e cheios de feitos meritórios aos quais devemos reverenciar. Tenho visto unicamente o Poder do Amor de Deus agindo na vida de pessoas frágeis, cheias de limitações e operando nelas a ponto de terem seus cálices transbordando e inundando a muitos. Conhecemos Moody, Kaboo e agora Watchman, mas só consegui ver o Amor de Deus.
Hoje, posso dizer: “Obrigada, Senhor, por ter nos trazido até essas biografias, que, antes de serem de homens, são Tuas. Verdadeiras histórias de Amor, Manifestação de Teu Poder. Em nenhuma delas vimos homens, mas a Ti somente. Teu Caráter, Tua Bondade, Teu Amor, Tua Graça, Tua Misericórdia, Teu Agir, Teu Poder, Teu Desejo de que todos cheguem ao pleno conhecimento de Ti. Aleluia! Obrigada, Senhor! Que Tu possas encontrar em nós corações gratos, sedentos, dispostos e entregues a Tua manifestação em nós e através de nós. Que não vivamos mais segundo nossos aprendizados, valores, desejos. Como diz o pr Eugene Peterson que a trindade que reina na atualidade, ou seja, as necessidades, os desejos e os sentimentos não sejam o nosso deus, mas apenas Tu, o Deus Único, Verdadeiro e Soberano em Amor, Bondade e Justiça”.

Que nossas vidas também possam perfumar essa terra com o Bom Perfume de Cristo.

Samuel Morris

1872-1893

Príncipe Kaboo

Natural da África Ocidental

Famoso místico cristão

Apóstolo da fé simples

Exemplo de uma vida cheia do Espírito

 


Editorial

 Que alegria! Que prazer poder mais uma vez compartilhar com você do que Deus tem nos dado. Deus é maravilhoso porque faz maravilhas. Ele aceita pessoas como eu e você que não temos nada de bom em nós mesmos e nos transforma em príncipes. Ele nos adota e nos recebe em Sua família. Somos feitos Seus herdeiros e co-herdeiros com Cristo. Aleluia!!

Esse é o segundo número da série Entregues a Deus. Através do testemunho desse menino africano que viveu em fins do século XIX percebemos que o que Deus tem reservado para aqueles que O amam e O buscam é muito mais do que qualquer dos benefícios temporais que a vida e o mundo podem nos oferecer.

Que reboliço Jesus fez!!! Que reboliço Jesus precisou fazer para quebrar grilhões na América que acabara de O (re) conhecer através de Moody. Que reboliço foi preciso fazer para que Jesus fosse apresentado também aos africanos. Que reboliço! Que Poder do Amor!!!

O Senhor faz o que for necessário para nos tirar da acomodação das doutrinas e quebrar os grilhões das teologias. Faz o que for preciso para anunciar Seu Amor, Sua Bondade e Sua Graça a todo ser humano.

Os discípulos estavam felizes em Jerusalém, era grande o número dos que se convertiam e viviam em comunhão com a Palavra. Mas o Pai não estava limitado ao comodismo deles. O Seu propósito era muito maior que a comodidade e a satisfação deles. Havia muitos a serem alcançados pela Graça. Eles precisavam ir. Jesus havia dito para irem até os confins da terra anunciando a Vida. Vão, anunciem o Meu Amor. Foi preciso a perseguição para que eles saíssem e fossem, mesmo sem entenderem e sem desejarem, para que as Boas Novas chegassem até nós.

Bendito o Deus de toda a terra! Bendito o Deus que não faz acepção de pessoas! Bendito o Deus Soberano!

 Céus e terra passarão, mas Sua Palavra é Eterna.

Convido você a viajar no tempo comigo, vamos à África conhecer a história desse menino que teve um encontro com Jesus antes mesmo de ouvir falar de Seu Nome. Deus não segue roteiros, nem doutrinas.

As culturas humanas são diferentes. Hábitos, costumes e valores. Mesmo hoje, em tempos de globalização e internet, podemos sentir as diferenças, que dizer, então, de fins do século XIX.

Não importam as diferenças humanas nem as culturas, o que importa, de verdade, é que Deus É o mesmo ontem, hoje e eternamente. N’Ele não há sombra de variação. Deus É Amor e não resiste a um coração quebrantado que O busque. Quem O busca, seja quem for, esteja onde estiver, pense como pensar, tenha a cultura que tiver, O encontrará porque Ele se faz revelar.

Pense nisso,          





                               Denise Gaspar



Testemunho da Graça de Deus

Vivos pela Graça, vivendo a Graça

 

Kaboo - Samuel Morris

 


O príncipe




 

Kaboo nasceu na Costa do Marfim, África Ocidental, em 1872. Sua tribo pertencia ao tronco kru. Embora fosse filho de um dos chefes da tribo, portanto, um príncipe de seu povo, sua história não foi nada invejável. Era costume que os chefes tribais, derrotados em guerra, entregassem o filho mais velho ao inimigo vitorioso como garantia de que fariam o pagamento dos tributos devidos. Nesse período de cativeiro o rapaz era submetido a torturas. Essa é a história da vida de Kaboo.

Durante sua infância, o pai foi derrotado duas vezes nos conflitos tribais. E em ambas, foi entregue como refém. Na primeira vez, Kaboo era muito pequeno, por isso não se lembrava de detalhes. O pai pagou a indenização e ele foi logo devolvido. Mas, na segunda vez, o pai não conseguiu o valor do resgate e ele ficou cativo vários anos. Foi uma experiência tão terrível da qual o rapaz não gostava de falar.

Logo depois que voltou à aldeia, sua tribo se viu envolvida noutro conflito. Desta vez, o adversário era um grupo de tribos inimigas, comandadas por um chefe cruel e perverso. Elas derrotaram o povo de Kaboo, destruíram suas plantações, incendiaram o povoado e devastaram suas terras. Seu pai foi obrigado a se render, e se comprometer com um resgate altíssimo, que a tribo dificilmente poderia pagar.

Pela terceira vez, Kaboo, com 15 anos, foi entregue como penhor pelo pagamento da dívida. Na data marcada, seu pai levou tudo o que conseguira juntar: muito marfim, borracha, nozes de cola e outros artigos que o povo ofertara. O inimigo pegou a mercadoria, mas disse ser insuficiente para cobrir a fiança. Depois de mais um esforço de mobilização do povo, o pai retornou, e, de novo, o chefe declarou ser pouco.

Esse guerreiro mantinha lucrativo comércio em Serra Leoa. Por produtos pilhados recebia sal, bugigangas e rum – principalmente rum.

Conhecendo sua perversidade e dependência da bebida, na segunda vez seu pai levou uma de suas mais belas filhas para tomar o lugar de Kaboo, pois temia que ele não resistisse por mais tempo. Kaboo objetou a troca: “vou conseguir suportar o sofrimento melhor que minha irmã, pode deixar-me aqui”. O pai percebera que não havia mais o que fazer.

Quando o chefe percebeu que a dívida não seria saldada mandou que chicoteassem o jovem violenta e diariamente. Toda a tortura era presenciada por um homem de sua tribo depois enviado ao pai para descrever o seu sofrimento. Em pouco tempo Kaboo, esgotado com a perda de sangue e a febre; não conseguia ficar em pé ou sentado. Então, fixaram no chão duas estacas em formato de forquilha onde o apoiavam para chicoteá-lo.  


Fuga milagrosa 




Se o tributo não fosse pago ele seria enterrado, em pé, até o pescoço; passariam uma mistura adocicada em sua boca para atrair formigas. Depois trariam formigas carnívoras que o devorariam vivo. Quando deixassem seus ossos limpos, seu esqueleto seria pendurado como uma advertência para futuros reféns.

Posto na forquilha, Kaboo esperava morrer antes da ‘tortura final’. Mas, repentinamente uma luz fortíssima, como de um relâmpago, brilhou sobre ele. O rapaz ouviu uma voz forte, que parecia vir do alto, ordenando-lhe que levantasse e fugisse. Todos escutaram a voz e viram a luz, mas não enxergaram ninguém. Kaboo recobrou as forças, ergueu-se de um salto e disparou a correr. Seus captores ficaram atônitos.

Kaboo não tinha a menor idéia de onde viera a luz. Nunca ouvira falar do Deus dos cristãos. O dia de sua fuga foi uma sexta-feira. Até o fim da vida jejuava às sextas-feiras: “dia da libertação”.

Escondeu-se num tronco oco até a noite quando percebeu que escapara de uma morte para cair em outra. Estava sozinho na mata, sem orientação, sem armas e sem destino. Não poderia voltar à sua aldeia porque seu povo sofreria represalas. Não podia ser visto por ser um fugitivo valioso e porque muitas tribos praticavam o canibalismo. Enquanto pensava, a mesma luz brilhou mostrando o caminho por onde devia seguir. Durante o dia se escondia em troncos e à noite caminhava. Após vários dias chegou a uma fazenda de café nos arredores de uma cidade de homens brancos. No entanto, só se aproximou quando viu um homem de sua tribo.

Aqueles brancos não eram traficantes de escravos, mas seus libertadores. Era uma cidade perto de Monróvia, a capital da Libéria. Na ocasião essa era a única localidade, dentre milhares de outras, onde realmente estaria a salvo.

O dia em que Kaboo chegou à cidade, depois de semanas, também era uma sexta-feira. 


Novo nome 





Trabalhava na plantação de café em troca de cama e roupas.

Certo dia viu seu amigo ajoelhado com as mãos postas e lhe perguntou o que fazia.

- Estou conversando com Deus.

- Quem é seu Deus?

- É meu Pai.

- Então você está conversando com seu Pai.


A partir daí se referia à oração como “conversar com meu Pai”. Quando foi, pela primeira vez à igreja, ouviu uma mulher falando sobre a conversão de Saulo, como vira uma luz brilhante vinda do céu e ouvira uma voz. Sem se conter, Kaboo exclamou: “foi exatamente o que aconteceu comigo! Eu vi essa luz! É a mesma que me salvou e me trouxe aqui!”.

A missionária, a srª Knoll, americana de Indiana, foi incumbida de lhe contar a história de Jesus. O jovem tornou-se um freqüentador assíduo dos cultos, reuniões e estudos. Começou a alfabetizá-lo em inglês. Ele recebeu Jesus como seu Salvador, reconhecendo n’Ele o “Deus desconhecido” que o salvara da morte. Mas não se contentou com isso, começou a desejar transmitir a seu povo a mensagem do Amor de Deus. Mas sentia-se sem autoridade para assumir essa missão. Ele estava condicionado a odiar e a temer e ainda carregava um profundo sentimento de inferioridade.

Ele “conversava com seu Pai’ fervorosamente, todas as noites. Perturbando o alojamento passou a refugiar-se no mato e só tempos depois contou o que aconteceu numa daquelas noites.

 “Quando fui me deitar, estava cansado e com o coração pesado. Minha boca estava em silêncio, mas meu coração continuava a orar. De repente, todo o quarto se iluminou. A princípio achei que o sol estava nascendo, mas depois vi que não, pois os outros ainda dormiam. O alojamento foi se tornando mais e mais iluminado, pleno da glória divina. Subitamente o peso que havia em meu coração se desvaneceu e senti-me inundado de grande alegria. Tinha a sensação de que estava leve como uma pluma. Senti-me cheio de grande poder, tinha a impressão de que podia voar. Não consegui conter a alegria que me dominou e comecei a gritar, acordando todo o alojamento. Alguns achavam que estava louco, outros, que estava possesso. Mas eu sabia muito bem o que estava se passando. Aquele era o momento de minha adoção. Agora, eu era filho do Rei dos Céus. Compreendi que meu Pai havia me salvado com um propósito definido e que iria atuar a meu lado”.

Nunca se referiu a essa experiência como ‘conversão’, mas como “sua adoção”. Pouco depois foi batizado na Igreja Metodista com o nome de Samuel Morris.


Primeira demonstração de Poder 





Ficou mais dois anos na Monróvia, deixou a plantação e trabalhou em biscates, principalmente como pintor. O que ganhava mal dava para viver, mas estava sempre feliz e interessado nas coisas espirituais. Procurou todos os missionários da região para conversar e aprender com eles, aprendeu muitos hinos de cor. Em pouco tempo ficou conhecido como o crente mais fiel e consagrado daquela parte da Libéria.

Alguns meses após sua ‘adoção’ ganhou um rapaz para Cristo. Ele tinha sido escravo do mesmo chefe tribal que Kaboo e testemunhou sua última tortura e sua fuga, tendo visto a luz e ouvido a voz que o socorreu. Ao ser batizado recebeu o nome de Henry O’Neil.

Samuel já revelava seu poder de liderança espiritual. Um incidente demonstrou seu método singular de convencer pessoas sem pregar-lhes sermões e sem nenhum esforço humano. Simplesmente invocava o Espírito Santo para que operasse através dele.

Três senhoras crentes combinaram de orar durante vários dias buscando de Deus um despertamento espiritual. Apesar do empenho, ninguém se converteu. Certa noite, um jovem prostrou-se diante do púlpito e orou durante várias horas seguidas. Supondo que era um novo convertido foram contar a boa notícia, e ao voltarem viram que Samuel intercedia por outros e não por si, nas reuniões seguintes 50 jovens se renderam a Cristo.

Orientado a viajar aos Estados Unidos para estudar, começou a pedir a Deus os 100 dólares necessários para a viagem.

Certo dia, um missionário leu para ele João 14, onde Jesus fala sobre a vinda do Consolador, o Espírito Santo. Já tinha recebido a benção do Espírito Santo, agora tomava conhecimento de Seu nome e de sua importância. Compreendeu que o Espírito é uma Pessoa real, viva, que opera aqui na terra. Associou a Ele a voz que lhe ordenara que fugisse. João 14 passou a ser sua meditação constante.

Procurava os missionários para conversar sobre o Espírito Santo até que ouviu de uma senhora que ela já tinha lhe ensinado tudo o que sabia. Mas Samuel não desistiu:

- E quem foi que lhe ensinou? ... E onde está Stephen Merrit?... então, irei para Nova Iorque!

E sem demora partiu em direção à costa. Não estava mais preocupado com os 100 dólares. O Espírito Santo era mais importante que o dinheiro. Assim que chegou ao porto viu um navio e se alegrou. Seu Pai havia atendido a oração. 


O embarque 




O capitão e membros da tripulação vieram para terra numa pequena embarcação. Mal desembarcara para supervisionar o carregamento do navio, foi abordado pele rapaz:

- Meu Pai me disse que o senhor me levará a Nova Iorque para conversar com Stephen Merrit.

- Onde está seu pai? - indagou o capitão.

- No céu, replicou Samuel.

O capitão, homem mal humorado, soltou um palavrão e disse:

- Não levo passageiros em meu navio; e você deve ser louco.

Samuel permaneceu o dia todo perto do barquinho. À noite, quando o capitão voltou, pediu novamente que o levasse. O capitão fez um gesto ameaçando dar-lhe um chute, entrou no barco e voltou sem levar o rapaz.

Samuel continuou a confiar na promessa do Pai. Passou a noite deitado na areia, orando a maior parte do tempo. No dia seguinte, foi rejeitado outra vez. Mas sua fé era tão firme que não arredou pé do lugar, embora já fosse o segundo dia em que não comia nada. No dia seguinte, domingo, o capitão voltou e assim que pisou em terra, o rapaz foi logo dizendo:

- Essa noite, meu Pai me disse que agora o senhor vai me levar.

O homem olhou para ele meio admirado. Na noite anterior, dois tripulantes haviam desertado, e ele estava precisando de pessoal. Percebeu que Samuel era da tribo kru e supôs que fosse marinheiro experiente.

- Quanto quer ganhar? - indagou.

- Só quero ir para Nova Iorque, conversar com Stephen Merrit. Replicou.

O capitão mandou que os tripulantes embarcassem o rapaz. 

A viagem 

Logo que chegou ao navio, Samuel viu um jovem adoentado deitado no tombadilho. Trabalhava como cabineiro, mas não conseguia andar. Samuel se ajoelhou e orou por ele. Na mesma hora o jovem se levantou e andou.

A vida no navio era dura e cruel. Quase toda ordem era dada com um palavrão, um chute ou uma bofetada. Como negociador, o capitão era inflexível; como comandante impiedoso. No navio, a vida e a morte estavam sob seu comando. Todos viviam apavorados.

A tripulação era um grupo bastante heterogêneo, pessoas de todas as partes do mundo. Samuel era o único africano e os outros não aceitavam sua presença e começaram a pensar em como matá-lo. A todo instante davam-lhe tapas e gritavam palavrões.

No terceiro dia, foi amarrado ao mastro junto ao cordame ficando encarregado de encurtar as velas e puxar as cordas. À noite, foram apanhados por uma tempestade tropical repentina. As velas içadas e o navio estava leve. Não houve tempo de encurtar as velas e navegaram ao sabor do vento. Samuel orou: “Pai, não estou com medo, pois sei que cuidarás de mim. Mas não me agrada estar aqui neste mastro. Não queres dar um jeito para que eu não tenha mais que vir para esse lugar?”. Tinha a certeza de que sua oração seria atendida, mas sua fé foi duramente provada.

Muitas vezes, o navio tombava e o mastro em que estava preso submergia, outras vezes era atingido por altas ondas. Samuel engoliu tanta água que começou a passar mal. Quando afinal o desamarraram, caiu no chão. O capitão foi até ele e lhe chutou. O tombadilho estava cheio de água e o navio ainda jogava bastante. Embora se sentisse muito mal, Samuel se ajoelhou e orou: “Pai, Tu sabes que prometi trabalhar para este homem todos os dias até chegar aos Estados Unidos. Mas, sentindo-me tão mal com os enjôos, não posso. Por favor, cura-me, Senhor”.  Em seguida, pôs-se de pé e voltou ao trabalho. E não teve mais enjôos toda a viagem.     

No dia seguinte, quando ia subir para o mastro, o cabineiro aproximou-se e disse: “Sam, ontem ouvi você orando durante a tempestade. Eu não gosto de trabalhar abaixo do tombadilho e você não está acostumado com o cordame. Vamos trocar de lugar”. Samuel aceitou. Sua oração fora atendida.

Quando se apresentou ao capitão para o serviço, ele estava bêbado, e deu um murro em Samuel, que caiu inconsciente. Quando voltou a si, o capitão já estava um pouco melhor. O jovem se levantou e foi trabalhar como se nada tivesse acontecido.

Perguntou ao capitão se conhecia Jesus. Vagas lembranças da infância e de sua mãe o agitaram. Samuel ajoelhou-se e orou por ele com tanta sinceridade que ele se sentiu forçado a inclinar a cabeça. A partir daí viveu algum tempo sob a forte convicção do pecado.

Contudo, aquela não era a hora mais apropriada para refletir sob sua condição espiritual. A tempestade abalara a estrutura do navio, então fundearam numa ilha. Enquanto carpinteiros e soldadores se ocupavam dos reparos, o restante da tripulação tinha que operar manualmente as bombas de sucção, para que a embarcação não afundasse. Samuel foi encarregado de operar uma das bombas. Para um marinheiro experiente e encorpado, o serviço já não era leve; para ele, franzino e ainda com menos de vinte anos, era dificílimo.

Os homens eram encorajados pelo rum, mas Samuel disse que seu Pai do céu lhe daria forças. Passaram duas semanas naquela tarefa. E Samuel viu suas forças serem testadas quase a ponto de cair exausto, mas o Espírito Santo lhe deu força e resistência.



Um marinheiro cruel 


 

No dia em que levantaram âncora, houve festa. O capitão mandou servir doses extras de rum e todos ficaram bêbados. Uma briga generalizada começou por causa de uma questão racial. Um malásio, um homem grandão, julgou-se ofendido por um dos homens e agarrando um facão queria matá-lo. Samuel interpôs-se dizendo do seu jeito calmo: “Não mate! Não mate!”.

Esse mesmo homem desprezava os negros e já tinha falado que mataria Samuel. Já havia matados outros africanos. Era perigoso e até o capitão evitava conflito com ele. Então, quando o jovem foi em sua direção, o homem ergueu a arma com ódio, essa era sua oportunidade. Samuel encarou-o, fitando-o firmemente nos olhos. Lentamente o malásio abaixou o facão e voltou para o catre. Aquele valentão estivera frente a frente com um poder maior que o de qualquer homem.

O capitão, percebendo a agitação, surgiu no tombadilho com um revólver em cada mão. Vendo que os tripulantes tinham parado de brigar graças à interferência de Samuel, foi obrigado a reconhecer que o jovem possuía um poder misterioso. Então voltou para o porão levando consigo Samuel, que caiu de joelhos orando pela tripulação. Pela primeira vez o capitão orou também, só que agradecendo a Deus por ter colocado no meio deles um embaixador da Paz. Arrependeu-se de seus pecados e passou a andar em novidade de vida. Foi o primeiro dentre muitos que se converteram no navio por sua influencia direta.

O capitão não fazia mais pagamentos com doses de rum. As brigas entre os marinheiros diminuíram bastante. Vez por outra o capitão convocava a tripulação para orarem. Samuel entoava os hinos que tinha aprendido na Libéria, isso foi conquistando a boa vontade daqueles homens.

Certo dia, o valentão malásio caiu doente. Esperava-se sua morte. Assim que soube, Samuel foi a ele e orou e o marinheiro sarou. Homem corpulento e brigão, nunca conhecera a Deus; vivera toda a sua vida em função de seus apetites carnais. Detestava as pessoas negras e nunca perdia a oportunidade de demonstrar isso. Depois disso, tudo mudou; agora, aquele malásio seria capaz de dar a vida pelo jovem negro.

A tripulação era de pessoas de todas as partes do mundo, com os mais diversos objetivos, sem nenhuma afinidade entre si. Cada um falava uma língua e pensava em sua pátria. Mas agora todos oravam e cantavam juntos sob a liderança de Kaboo. As diferenças de raça, pátria, língua, religião tinham sido postas de lado. O Deus de Samuel se tornara o seu Deus. A Luz que guiara o rapaz até eles brilhava com tanta intensidade em seu ser, que era evidente a todos; tão evidente que os uniu num laço de fraternidade. 


Em Nova Iorque

 


Passaram 5 meses até que chegaram a NI; era sexta feira. Samuel embarcara de macacão e descalço. Não recebera nada, pois trabalhara pela passagem. Então a tripulação fez uma coleta de roupas e arranjou um terno completo para ele, um calçado e um chapéu.

Assim que pisou em terra viu um homem que passava. Imediatamente aproximou-se:

- Onde posso encontrar Stephen Merrit?

O homem já estivera no seu trabalho e recebera ajuda dele:

- Eu o conheço, mora longe daqui, do outro lado da cidade, na Oitava Avenida. Posso levá-lo lá por um dólar.

O lugar onde o navio atracara distava mais de quatro quilômetros da Missão Bethel, e ali o reverendo era quase desconhecido. Se não tivesse sido pela orientação do Espírito Santo, e pela fé que Samuel tinha em relação à sua missão, ele teria tido grande dificuldade para encontrá-lo.

O rapaz não tinha nem um centavo, mas aceitou a oferta, crendo que de alguma forma conseguiria o dinheiro. Quando chegaram já anoitecia e Merrit estava fechando a porta do prédio onde ficava seu gabinete. Samuel correu para ele.

- Meu nome é Samuel Morris. Vim da África até aqui para conversar com o senhor sobre o Espírito Santo. Merrit ficou surpreso e ao mesmo tempo achou engraçado o jeito do rapaz. Perguntou-lhe se trouxera carta de apresentação.

- Não, replicou o rapaz. Não tive tempo para isso.

Então, Stephen disse-lhe que tinha um compromisso naquele momento e não poderia atendê-lo. Mas que ele poderia dirigir-se à missão, que ficava na casa ao lado, e ali cuidariam dele.

O rapaz já se dirigia ao lugar designado, quando o homem gritou reclamando seu dólar.

Samuel nunca duvidava da providencia de seu Pai celeste, acenou em direção a Merrit:

- Agora, quem paga todas as minhas contas é Stephen Merrit.

Sorrindo, o pastor pagou o guia e entrou na carruagem.

Depois que terminou o compromisso, Stephen voltava para casa, mas enquanto descia da carruagem, lembrou-se do rapaz, e retornou para Bethel. Ali, encontrou Samuel cercado de 17 pessoas, todas prostradas diante dele. Acabara de falar-lhes de Jesus, e elas estavam se regozijando pela Salvação. Nas primeiras horas na América, e mal sabendo falar a língua do povo, o jovem ganhara para Cristo mais de 15 pessoas.


A primeira noite 


Era uma hora da madrugada quando Merrit chegou em casa com Samuel. Sua esposa indagou surpresa: - Ué, quem é esse, Stephen?

- Ah, Dolly, aqui está um anjo de ébano, respondeu ele.

- O que pretende fazer com ele?

- Vou deixá-lo dormir na cama do bispo, replicou o marido.

Merrit mostrou a Samuel como se puxam as cobertas e se deita numa cama, como se acende o gás e a apagá-lo. Pegou um camisolão do bispo e achou graça da roupa que lhe ficou tão grande.

Mas, em seguida, seu riso se transformou em emoção, pois Samuel arregaçou a comprida manga da camisola, estendeu a mão ao anfitrião e pediu que se ajoelhassem para orarem. A alma de Samuel ardia de fervor, e ele queria falar sobre a maravilhosa Luz que o guiara até ali. E naqueles curtos momentos de oração, de petições feitas pelo jovem negro iletrado, esse homem que já pregava há anos, recebeu uma nova visitação do Espírito Santo; o homem que o Bispo Taylor escolhera como seu secretário recebeu uma revelação sobre a realidade e o poder do Consolador, como nunca recebera em toda a sua vida.


Um culto fúnebre diferente 


No dia seguinte, Merrit ia dirigir um culto fúnebre, de um homem importante no Harley. Resolveu levar Samuel consigo. No caminho apanharia dois eminentes pastores. Assim que a carruagem parou e um dos pastores viu o jovem negro lá dentro, deu um passo atrás esperando que ele saltasse. Afinal, entraram ainda chocados e com expressão de desagrado.

O Rev Merrit constrangido pôs-se a mostrar os lugares por onde passavam: o Central Park, o Grande Teatro da Ópera... mas Samuel estava interessado em algo maravilhoso. Colocou a mão sobre o joelho de Merrit e indagou: - O senhor ora quando está rodando em sua carruagem?

Ele respondeu que muitas vezes tinha momentos abençoados quando se achava no carro, mas nunca orara formalmente. - Então, vamos orar, disse Samuel.

E oraram. Era a primeira vez que Stephen se ajoelhava no interior de uma carruagem para orar. Samuel começou:

“Pai, viajei durante vários meses para vir falar com Stephen Merrit, porque desejava que me dissesse alguma coisa sobre o Espírito Santo. Agora que estou aqui, ele me mostra o porto, as igrejas, os bancos e os prédios, mas não fala uma só palavra sobre o Espírito, que tenho tanta vontade de conhecer. Enche-o de Ti mesmo, de tal modo que ele não pense em outra coisa, não fale de outra coisa, nem escreva, nem pregue sobre mais nada, a não ser sobre Ti e o Espírito Santo”.

A experiência que Merrit teve não foi uma manifestação comum do poder de Deus. Ele já havia participado de cultos de consagração de missionários, ordenação de pastores, nomeação de bispos, imposição de mãos em obreiros. Mas em nenhum deles experimentara a presença do Espírito de forma tão sensível e ardente como naquela carruagem, ao lado de Samuel Morris, um rapaz negro, paupérrimo e iletrado. Sua vida foi transformada naquele instante.

No momento em que aqueles homens ilustres tinham entrado na carruagem ficaram constrangidos, com receio que alguém os visse na companhia de um negro tão mal vestido. Após a oração tiveram vergonha de seus próprios farrapos espirituais.

Compraram roupas novas para Samuel. Chegaram ao culto e encontraram muitas pessoas. O Rev. tinha preparado um sermão, mas depois da oração na carruagem práticas antigas não importavam mais. Seu novo sermão impactou os ouvintes.

O céu se abrira, ele abandonou o discurso formal e entregou uma mensagem carregada de terna compaixão, inspirada pelo Consolador. Os outros dois pastores também experimentaram a mesma inspiração e eles mesmos se surpreenderam com a palavra que deram.

Samuel ficou sentado num canto, sentindo-se transbordar do Espírito Santo, de tal modo que teve uma visão: viu um caminho que ia até o céu; e teve a percepção do roçar das asas dos anjos.

Ocorreu uma cena incomum; uma das manifestações de poder que somente o Espírito de Deus confere ao ser humano. A certa altura do culto, sem que ninguém tivesse feito apelo, várias pessoas começaram a dirigir-se a frente e ajoelhar-se perto do caixão. Não estavam ali para prantear o falecido, mas para se mostrar arrependidos de carregarem o “corpo de morte”, o pecado. Tinham sido impelidos até ali pela Luz divina que irradiava da alma de Samuel Morris.


Samuel começa a estudar 


Após o culto fúnebre, o rev. dirigiu-se ao seu gabinete e no caminho Samuel lhe fez várias perguntas sobre o Espírito Santo. Perguntas tão profundas que daí a pouco Merrit sentia que era ele que aprendia com o jovem; que a experiência espiritual do rapaz superava seus conhecimentos teológicos. No gabinete, Merrit escreveu uma carta ao diretor da Universidade Taylor, no Fort Wayne, Indiana. Dizia que estava enviando um diamante bruto para que o lapidassem e o enviassem ao mundo para iluminar os povos.

No dia seguinte o rev. convidou Samuel para a Escola Dominical, queria que ele desse uma palavra.

Merrit apresentou-o a igreja; estava ali um rapaz que viera da África para conversar com o superintendente sobre o Espírito Santo. Todos riram. Após a apresentação teve que sair por uns instantes. Quando regressou, o altar estava cheio de jovens chorando e soluçando. Samuel estava à frente, orando.

O rapaz se mostrava calmo. Ao orar, fazia-o sempre com modos naturais, como quem conversa com um amigo. Simplesmente “conversava com o Pai”, fervorosamente, mas sem exaltação. Aqueles alunos não tinham sido tocados por nenhum dos truques de oratória normalmente empregados por avivalistas profissionais. Também não foram suas palavras, nem seu jeito de ser que haviam provocado tal impacto, mas a presença do poder do Espírito Santo.

Imediatamente, os alunos, espontaneamente, fundaram a Sociedade Missionária Samuel Morris. Essa associação levantou fundos para pagarem sua passagem, comprarem mais roupas e livros e todo o material que ele necessitaria na escola. 


Fort Wayne 


Chegou ao Fort numa sexta feira. Embora levasse consigo alguns livros, (que não sabia ler), algumas roupas e presentes de valor nominal, aos olhos de todos não passava de um ‘pobre rapaz negro’.

Aquele jovem revelou um espírito de nobreza muito raro entre os crentes. Quando o diretor da escola, Taddeus C. Reade, perguntou-lhe que quarto preferia, replicou:

“Se houver um que ninguém queira, fico com ele”.

Mais tarde, o dr Reade relatou:

“Virei o rosto, pois meus olhos se encheram de lágrimas. Perguntei a mim mesmo se eu estaria disposto a querer algo que ninguém mais queria. Nos muitos anos em que tenho trabalhado como professor, tenho tido que designar os quartos para os alunos, e já fiz isso para mais de mil jovens. Muitos deles revelaram grande nobreza. Mas Samuel foi o único que disse: “Se houver um quarto que ninguém queira, fico com ele”. 


Fundo de Fé 


No domingo Reade foi pregar num culto na Igreja Metodista de Churubusco; igreja pequena e de pessoas pobres. Falou-lhes sobre o rapaz chegado da África e disse que aceitaria ajuda para sustentá-lo na escola. O resultado foi desanimador, quase um fracasso total. Um homem lhe deu cinqüenta centavos, e só.

Mas no dia seguinte, Josiah Kichler, um açougueiro pobre, que não era membro da igreja o procurou e disse: “O Espírito Santo me disse para dar isso para o seu fundo de fé”. E lhe deu cinco dólares.

Aquela nota lhe deu uma idéia. Usando a expressão usada por Kichler, com aquele dinheiro deu início ao “Fundo de Fé Samuel Morris” e logo outros passaram a contribuir. Quando Samuel soube, procurou Reade.

“Não; esse dinheiro não é meu; é de Deus. Preferia que o senhor o usasse para estudantes que o mereçam mais que eu”.

E nunca pôs no bolso nem um centavo sequer, nunca comprou nada para si. Reade usava o dinheiro para atender suas necessidades básicas, mais que isso não aceitava.

Depois de algum tempo, ele foi conversar com Reade. Queria autorização para sair para trabalhar por algum tempo.

“Não estou querendo deixar a escola, não. Mas quero ganhar algum dinheiro para trazer Henry O’Neil para cá, para que estude. Ele é muito melhor que eu. Nós dois trabalhamos juntos para Jesus, lá na Libéria”.

Reade mandou que orasse, Deus providenciaria os meios para que Henry chegasse aos Estados Unidos. No dia seguinte Samuel o procurou:

“Henry O’Neil vai chegar muito em breve. Meu Pai acaba de me dizer isso”.

O diretor escreveu a Merrit para saber de alguma coisa a respeito. Soube que uma das missionárias que trabalhava na Libéria, na ocasião em que Samuel e o amigo desenvolviam seu trabalho de pregação, tinha voltado aos Estados Unidos e estava providenciando para que Henry fosse levado ao país para estudar. Assim, Henry o’Neil, o primeiro fruto do testemunho de Kaboo, foi estudar nos Estados Unidos. 


O aluno que ensinava 


O apóstolo Paulo afirmou que recebera seu comissionamento para pregar o Evangelho direto do céu, e não de homens. O mesmo se pode dizer a respeito de Samuel Morris.

No primeiro domingo que passou no Fort Wayne, procurou saber se havia uma igreja para negros na cidade, como era distante da escola, chegou atrasado. O culto já tinha sido iniciado, o pastor já estava no púlpito e já tinha lido o texto. Samuel entrou e foi logo à frente, subiu os degraus que davam acesso à plataforma.

O pastor era muito formal e disciplinado e ficou desconcertado com a atitude do jovem.

- Meu nome é Samuel Morris. Acabo de chegar da África, e tenho uma mensagem para estes crentes.

O primeiro impulso do pastor foi recusar, mas fitando seu rosto, indagou se tinha um sermão preparado. - Não, mas tenho uma mensagem.

Então, deixou que assumisse o púlpito. Mal o pastor sentou sentiu uma forte comoção na igreja, quando ergueu os olhos viu toda a congregação de joelhos orando, chorando, soltando brados de alegria. O jovem estava de pé no púlpito, não pregando, mas orando, “conversando com seu Pai”. Mais tarde o pastor relatou:

“Não parei para prestar atenção ao que dizia. Fui dominado por um intenso desejo de orar. Não me lembro do que disse, nem do que Samuel falou, só sei que havia um fogo intenso em meu coração, como nunca sentira antes. Não havia dúvida de que a mesma Luz que libertara Samuel de seu cativeiro agora brilhava no coração dos irmãos ali no Fort Wayne. Aquela igreja nunca havia experimentado tal visitação do Espírito Santo”.


Samuel na Universidade 

Havia um sério problema com relação a Samuel. Ele não poderia fazer nenhum curso regular da escola sem antes fazer os estudos elementares. Embora com cerca de 18 anos, em termos de estudos formais, era como uma criança de 7 ou 8 anos. A solução encontrada foi providenciar-lhe professores particulares.

Samuel revelou-se um aluno muito aplicado. Todas as palavras, idéias e princípios que lhe ensinavam eram assimilados. Além disso, absorveu também as expressões refinadas e o jeito de falar de suas professoras. Contudo, sua mentalidade original não se alterou. A maneira como formulava as frases deixava a todos admirados. Falava sempre por frases curtas, mas todas as palavras que dizia tinham importância. Desconhecia conversas inúteis. Suas professoras se sentiam gratificadas.

Para Samuel seu principal mestre continuava sendo o Espírito da Verdade. Muitas vezes, quando estava solucionando problemas de matemática, dizia em voz baixa, mas audível: “Ajuda-me, Senhor”. E sempre passava mais tempo em “conversa com o Pai” do que com qualquer outro mestre terreno.

Muitas pessoas vinham de longe para ver e conversar com ele. Assim que eram apresentados, entregava uma Bíblia e pedia que abrissem e lessem um texto que desejava estudar.

Havia um estudante ateu e que gostava de proclamar seu ceticismo, não aceitava que cressem em Deus. Conhecia bem os argumentos do pensamento ateu e não perdia uma oportunidade para debates. Insistiu com colegas que o levassem ao quarto do africano e o apresentassem a ele; foi preparado... Como costumava fazer, Samuel entregou-lhe uma Bíblia e pediu que lesse determinado texto. O rapaz jogou o livro sobre a mesa: “Eu não leio mais esse livro. Só fala de guerras, de casos amorosos e de uma porção de histórias falsas. Não creio numa única palavra dele”.

Samuel nunca tinha conversado com um ateu antes. Então, ficou sentado, quieto, olhando para ele, até que terminasse sua explosão verbal. Então, levantou-se:

- Meu caro irmão, seu Pai fala com você e não acredita n’Ele? Seu irmão fala com você e não acredita n’Ele? O Sol fala com você e não acredita n’Ele? Deus é seu Pai; Cristo é seu Irmão, e o Espírito Santo é o seu Sol”.

Em seguida, colocou a mão sobre seu ombro e disse: “Ajoelhe-se, vou orar por você”.

 A Salvação daquela alma estava em jogo, e o Espírito de Deus as palavras nos lábios de Samuel. O ateu, porém, resistiu até onde pôde, mas, no momento em que estava saindo do quarto, foi tocado pelo Espírito, que o convenceu da Verdade. No final do semestre, quando saiu da universidade, era um crente dedicado à oração e ao serviço do Senhor. Tempos depois, aquele jovem que antes zombava do Evangelho veio a ser bispo.


A última aventura 


No fim do ano, uma série de cultos de avivamento foram realizados. Todas as noites muitas pessoas compareciam. Samuel gostava principalmente dos hinos. Parecia que sua alma era feita de música. Sempre que a congregação cantava sua voz era ouvida em todos os cantos do salão.

Sempre havia uma cadeira para ele na plataforma. Quando um dos obreiros, que ficavam no meio do povo, encontrava uma pessoa mais resistente à pregação, dava um sinal para Samuel. Daí a pouco haveria dois ou três pecadores ajoelhados, ou, então, dirigindo-se ao altar conduzidos por ele.  Ninguém recusava seu convite para orar. Todos logo percebiam a graça e o grande poder espiritual que possuía. Samuel não pregou muito nesse período, mas cantou e orou bastante.

As torturas que o rapaz sofrera durante o tempo em que esteve refém de guerra, e as condições adversas em que vivera durante a viagem no navio-cargueiro haviam enfraquecido sua saúde, que já era frágil. A isso se somou o rigor do clima norte-americano, de invernos longos, um ambiente muito estranho para uma pessoa dos trópicos. Apesar disso, Samuel continuou a assistir assiduamente a todos os cultos, naquele inverno de 1892 e 93, que foi ainda mais frio que o normal.

Certo dia, pegou um forte resfriado. Mas não contou nada a ninguém, e foi suportando a doença em silêncio. Não se preocupava com o fato de a noite estar fria, chuvosa e a temperatura a 30º abaixo de zero. Sentia que era seu dever estar ali; tinha prazer em participar do culto. Seu rosto simples, sua expressão de sinceridade eram uma inspiração para o pregador.

Ele permaneceu na igreja até o final do último culto. Tempos depois, algumas pessoas ainda se lembravam de como ele fora à frente no encerramento, antes de o pastor dar a bênção apostólica, e dirigira um dos hinos mais queridos: “A velha história de Jesus”.

Embora Samuel não superasse o resfriado, continuou assistindo as aulas regularmente. A certa altura, começou a revelar sinais de hidropisia, e não conseguiu mais esconder que estava doente. Assim que o dr Stemen o examinou, encaminhou-o para o hospital St Joseph. Nessa casa, recebeu os melhores cuidados e atenções, como se fosse o filho do próprio diretor. Muitas pessoas foram visitá-lo, gente que o amava, e que tinha sido abençoada por ele. Todos lhe traziam alguma prova de apreço.

A princípio não entendia por que não recuperava a saúde: “No inverno passado, quando tive aquele problema nas orelhas, elas doeram bastante. Perguntei ao meu Pai a respeito daquilo e Ele me curou. Elas pararam de doer imediatamente. Mas agora não consigo sarar. Não sei por quê”.

Depois compreendeu. Quando os alunos da escola foram vê-lo, disse com tranqüilidade e alegria: “Estou muito feliz. Vi anjos, e muito breve eles me virão buscar. A luz que meu Pai do céu mandou para me salvar, quando estava jogado sobre aquela forquilha na África, tinha uma razão de ser. Fui salvo com um objetivo definido; agora ele já se realizou. Minha obra aqui na terra já foi concluída”.

O dr Reade lhe indagou cerca do trabalho que planejava realizar junto ao seu povo: “O trabalho não é meu; é de Cristo. É Ele quem escolhe Seus obreiros. Outros poderão realizar essa obra melhor que eu”.

A casa do dr Stemen era em frente ao hospital. No dia 12 de maio estava aparando a grama de seu jardim quando alguém gritou: “Não trabalhe demais, não, dr Stemen”.

Viu Samuel que o observava da janela do quarto. Então, acenaram. Ele saiu da janela e sentou-se numa poltrona. Alguns instantes depois, a Irmã Helen, que trabalhava no Hospital, o procurou dizendo que Samuel parecia inerte. O médico correu até lá e encontrou Kaboo sentado tranquilamente na cadeira. Estava morto. Em seu rosto, uma expressão de gozo solene. 


Momentânea dúvida 

 

A Universidade Taylor se preparava para as solenidades de lançamento da pedra fundamental de sua sede, em Upland. A direção da ferrovia estava preparando trens especiais para levar os interessados. Samuel deveria estar presente, pois daria uma palavra e cantaria. Embora a programação contasse com pessoas importantes, Samuel era a principal atração. Por isso sua morte envolveu toda a comunidade em grande tristeza. Parecia que Deus não estava tão perto. Todo mundo tinha no coração perplexidade com relação a esse mistério.

O corpo de Samuel ficou exposto na Capela da Universidade até o dia do sepultamento. Seu caixão foi levado à Igreja Metodista da rua Berry, onde era membro, pelas mãos dos alunos. A igreja ficou lotada para a cerimônia fúnebre; e na rua ainda havia centenas e centenas de pessoas que não conseguiram entrar.

Após o culto, foi levado ao cemitério Lindenwood, e a cerimônia foi acompanhada por uma multidão. Nunca se vira, naquela cidade, um grupo tão grande num enterro. Os formandos de 1928 deram-lhe uma segunda lápide em que se diz: Samuel Morris, 1872-1893, Príncipe Kaboo, Natural da África Ocidental. Famoso místico cristão. Apóstolo da fé simples. Exemplo de uma vida cheia do Espírito.

Passado o choque inicial da tristeza, todos começaram a entender o verdadeiro sentido de sua vida e missão. O plano e o propósito de Deus para a vida do jovem africano tinham sido mais amplos do que tinham pensado. O dr Reade escreveu: “Samuel Morris foi um mensageiro divino, enviado por Deus à Universidade Taylor. Ele achava que viera aqui para se preparar para ser um missionário entre seu povo. Mas sua vinda tinha por finalidade preparar a Universidade para a missão que ela deveria realizar no mundo todo. Foi por intermédio dele que esta escola obteve uma visão ampla da necessidade espiritual do mundo. Com isso, ela deixou de ser apenas uma instituição local, para ser mundial”.


A fé sabe o que é melhor 


Assim que surgiram as evidências de que a fé de Samuel estava em harmonia com o que era melhor para o reino, a dúvida se dissipou. A caminhada de fé do rapaz apenas se iniciara. Seu desejo era levar a mensagem da Salvação e do Poder do Espírito Santo ao seu povo, na África. Mas se ele não tivesse morrido, e tivesse retornado para lá, sua influência pessoal teria ficado limitada a uma reduzida região do continente. Mas sua morte promoveu um grande aumento e intensificação da obra missionária.

No primeiro culto de oração após sua morte, um jovem se levantou e disse: “Nesse momento, sinto que devo ir para a África em lugar dele. Só peço que assim como a continuação da obra dele caiu sobre minha pessoa, sua fé também venha sobre mim como um manto”.

Imediatamente mais dois jovens se apresentaram para missionários no campo africano. E foram apenas os primeiros, muitos voluntários se apresentaram. Esse tipo de reação à sua influência durou várias décadas. Antes da sua passagem, a Universidade era uma escola como qualquer outra, sem objetivos missionários, nem visão de obra. Muitos foram como professores e pregadores e alguns estão sepultados em solo africano.

A morte de Samuel teve outro aspecto positivo: ampliou sua influência. Tivesse ele retornado à África, teria ficado totalmente identificado com seu povo. Mas, acima de tudo, sua experiência teve o mérito de criar um laço de união entre as duas raças. Seu próprio túmulo é um símbolo dessa união singular que é a fraternidade cristã, entre os povos.

 

 

Kaboo, o filho que sabia ser amado

Denise Gaspar

 

Essa série sobre a vida de pessoas que decidiram se entregar a Deus tem me abençoado tremendamente. E Kaboo é só o segundo nome das vidas que vamos visitar. Como disse quando falamos sobre Moody, não gosto de estudos biográficos. Apesar disso o Senhor tem nos direcionado de tal maneira e, preciso confessar, minha vida tem sido impactada e abalada. Jesus vem reforçando em mim o mistério da fé que agrada a Deus e move montanhas.

É gostoso ver que o Amor, a manifestação do Amor de Deus não depende de nosso conhecimento teórico nem teológico. No primeiro número dessa série, quando lemos sobre Moddy vimos que ele teve dificuldades em perceber e saber-se alvo do Amor de Deus. Já era um pregador da Palavra, mas não sabia que era tão amado pelo Pai. Sua vida foi totalmente transformada quando soube desse Amor. Kaboo não tinha nenhuma referência de Jesus, era ainda um menino e vivia numa cultura de muitos deuses, com um histórico particular muito sofrido, e, no entanto, não teve nenhuma dificuldade em se saber amado. Ele não teve nenhuma barreira de conceitos prévios que o dificultasse em aceitar fazer parte da família de Deus. Ele soube que estava sendo adotado, incluído, aceito, recebido.

Kaboo conheceu o Amor de Deus, daí a intimidade. Queria estar junto com seu Pai, conversar com Ele, desfrutar de Sua Presença. Assim, não dependia de suas próprias forças para viver seus dias superando seus limites físicos no trabalho e na saúde e nem, tão pouco, contava com seus talentos para anunciar e demonstrar o Amor recebido para outras pessoas. Não eram os sermões, a fluente retórica, os discursos bem preparados que alcançavam seus corações. O Amor de Deus revelado a ele e através dele era o que contagiava sobremaneira os que estavam a sua volta. O bom perfume de Cristo! A Presença do Espírito de Deus era sua marca. Confiava no Espírito Santo, reconhecia n’Ele o Poder de convencer do pecado, do juízo e da justiça. Por isso recorria a Ele e dava-Lhe liberdade para que Ele o usasse e revelasse o Amor e a Graça divinos.

 Que reboliço Deus fez na história para revelar-Se a tantos. Deus procura um coração que seja só Seu. Seus olhos percorrem toda a Terra em busca desses corações. (Aleluia! Ele os encontra!). O alvo era Kaboo, mas também sua família, sua tribo, a África, o coração endurecido pelas doutrinas na América, o meu e o seu coração nesses dias. Deus move céus e terras, Ele tem Poder, (todo o Poder) e lança mão dele para revelar-se aos homens. Aleluia!!!!

 

Quem foi Kaboo?!? O que Deus viu nele? O que Deus viu para Se revelar de forma tão espetacular a esse menino?  Um coração generoso? Um coração quebrantado? Um coração com fome? De onde surgiu aquele menino negro; franzino, negro; paupérrimo, negro; iletrado, negro; sem referências e cartas de recomendações...? Quem foi aquele menino negro que abalou a estrutura de tantas e tantas vidas norte-americanas, brancas; racistas, brancas; donas de verdades, regras e valores, brancas...?

Kaboo agradou a Deus, guardou a fé, combateu o bom combate, cumpriu sua carreira e só soube disso no fim. Porque para Kaboo o que importava era viver cada dia no centro da vontade de Deus. Um dia de cada vez. Mais e mais de Jesus a cada dia. Ele queria regalar-se com Sua Presença, e isso era tudo. Queria mais e mais de Deus. Todo seu empenho era o de aprender mais d’Aquele a quem ele conhecia como poucos, para então ensinar aos de seu povo. Desejava anunciar a Graça de Deus aos seus familiares. Nós fazemos planos, mas a palavra final vem de Deus. Do Pai com quem ele conversava com intimidade, com quem ele tinha prazer em estar.

A cama confortável, as cobertas e a lamparina, os pontos turísticos com suas construções belíssimas não o distraíram nem o corromperam, não o afastaram de seu propósito de buscar mais de Deus. Conhecer mais e mais a Deus. Receber mais d’Ele. Consagrar-se mais a Ele. Conviver intimamente com o Pai. Viver o que o Pai tinha reservado para ele. Ainda que fossem vivendo os maus tratos, as dificuldades e insultos sofridos no navio. Creio que ele reconhecia a mão de Deus, Seus propósitos e Sua bondade lá nos cativeiros sofridos por conta de guerras que ele, enquanto criança, não tinha o menor entendimento. Só um homem entregue a Deus, por isso cheio do Espírito Santo, pode ter esse discernimento. Não são necessárias as letras e os estudos formais; não são necessários títulos e reconhecimentos humanos; não são necessárias obras e mais obras, todo o tarefismo é dispensável. Um coração que seja só Seu é o que Deus busca entre nós.

Um coração, é o que Deus busca!!!

Não são pessoas dispostas a ‘pagar o preço’ de abrir mão de suas vontades. Nada disso!

São pessoas que não ‘pagam’; são pessoas que ‘recebem’ por terem seus valores e interesses trocados. Não ‘pagam’ porque não há sacrifícios, nem perdas ao se fazer a Vontade de Deus. Há o privilégio de desfrutar de Sua intimidade. Sem teologias, sem doutrinas, sem conceitos nem preconceitos. São pessoas dispostas a ‘ganhar’ por desfrutar do Amor do Pai.

Isso foi tão intenso na vida de Kaboo. Tão explícito e notório. Ninguém recusava sua oração porque, mesmo para os que não sabiam e nem entendiam, era óbvia a comunhão que ele tinha com o Pai. O bom Perfume de Cristo. Ô cheiro bom!!! Aroma de Vida para uns, cheiro de morte para outros. Loucura santa!! Maravilha de Deus!! Delícia dos céus!!

Ter o vaso quebrado dói enquanto resistimos. Enquanto lutamos para que a nossa vontade prevaleça sobre a de Deus. Mas, a partir do momento que não queremos mais a nossa vontade... Depois que reconhecemos que a Vontade de Deus é Boa, Perfeita e Agradável ser o vaso em tratamento é o nosso desejo. Ir para a Olaria de Deus é um prazer, é motivo de alegria. Isso é loucura para o mundo. Aí, podemos orar: “Faz de mim um vaso novo, Senhor, vaso para honra e glória de Teu Nome”. Aí, a nossa vontade é entregar a nossa vontade a Vontade d’Ele. Ô, coisa boa!

Você reparou naquele episódio em que Kaboo orou no navio? Após a tempestade, foi tirado do mastro, onde tinha engolido tanta água que estava enjoado, levou um chute do capitão e ainda assim se ajoelhou e orou: “Pai, Tu sabes que prometi trabalhar para este homem todos os dias até chegar aos Estados Unidos. Mas, sentindo-me tão mal com os enjôos, não posso. Por favor, cura-me, Senhor”.  Em seguida, pôs-se de pé e voltou ao trabalho. E não teve mais enjôos toda a viagem. Que oração! Ele não pediu que o capitão fosse castigado por sua dureza e maldade. Não pediu para que fosse isento de tamanho sacrifício. Não pediu que o livrasse daquele tormento. Não argumentou que já que estava em busca de conhecer mais de Deus, deveria livrá-lo do trabalho pesado e garantir-lhe uma estadia cinco estrelas no navio. Não!!! Nada disso! Ele orou pedindo que o capacitasse a cumprir sua palavra. Sem saber estava pedindo que o Nome do Senhor fosse conhecido e exaltado naquela tripulação através de sua vida.

É interessante e diferente das orações que são feitas hoje. Kaboo não pediu que não tivesse que trabalhar ou fosse aliviado das tarefas pesadas. Kaboo não pediu que ‘deixasse de ser cauda’ e passasse a ser o comandante do navio. Confiava no Senhor de que o capacitaria a passar pelas circunstâncias com dignidade. Importa notar também que ele não pediu e nem Deus o presenteou com situações amenas só porque ele estava buscando mais sobre o Espírito Santo. Muitos pensam que por estarem buscando a Deus e/ou fazendo a Sua vontade tudo será tranqüilo, sem percalços, um ‘mar de rosas’. Na verdade, aqueles que buscam ao Senhor O reconhecem em todos os seus caminhos e sabem, verdadeiramente e não como um versículo retórico, que em todas as circunstâncias Deus trabalha para o bem daqueles que O amam e o buscam com inteireza de coração.

A sua oração me faz lembrar a oração feita pelos cristãos em Jerusalém, quando Pedro e João foram presos. As autoridades, os anciãos, os escribas e o sumo sacerdote fizeram muitas ameaças caso Jesus continuasse a ser anunciado ao povo. No entanto, unânimes, ou seja, movidos pelo Espírito Santo, clamaram a Deus. A despeito de todas aquelas ameaças, que eles sabiam que seriam cumpridas, pediram que Deus os capacitasse a fazer aquilo para o que tinham sido comissionados. Não se pré-ocuparam em pedir que as ameaças fossem desfeitas ou que de alguma forma fossem livrados ou que vivessem sem aflições ou tribulações. Eles tinham a convicção de que sofrer por amor a Cristo era um privilégio. Não estamos falando de masoquistas nem de pessoas que quisessem morrer. Eram pessoas que amavam a Vida mais que à sua própria vida. Estamos falando de pessoas em quem Cristo Reina. Pessoas que tiveram seus valores mudados. Pessoas que nasceram de novo. Através das quais a Vida gera Vida em outros.

“... agora, Senhor, olha para as suas ameaças e concede aos Teus servos que anunciem com toda a intrepidez a Tua Palavra, enquanto estendes a mão para fazer curas, sinais e prodígios por intermédio do Nome do Teu Santo Servo Jesus. Tendo eles orado, tremeu o lugar onde estavam reunidos; todos ficaram cheios do Espírito Santo e, com intrepidez, anunciaram a Palavra de Deus”. At 4:30 e 31.

Não há muitos registros sobre a vida de Kaboo, não tantos como os sobre Moddy. Aos pesquisadores deve ter sido difícil o trabalho. Contudo ficou gravado o suficiente na história e principalmente na vida daqueles que conviveram diretamente com ele e nas vidas que colhem as conseqüências de sua intimidade com Deus até hoje mesmo que nem tenham conhecimento disto. Apesar de toda dificuldade historiográfica seu testemunho chega até nós para que saibamos que Deus tem prazer em revelar-Se a cada um de nós. Ele não faz diferença entre as pessoas, porque essas diferenças não existem para Ele. Todos pecaram e carecem da Glória e da Graça de Deus. Sejamos negros ou brancos; homens ou mulheres; norte americanos, africanos, indus ou árabes. Sejamos letrados ou incultos; ricos ou pobres; saudáveis ou não; ‘bons’ ou ‘maus’. Todas essas categorias são criadas por valores humanos e variam no tempo e nos espaço. O que não varia é Deus. Deus é Amor e não Se poupa o trabalho para fazer-Se conhecido a nós. Jesus disse que Ele e o Pai trabalham até agora. E somos alvo desse trabalho. Aleluia!!!

É um privilégio conhecer esses homens que por amor e livre escolha entregaram suas vidas a Deus. É instigante perceber as maravilhas que Deus faz naqueles que O buscam de todo o coração. É maravilhoso ver o que Deus faz através daqueles que se dispõem ao centro de Sua Vontade. É revigorante e encorajador saber que milhares de milhares de anônimos, desconhecido9s pela história oficial, estão no centro da Vontade de Deus. Enfrentando ventos e tempestades, intempéries de toda natureza, mas firmados na Rocha e sustentados pela Graça divina. Todos agradando a Deus com sua fé, perfumando a Terra com a presença do Espírito de Deus. Todos vivos e gerando Vida. Todos inabaláveis.

A fé é a certeza do caráter de Deus. A fé que agrada a Deus é a fé que sabe Quem Ele É.


 

Portrait of D.L. Moody
“Se estamos cheios do Espírito Santo, ungidos, nossas palavras alcançarão os corações do povo”.

Dwinght Lyman Moody



Editorial

Essa é a 1ª edição especial de Pitada de Sal na série: Entregues a Deus. A série surge do impacto que o testemunho do Poder de Deus na vida de Moody nos causou.

Assim, se inicia uma série de reflexões biográficas, baseado em biografias reconhecidas, mostrando que o Livro de Atos não se encerrou e que, em momentos específicos da história, Deus levanta pessoas para alertar ao Seu povo sobre a necessidade de retornarmos à Palavra Genuína, ou seja, a Jesus. Homens que fizeram e fazem a diferença na história unicamente por se consagrarem totalmente ao Amor.

Nossa proposta vai ao encontro da necessidade gritante, nos dias de hoje, de nos voltarmos à Palavra Genuína, como disse C.S. Lewis, ao cristianismo puro e simples.

Essa edição traz alguns episódios da vida de Moddy e reflexões sobre a importância de seu ministério para nós.

Moody foi um homem como outro qualquer em sua geração, o que fez com que se destacasse foi sua total dedicação e entrega ao Amor de Deus. Ele tinha a visão do Reino de Deus, por isso não estava ligado institucionalmente a nenhuma denominação. Queria anunciar o Amor de Deus que o invadiu e transbordava de seu interior, ainda que nem O conhecesse tão bem, como no começo de suas atividades. PS enfatiza com veemência que Deus conhece os corações e por isso tem prazer em revelar-Se.  Não foi diferente com Moody, Deus enviou um menino, desprezível aos olhos de Moody, para lhe anunciar Sua Graça: “Eu não sabia que Deus me amava tanto assim...”. Dando um novo perfil e conteúdo às suas mensagens.

Deus fez com que Moody achasse favor diante dos homens. Ele se relacionava bem com todo tipo de pessoa, fossem miseráveis ou milionários, e com todas as denominações. O que lhe permitia agir conforme a Vontade e o Propósito de Deus e anunciar a Salvação e a Nova Vida em Cristo.

Facilmente percebemos por sua história que Moody não tinha nada de especial, nenhum mérito, nenhuma formação acadêmica específica. Filho de uma família de camponeses pobres, não teve muitas oportunidades. Destacamos, portanto, que tudo o que Deus realizou através de sua vida só foi possível porque Moody decidiu buscar e viver em comunhão com Deus. O seu amor por Cristo não dependia nem pretendia de vitórias materiais e temporais. O que ardia em seu coração era o desejo que estava no coração de Deus: que muitas almas se encontrem verdadeiramente com Jesus. Só logrou êxito porque ele desejou e permitiu a ação de Deus em seu interior. O Espírito de Deus frutificou em seu coração para que de seu ventre fluíssem rios de água viva.

PS convida você a se deliciar com os fragmentos de sua história recolhidos por nós. PS o convida a refletir sobre o espaço e a prioridade que você tem dado a Jesus. O mundo ainda precisa de homens segundo o coração de Deus.

Pense nisso,         

                                                                    Denise Gaspar



Testemunho da Graça de Deus

Vivos pela Graça, vivendo a Graça

  D. L. Moddy

Lema:

“Faça tudo o que puder para tornar este mundo melhor do que você o encontrou. Faça o que puder por Cristo e só assim você fará outras pessoas felizes”


Sua Missão


Quando tinha uma pausa para respirar, em Chicago. Dwinght procurava praticar uma atividade cristã para gastar sua energia nas horas vagas.

Mãe Phillips, membro da Primeira Igreja Batista, sugeriu que ele tentasse trabalhar na Escola Bíblica Dominical da missão da rua Wells, região norte, o local mais pobre da cidade. Num domingo de manhã, Moody e um companheiro de pensão atravessaram o rio e caminharam pela rua Wells até a esquina da avenida Chicago. Moody apresentou-se ao superintendente e se ofereceu para trabalhar ali. “Mas acho que ele não queria dirigir uma classe”, lembrou-se o dr. Roy, da Igreja de Plymouth. “Na época, ele disse que não sabia dar aulas”.

Sem saber o que sua observação provocaria, o superintendente casualmente disse a Moody que ele poderia percorrer os becos e ruas e trazer para a igreja o maior número possível de meninos.

Num domingo de manhã, um maltrapilho chamado Jimmy Sexton estava brincando nas ruas com outros quatro garotos pobres. “Fomos abordados por um rapaz vigoroso, cerca de 20 anos de idade. Trajava terno xadrez e cinzento. Tinha cabelos bem curtos, corpo musculoso, semblante tranqüilo, apesar de seus modos estranhos, e poderia ser confundido com um jóquei ou um esportista” – escrevia Sexton mais tarde.

_ “Meninos, vocês gostariam de ir à Escola Bíblica Dominical comigo?” – Moody perguntou de “maneira familiar e amistosa”.

_ Vamos fazer um piquenique?

_ “Venham comigo e vocês vão descobrir”.

Os meninos seguiram os passos rápidos de Moody pelos becos e vielas até o momento em que, transpirando e com ar triunfante, chegou à rua Wells, acompanhado de nada menos que dezoito garotos maltrapilhos, quase todos descalços. “Aquele foi o domingo mais feliz da minha vida”, disse Moody. “Descobri qual era a minha missão”. Ele havia passado dois anos “tentando descobrir o significado do meu trabalho antes de obter sucesso. Se eu não soubesse doutriná-los, poderia conduzi-los a alguém com capacidade para isso”.

Na semana seguinte, foi buscar o mesmo grupo e mais outros meninos. “Ficamos amigos imediatamente”, recordou Sexton numa carta 44 anos depois. “Apesar de sua aparência rude e um pouco estranha, nós o considerávamos um sujeito muito agradável e bem-humorado. Falava fácil e rápido, apesar de seu modo estranho de escolher as palavras; era simples, sincero e bondoso, com maneiras cativantes e personalidade tão forte e interessante que imediatamente todos nós juramos fidelidade àquele estranho novo amigo. Sua sinceridade e determinação nos levaram a confiar em sua lealdade, e logo concluímos que era um bom sujeito. Nossos gracejos juvenis mais o agradavam que o irritavam”.

“Recrutar alunos”: assim Moody descrevia sua missão.


O resto da vida como o professor

Moody tinha tempo livre para as reuniões de Peoria porque, agora, trabalhava em regime de meio período para a empresa e recebia comissão nas vendas. Estava confiante de que a energia e a astúcia lhe garantiriam um salário substancial. Ele não pretendia abandonar o comércio. Seu futuro estava claro: ganhar o pão de cada dia como um empresário sem tempo a perder, amealhar uma fortuna para financiar a obra filantrópica que mais amava.

E isso poderia ter dado certo, se não tivesse acontecido o que ocorreu num dia de junho de 1860; um dos professores do salão do mercado North Hall, “um moço pálido e franzino”, subiu cambaleando a escada de acesso à sala de Moody, no buell, Hill and Granger, abriu a porta e, “com passos Trôpegos e sem forças, atirou-se em cima de algumas caixas”.

_ “O que houve?” – perguntou Moody.

_ Meus pulmões estão sangrando novamente. O médico disse que não posso morar no lago Michigan, que devo voltar para o Estado de Nova York. Acho que estou morrendo.

Ao vê-lo trêmulo e transtornado, Moody perguntou:

_ “Qual é o seu problema? Tem medo de morrer? Está pronto para partir?”

_ Não senhor. Não estou com medo. Estou preocupado com minha classe.

Moody sabia que as garotas de 12 a 16 anos daquela classe eram ”totalmente frívolas. Perambulavam pela classe, rindo e comportando-se mal o tempo todo”. Certa vez, teve de substituir o professor ausente por motivo de enfermidade, e “elas riram na minha cara. Tive vontade de abrir a porta e de expulsá-las dali para que nunca mais voltassem”.

O professor repetiu:

_ Estou preocupado com minha classe. Eu fracassei. Não consegui levar nenhuma delas a Jesus. E não tenho forças para fazer isso agora. Acho que, em vez de fazer o bem, prejudiquei aquelas moças. Nenhuma se converteu.

Moody estava atônito: “Nunca ouvi alguém falar assim”.

Seus pensamentos concentravam-se unicamente nos números apresentados pela escola: alegrava-se com o comparecimento total dos alunos, com centenas de crianças barulhentas e se abatia quando os números caíam. Nunca imaginou que alguma daquelas crianças selvagens pudesse passar por uma profunda experiência pessoal, à semelhança de um adulto; não as reconhecia como seres humanos individualizados.

Após uma pausa Moody voltou a falar:

_ “sugiro que você as procure e diga como se sente. Se quiser, podemos ir juntos numa charrete”.

Ele ajudou o professor chegar a rua e alugou uma charrete, e seguiram para os cortiços. Ao chegarem à moradia de uma das garotas, o professor a chamou de lado e lhe disse timidamente:

_ Vim aqui para lhe pedir que aceite o Salvador.

A garota arregalou os olhos quando ele contou que precisava ir embora de Chicago, por estar prestes a morrer. Ele explicou à menina por que ela deveria depositar sua confiança em Cristo. “A seguir”, disse Moody, “ele orou como nunca havia feito antes”, e a garota em lágrimas, prometeu “resolver o assunto ali mesmo, naquele instante”.

Os dois homens subiram na charrete e seguiram para a casa de outra garota. Com muito esforço, o professor subiu a escada para ter uma conversa semelhante à anterior. Após três ou quatro visitas, estava exausto. Moody levou-o de volta ao seu alojamento.

Depois de 10 dias, “ele entrou na loja com o rosto brilhando de felicidade”. ‘A última aluna de minha classe entregou-se a Cristo. A grande e vital indagação da vida dessas garotas está respondida. Elas aceitaram meu Salvador. Minha obra está feita e vou para casa’”.

_ “Você não deve ir hoje. Espere até amanhã para reunir sua classe. Traga as alunas para tomarem um chá, à noite”.

Tempos depois, Moody disse que, se soubesse antecipadamente o impacto que aquela reunião em sua vida, talvez não tivesse ido lá. Todas compareceram; o professor disse algumas palavras, leu em voz alta um hino de despedida, que as meninas tentaram cantar. Ajoelharam-se para orar. O professor pediu a Deus que fortalecesse a fé que aquelas garotas tinham acabado de confessar. “Estava ajoelhado tentando me levantar quando uma delas começou a orar por seu professor moribundo”.

Atônito, Moody ouviu a oração balbuciada e extemporânea de uma garota de cortiço, que ele conhecera como uma zombadora de cabeça oca. Uma segunda moça suplicou o poder de Deus para levar outras almas a Cristo. Uma após outra, as moças começaram a orar. Enquanto Moody ouvia aqueles agradecimentos genuínos e fervorosos, aquelas petições sinceras, seu sonho de ganhar milhares de dólares passou a não ter qualquer significado para ele. Sua ambição de construir um império comercial tornou-se uma fantasia enganosa e transitória. Melhor seria passar o resto da vida como aquele professor moribundo havia passado os últimos 10 dias.

Na tarde seguinte, “quando o sol estava se pondo nas campinas do Oeste”, Moody dirigiu-se apressado a Michigan Southern para despedir-se do amigo. Sem terem combinado todas as garotas estavam na plataforma de embarque. Cantaram um hino e, “quando os vagões começaram a rodar para fora da estação, vimos sua mão pálida apontando para o céu, onde ele queria encontrá-las”.

Muitas dessas garotas tornaram-se colaboradoras incansáveis de Moody na Escola Bíblica Dominical. No início da década de 1920, quando Will Moody, (filho mais novo de Moody), contou essa história, num culto na Califórnia, “uma senhora de meia idade aproximou-se e disse: ‘Sr. Moody, eu queria conhecê-lo. Minha mãe era uma daquelas garotas’”.

Num dia do outono de 1860, J. V. Farwell ficou sabendo que Moody saíra de Bueel, Hill and Grangeer, havia deixado a seleta pensão da srª Phillips e estava dormindo num sofá, num dos quartos usados pela ACM no quarteirão da Igreja Metodista. Comia em restaurantes baratos ou matava a fomo com queijo e bolachas, determinado a esticar suas economias e gastá-las livremente em sua escola. “Disse a mim mesmo: ‘Vou viver de minhas economias. Quando estas terminarem, e eu não puder mais me sustentar, vou entender a situação como um chamado a retornar ao comércio’.” No ano seguinte, quando Moody foi aceito para trabalhar na ACM, o funcionário responsável pelas anotações da Resolução da diretoria escreveu: “... para o próximo ano com um salário de US$ ____”. O espaço em branco nunca foi preenchido. Farwell diz: “insisti para que aceitasse o salário, mas ele não quis”, porque tolheria sua liberdade...

“Não!”, afirmou Fleming H. Revell, (seu sogro), numa carta de 1917, “o Sr Moody jamais aceitou receber salário depois de ter abandonado o comércio que, segundo meus cálculos, lhe rendia 5 mil dólares. No primeiro ano seguinte, sua renda foi de 150 dólares. Um verdadeiro teste de fé”.


Como leigo


O Seminário desejava regularizar a situação eclesiástica de Moody e ordená-lo imediatamente pastor congregacional, apesar de seus erros gramaticais. Assim, ele poderia ministrar os sacramentos.

_ Você acha que devo ser ordenado pastor? - perguntou a seu amigo G. S. F. Savage.

_ Não – respondeu Savage. – Se você for ordenado, ficará no mesmo nível que nós. Você está pregando como leilo, e isso lhe dá uma vantagem. Está no caminho certo, continue assim.

Moody recusou a proposta. Em 1865, matriculou-se no recém-organizado seminário Teológico batista. O número de aulas freqüentadas por ele permanece obscuro; não completou o curso, e nunca foi ordenado pastor. Se houvesse sido pastor exclusivo de uma denominação, Moody não teria, naquela geração, alcançado êxito em conseguir o amplo apoio de pastores de outras denominações. Nas palavras de Farwell, “ele exercia um poder maior como leigo, por isso, era sempre bem recebido nas reuniões de grupos, sua maior ambição e satisfação”. Por certo, nem a Igreja da Escócia nem a Igreja da Inglaterra teriam concordado. Moody permaneceria desconhecido na história e jamais teria exercido influência na Grã-Bretanha ou nos Estados Unidos.

Ele continuou a trabalhar como leigo até 1866, quando um jovem foi ordenado pastor; Moody conservou o título de superintendente e de diretor.

A organização da Igreja Independente da Rua Illinois era a prova de que a Missão de Moody deixara de ser uma Escola Bíblica Dominical com ramificações. Agora, era um salão de convenções dentro de uma área de grande sofrimento. Contudo, eclesiasticamente falando, poderia ter formado a base de uma nova denominação, idéia esta recusada por Moody, apesar da insistência demitas pessoas no decorrer dos anos seguintes. Ele também poderia ter sido convencido a organizar um movimento dos “sem-igreja”, à semelhança da Irmandade de Phymouth. Moody não fez nem uma coisa nem outra. A igreja provou ser um solo fértil posteriormente utilizados para dezenas de milhares de pessoas atraídas para as reuniões em Londres, Filadélfia, Nova York, que, para Moody, foram uma extensão da Igreja Independente da Rua Illinois.


“Você é cristão?”


“A pergunta ‘Você é cristão?’ passou a ser uma seta apontada diretamente para cada homem, mulher ou criança de Chicago”, escreveu Abby, filha de Farwell, na época recém-saída da sala de aula e, assim como o pai, uma fiel seguidora de Moody. “Ele gritava essa pergunta da plataforma, murmurava-a nas ruas estreitas, repetia-as quando sentado ao lado de outras pessoas, durante um jantar ou abordando-as na calçada, ou seja, em qualquer lugar”.

Naqueles anos, Moody estava cumprindo a promessa de não passar um dia sequer sem falar a alguém de Cristo. “Quando vi um homem encostado num poste, eu me aproximei dele e perguntei; ‘Você é cristão?’. Ele praguejou, me amaldiçoou e disse que eu deveria cuidar da minha vida”. O homem contou a um amigo comum que nunca havia sido tão insultado. Três meses depois, Moody ouviu uma batida na porta, após a meia-noite, “e lá estava o desconhecido que eu deixei tão furioso perto do poste” para confessar que estava muito transtornado, indagando: “Oh, diga-me o que devo fazer para ser salvo”.

Moody não se intimidava. Um presbiteriano chamado Potwin estava subindo a rua Wells na direção norte, “logo atrás de um sujeito grandão, quando o Sr Moody perguntou, vindo em sentido contrário, o fez parar e perguntou: ‘Você é cristão?’. Furioso, o homem deu um passo para trás e teria lhe aplicado um soco violento se eu não tivesse segurado seu braço”. De outra vez, na redação do Chicago Tribune, aonde fora fazer inserir no jornal uma informação da ACM, os estenógrafos foram surpreendidos com a abrupta pergunta de Moody: “Cristo está entre vocês?”. Depois de alguns instantes de silêncio e perplexidade, um escocês de meia idade tirou lentamente o cachimbo da boca e respondeu com um sotaque típico: “Não, senhór Moody. Ele esteve aqui alguns minutos atrás, mas saiu para visitar um amigo ali na esquina. Vai ficar muito triste com este desencontro. Quer esperar um pouco?”.

Nessas ocasiões, Moody não achava graça. Nem deixava entrever que não gostava de zombaria. “Por mais vulgares que fossem  os gracejos, ele permanecia impassível”. Alguns anos depois William Reynolds contou a Whittle: “... quando eu estava a sós com Moody, era comum Moody chorar em razão das ofensas cometidas contra ele por aqueles que não o compreendiam ou que eram seus opositores”, mas ele precisava “decidir manter minha docilidade (...) só podemos fazer o bem quando somos dóceis”.

A esposa de Farwell insistiu co o marido: “por que você não diz a Moody que ele mais prejudica do que ajuda quando grita com as pessoas em cada esquina?”. Farwell fez a pergunta, e Moody respondeu: “Você não é meu dono. O meu dono é Deus”.

Eu não sabia que era tão amado

Por intermédio de Varley, Moody foi convidado a falar em outros salões da Irmandade. Foi em Dublin, (Grã-Bretanha), no encerramento de um culto, que ouviu alguém atrás dele dizer:

_ Ah, sou Harry Moorhouse. Ah, quero ir para Chicago e pregar pro senhor.

Moody virou-se e viu um homenzinho insignificante, sem barba. “Tinha a aparência de um rapaz, de no máximo, 17 anos.” Sem saber que aquele seria um dos encontros mais significativos de sua vida, Moody, com um sorriso bondoso, disfarçou seu menosprezo pelo homem.

_ Ah, sou Harry Moorhouse – o sujeito repetiu. _ Ah, vou pregar pro senhor na América. Quando o senhor vai voltar para casa?

Moody respondeu que não sabia. E disse a si mesmo que não revelaria a data de sua volta, mesmo que soubesse.

Já ouvira falar de Harry Moorhouse, um rapaz de Lancashire, batedor de carteiras convertido vindo da sarjeta, o Moço Pregador. Moody não aceitou que um rapazote como aquele fosse capaz de pregar o evangelho. E logo se esqueceu dele.

Uma carta irritante de Harry Moorhouse, recebida inesperadamente, dizia que ele havia chegado a Nova York e pregaria em Chicago, se Moody assim o desejasse. Moody escreveu-lhe um bilhete: “Se você vier para o Oeste, venha me visitar”. “Pensei que não receberia mais notícias dele”.

Perto do ano-novo, já havia se esquecido daquela figura peculiar. Logo, porém, faria um teste com o rapaz.

Em 7 de janeiro de 1868, pouco antes do meio dia, irrompeu um incêndio no Farwell Hall, cuja pintura das paredes e no teto ainda brilhava. Nem a polícia nem o corpo de bombeiros do local foram capazes de deter o fogo naquela cidade de ventos fortes... ao chegar a porta de saída carregando seu baú nos ombros, um aluno interno, David Borrell, mais tarde um famoso pregador, ouviu uma voz no momento em que a fumaça tomava conta das ruas, as labaredas estalavam e os sinos dos bombeiros tocavam: “Coloque isto no chão”. Ele avistou Moody: “Borrell, jogue este baú num lugar qualquer e venha me ajudar. Queremos fazer uma reunião de oração na Igreja Metodista”. A reunião do meio dia foi realizada.

Algumas semanas após o incêndio, Moody ficou contrariado ao ouvir falar que Moorhause estava a caminho de Chicago e que gostaria de pregar ali.

Moody rabiscou um bilhete: “Se vier para o Oeste venha me visitar”, e pensou: “isso o acalmará”. Moorhause respondeu informando a data e o horário da chegada.

Ao ler a resposta, Moody bufou com impaciência. O rapaz não sabia pregar. Exatamente no dia de sua chegada, Moody deveria estar em St Louis para a convenção Cristã de Missouri. Pediu a Emma, (sua esposa), que acolhesse Moorhouse e disse aos diáconos: “Façam um teste com ele; se fracassar, vou tirá-lo das mãos dos senhores quando voltar”, e pegou um trem para St Louis.

A presença de Moody era muito requisitas nas convenções do Noroeste, cuja finalidade era reunir pastores e leigos de diferentes denominações ou de pessoas contrárias à guerra. Homens que haviam trabalhado na Comissão Cristã e agora queriam manter a classe unida, como nos tempos da guerra, conheciam o Moody de Chicago como uma pessoa capaz de tirar homens consagrados do estado de indolência, fazê-los esquecer as divergências entre eles e uni-los para combaterem a falta de fé, a apostasia e a indiferença que rapidamente ganhavam terreno numa nação concentrada no progresso material.

Foi fácil esquecer Moorhouse.

Apreensivos, os homens da igreja puseram o rapaz à prova naquela noite de quinta feira, durante uma pequena reunião nos porões da rua Illinois. “Não sabíamos exatamente o que fazer. Ele falou de maneira completamente diferente da que estávamos acostumados. Sua mensagem era diferente de todas as que tínhamos ouvido. Os diáconos reuniram-se após o encerramento da reunião e, enquanto o hino era cantado, concordaram em anunciar que Harry Moorhouse falaria na noite seguinte.

Ao retornar no sábado, Moody perguntou a Emma a respeito de Moorhouse.

_ O pessoal gostou muito dele – ela respondeu. _ A pregação de Moorhouse é um pouco diferente da sua. Ele prega que Deus ama os pecadores.

Moody bufou com impaciência depois de concluir que “se ele pregou diferente de mim, não vou gostar dele. Minha opinião de antes estava certa”.

_ “Ele não é competente” _ disse Moody.

Ela replicou:

_ Acho que você vai mudar de idéia quando ouvi-lo, porque tudo o que ele diz tem respaldo bíblico.

Na manhã de domingo, na rua Illinois, Moody notou que todos na igreja portavam bíblias. Ele nunca havia mencionado que a congregação deveria trazer a Bíblia. “foi muito estranho ver o povo chegando com a bíblia na mão e prestando atenção em tudo”.

Moorhouse anunciou o texto de sua mensagem: “João 3:16: ‘Porque Deus tanto amou o mundo que deu seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, ma tenha a vida eterna’”. Em vez de dividir o texto em primeira, segunda e terceira partes, conforme faziam os pastores, Moody notou que Moorhouse “foi de Gênesis a Apocalipse provando que Deus ama o pecador; e, antes de ele terminar, dois ou três sermões meus já estavam prejudicados”. A doutrina ensinada por Moody de que Deus odeia o pecador e o pecado foi por água abaixo. “Até aquele momento eu não sabia que deus nos amava tanto assim. Este meu coração começou a derreter; não consegui conter as lágrimas.”

 À noite o texto foi o mesmo da manhã, “Porque Deus tanto amou o mundo...”, exposto mais uma vez de Gênesis a Apocalipse, porém de maneira diferente. Seu sermão, composto de uma série de textos ou passagens relacionadas e alguns comentários rápidos, formou a base de algo que veio a ser estranhamente conhecido como “Leitura da Bíblia”.

No encerramento, Moody apressou-se em dizer: “O Sr Moorhouse falará todas as noites nesta semana. Venham todos assistir às mensagens. Convidem seus amigos...”.

Na rua Illinois, entre aquela multidão de cidadãos humildes, alguns novos imigrantes e um ou outro ricaço, o espírito de amor corria livremente. Dwight L. Moody mudou seu modo de ser, e daquela época em diante, tornou-se um apóstolo do amor de Deus. Sua dicotomia foi resolvida. Moody estava aprendendo a mais emocionante de todas as lições: a lição do amor. Moorhouse o ensinou a ler e a estudar a Bíblia. Moody sempre considerara a bíblia um livro didático e um instrumento poderoso.

Para ele, a Bíblia era a Palavra de Deus. Tratava-se de uma armadura de textos surrados para extrair deles palestras e sermões ou atirá-la nas pessoas. Curiosamente, desconhecia grande parte dos ensinos bíblicos. Moorhouse disse que ele não conhecia a Bíblia e lhe mostrou como tratá-la como algo vivo, como localizar os textos revelados nas Escrituras Sagradas. Abriu-lhe os olhos para ver que “ela é a Palavra de Deus, capaz de levar as almas à salvação, não simplesmente um comentário do homem a respeito da Palavra divina”. Adverti-os de que deveria dedicar mais tempo para assimilar os ensinamentos do que em transmiti-los. Moody começou a levantar-se antes de todos (poucas horas de sono já o satisfaziam), acendia a lamparina e dedicava uma hora ou mais de estudo da sua enorme Bíblia, rabiscando anotações nas margens.

Naquele verão, ao discursar na Convenção das Escolas dominicais do Estado de Illinois, em Du Quoin, Moody assim se expressou: “Sejam dóceis, vençam pelo amor. Se um homem tiver o coração cheio de amor e um pouco de bom senso, será bem sucedido”.

Meu trabalho


Ali, uma nova porta foi aberta a Moody: o Congresso. Em 1868, ano de eleição, liderou uma convenção cristã em Leavenworth, na época a capital do novo Estado de Kansas. Um grupo de políticos foi visitá-lo.

_ Venha para cá, Sr Moody, e concorra à eleição para o congresso.

_ “Tenho um trabalho mais nobre que esse!”

Os políticos partiram desgostosos. Um deles exclamou:

_ Esse homem é um dos mais estranhos que já vi. Pensem nisso! Ele tem condições de ser eleito para o Congresso, e poderíamos levá-lo ao cargo de governador.


Sua grande qualidade



O confuso, porém dinâmico homem de sete instrumentos possuía um grande defeito de caráter. Certamente defeito não era a introspecção nem a melancolia. Um jornalista que o acompanhou numa viagem de trem assim se expressou a respeito dele: “D.L.Moody com toda a sua autêntica religiosidade é, às vezes, insuportavelmente engraçado”. Ele era compassivo, bondoso e, sob a carinhosa pressão de Emma, aprendeu um pouco de cortesia. Porém, quase sempre se esquecia das formalidades, como, por exemplo, puxar a cadeira para uma senhora se sentar, dizer “por favor”, “obrigado” e “não há de quê”. Apesar de seu temperamento irritadiço – chegava a ser grosseiro e até irascível com os mais íntimos -, Moody raramente se descontrolava diante de provocações deliberadas, de insultos, de palavras mordazes, de falsidades. “Creio que, se Jesus Cristo foi capaz de participar da Última Ceia em companhia de Judas Iscariotes, posso apertar sua mão”, disse quando um inquiridor persistente lhe estendeu a mão. Certa vez, Moody derrubou um homem com um soco na escada da igreja da rua Illinois por tê-lo insultado ou, provavelmente, por ter feito um comentário maldoso a respeito de Emma. Depois de cinco minutos, Moody fez uma retratação em público, prometendo jamais maltratar alguém.

O defeito mais grave de Moody era outro: o desejo ardente de estabelecer em Chicago o reino de Cristo usando de muito esforço e aplicando a prática de duzentas visitas no dia de ano-novo.

Essa agressividade era sintoma da tensão interior e da paixão que sentia pelas multidões.

Entretanto, houve um momento de profundo desânimo, de acordo com as palavras de Will, irmão de B. f. Jacobs, das quais não temos prova testemunhal. Em 1911, Will Jacobs disse lembrar-se de ter visto Moody entrar no escritório deles num “dia frio, muito frio, daquele inverno de 1870-1871” sem casaco e usando um paletó surrado. “Ouvi-o com atenção, e foram estas as palavras de Moody: ‘Jacobs, não tenho certeza, mas acho que ter de desistir de tudo (...). Deixei minha mulher e filhos nesta manhã de inverno sem ter o que comer em casa e sem dinheiro para comprar comida. Jacobs, não estou preocupado comigo (...). Mas, ah’, neste ponto o homem forte ficou grandemente abalado, ‘é difícil para um homem deixar esposa e filhos sem nenhum alimento em casa”. Moody nunca se lembrou dessa época de tanta miséria, ou, talvez, nunca tenha revelado isso a alguém. Durante aquele inverno, Fleming Revel continuava morando na casa dos Moody, ganhando um bom salário numa gráfica. Será que ele saía em jejum para trabalhar?

O Poder do Espírito


Moody sabia que deveria decidir, de uma vez por todas, se queria ser um organizador de instituições sócio-religiosas ou um evangelista. E mais: no início de 1871, percebeu, mas fingiu não ter percebido, que “Deus estava me chamando para um trabalho mais nobre: sair e pregar o evangelho ao mundo inteiro, em vez de permanecer em Chicago. Lutei contra isso”.

Estava, portanto, se tornando um instrumento de percussão – certamente não um “címbalo que retine” -, não por falta de caridade, nem por falta de conhecimento de doutrinas bíblicas, graças a Moorhouse. Porém, a tensão interior, sua rebeldia parcialmente reconhecida, a mistura de objetivos e a completa falta de integração davam-lhe a certeza de que suas palestras e pregações estavam longe de ser parecidas com as do apóstolo Paulo, isso na “demonstração do poder do Espírito”.

Duas mulheres de sua congregação notaram isso.

Sarah Anne Cooke, uma imigrante recém-chegada da Inglaterra – mais uma influência inglesa sobre aquele que viria a influenciar a Inglaterra -, e uma mulher de Buckinghamshire apenas 10 anos mais velha que Moody, mas conhecida por quase todos como “tia” – Moody sempre a considerou uma senhora idosa.

Numa reunião de acampamento realizada em junho de 1871, “sobreveio-me uma enorme preocupação a respeito do Sr Moody: o Senhor o batizaria com o Espírito Santo e fogo”. Acompanhada de uma amiga, uma viúva chamada sra Hawshurst, sentou-se no primeiro banco. Enquanto Moody pregava, obviamente elas oravam.

_ Temos orado pelo senhor _ disseram após o culto.

Essas palavras o irritaram.

_ “Por que não oram pelos outros?”

_ Porque o senhor necessita do Poder do Espírito.

- “Eu necessito de poder?” _ Moody bufou.

Ele não teve saída. “Após aquele diálogo, as duas senhoras não perderam qualquer oportunidade de lhe falar sobre sua necessidade”. Elas o perseguiram como um cão de caça vindo do céu: em meio a lágrimas, que ele ocultava de ambas, ou entre estrepitosas gargalhadas. A princípio, elas notaram em Moody “pouca convicção de suas necessidades”. Mas aquela perseguição desenfreada “me fez repensar. Pedi a elas que viessem conversar comigo, e elas abriram o coração durante uma oração, dizendo que eu deveria me abastecer do Espírito Santo. Um grande anseio tomou conta de minha alma. Eu não sabia o que aquilo significava. Comecei a chorar alto, como nunca havia chorado. Senti realmente que, se recebesse esse poder para o meu ministério, não valeria mais a pena viver”.

Mas o poder não foi recebido, porque ele se recusava a admitir a si mesmo o chamado de “ide por todo o mundo”.

Em setembro, Moody convidou tia Cooke e a sra Hamxhurst para orarem com ele todas as sextas-feiras à tarde, em seu escritório no Farwell Hall. Elas oravam em voz alta, uma por vez. Na sexta-feira, 6 de outubro, “o desespero do Sr Moody foi tão grande que ele rolou no chão e, em meio a muitas lágrimas e gemidos, clamou a Deus para ser batizado com o Espírito Santo e fogo”.

Os céus continuaram tão metálicos como o firmamento naquele memorável veranico. Os dias transcorriam sem chuva, com ventos muito fortes. As campinas e a cidade estavam áridas, tão áridas quanto o coração de Moody. Ele saltava e chorava como um profeta de baal, mas não ouvia nenhuma voz, nenhuma resposta. Tudo isso porque Moody não se colocava no altar, não cedia em sua determinação de permanecer em Chicago. Como abandonar a próspera missão da rua Illinois? Quem controlaria aquele belo monumento com tanto zelo – o Farwell Hall -, com suas duzentas luminárias a gás, seus refletores gigantescos, seus 2 500 assentos, seu esplêndido órgão? Nada o tiraria daqueles dois locais tão queridos. A voz calma e tranqüila “vão pelo mundo e preguem o evangelho a todas as pessoas” não poderia estar vindo do céu...

Naquela sexta-feira, 6 de outubro, Moody “clamou a Deus para ser batizado com fogo”.

Na noite de domingo, 8 de outubro, o Farwell Hall estava lotado. Moody falou maravilhosamente.

Sankei, (o cantor que acompanhava Moody), disse que “sua voz foi abafada por um barulho muito alto de carros de bombeiros... O Sr Moody decidiu encerrar a reunião imediatamente, porque a platéia estava ficando inquieta e alarmada”.

Moody e Sankei saíram pelos fundos e avistaram um fogo violento misturado com fumaça na direção sudoeste, vindo da principal cidade. Eles se separaram. Sankei dirigiu-se ao local para ajudar, e Moody foi para casa, do outro lado do rio, a fim de acalmar Emma e as crianças.

À meia noite, grande parte de Chicago transformou-se num holocausto de labaredas violentas, edifícios desabando, cavalos relinchando apavorados...

No quarteirão onde a família Moody morava, a temporária sensação de segurança desapareceu nas primeiras horas da madrugada, quando a polícia bateu na casa dos que já estavam deitados e insistiu para que fugissem dali. Moody tinha ido inspecionar a rua Illinois. Sua secretária, Katherine Abbott, ajudou-o a tirar os objetos importantes de seu escritório. Logo que chegou a sua casa, as chamas envolveram a Igreja da Missão e a rua inteira. Emma já havia despertado as crianças...

Enquanto o casal Moody ajuntava rapidamente seus pertences, a pequena Emma caminhou com passos titubeantes até a porta. A ralé da cidade corria desenfreadamente, saqueando casas. Um sujeito asqueroso viu a menina bem vestida e chamou-a com um gesto. Atraída pela presença do homem, Emma começou a correr em sua direção, mas foi salva pelo vestido que ficou preso na porta.

As chamas devoraram o quarteirão contíguo. A pedido de Moody, um vizinho, proprietário de um cavalo e de uma charrete, levou os próprios filhos e os de Moody em segurança até a casa de amigos, atravessando as ruas onde o pânico havia se instalado. Em seguida, Moody colocou Bíblias e alguns pertences mais valiosos dentro de um carrinho de criança... Depois de abandonar a casa da rua State, os Moody fizeram o possível para ajudar os outros.

O fogo não deu tréguas no dia seguinte. Enquanto milhares de desabrigados saíam da cidade, os ladrões saqueavam as casas...

Os Moody não sabiam se Sankei havia morrido no incêndio.

O Farwell Hall havia desaparecido, da mesma forma que todos os edifícios daquela parte da cidade.

O incêndio só terminou na quarta-feira. Chicago encontrava-se em completa ruína. A ajuda vinda dos Estados vizinhos foi mal organizada.

Quinze dias depois, Moody levou a família, conforme a jovem Emma recorda, “às ruínas de nossa casa. Meu pai vasculhou todo o local todo o local com a ajuda de uma bengala. O único objeto de valor encontrado foi meu fogãozinho de ferro em perfeito estado”.

Moody recebeu uma quantia de George H. Stuart e John Wanamaker, da Filadélfia. Um homem de uma cidade litorânea de Massachusetts recorreu aos vizinhos ricos; Moody detestou seu trabalho em Nova York: “Não sentia o desejo no coração de solicitar dinheiro. Não sabia fazer esse tipo de apelo. Clamava a Deus o tempo todo para que me abastecesse com seu Santo Espírito”.

Suas orações continuaram sem resposta, porque ele estava lutando contra a vontade de Deus. O Farwell Hall e a rua Illinois estavam reduzidas a cinzas, os dez ou doze comitês espalharam-se como fagulhas ao vento, e Moody não tinha condições de enfrentar o trabalho exaustivo de reorganizar tudo. Será que Deus o estava chamando para percorrer o país inteiro, talvez o mundo? A resposta de Moody foi: “Não”. Todas as cadeias que o prendiam a Chicago estavam quebradas, com exceção de uma: sua vontade.

Mesmo assim, desejava receber o poder de Deus. Começou a vagar pelas ruas de Chicago, à noite, lutando consigo mesmo, ansiando por um Pentecostes.

Estava caminhando durante o dia numa das ruas mais movimentadas da cidade – a Broadway ou a Quinta Avenida, não se lembrava. Passava no meio da multidão e ouvia o som de tílburis e carruagens e dos meninos jornaleiros. Foi nesse ambiente de barulho e movimento que a última cadeia se rompeu. Em completa tranqüilidade, sem oferecer nenhuma resistência, rendeu-se. Imediatamente, uma tremenda sensação da presença de Deus tomou conta de sua alma. “O Deus Todo-Poderoso parecia estar muito perto de mim. Eu precisava ficar sozinho”. Dirigiu-se apressado à casa de um amigo, nas proximidades, entregou seu cartão de visitas ao criado e não aceitou o convite de “venha almoçar comigo”. “Quero ficar sozinho. Preciso de um quarto para me trancar lá dentro”.

O amigo notou que o momento era sério. Moody trancou a porta do quarto e se sentou no sofá. O ambiente parecia inteiramente tomado pela presença abrasadora de deus. Moody deitou-se no chão e permitiu que sua alma fosse banhada pelo divino. A respeito dessa comunhão com o Senhor, desse monte da transfiguração, “só posso dizer que Deus se revelou a mim, e senti seu amor de forma tão intensa que tive de suplicar-lhe que retirasse de mim a sua mão”. A confusão mental foi substituída pela paz, o conflito interior transformou-se em completa harmonia. A força dominadora que martelara nas portas do inferno e atacara, com tanta insistência, o mundo, a carne e o mal fora dissolvida e remodelada, deixando-o um homem meigo como um bebê, totalmente dependente de um poder sobrenatural. Não seria mais ele quem escolheria seu caminho nem o orgulho dominaria sua vontade. Deus o guiaria e supriria suas necessidades. Moody nunca mais sentiria sede. Os dias apáticos e secos não mais existiriam. “vivia procurando e carregando água o tempo todo. Mas agora tenho um rio que me carrega”. O relógio de uma igreja nas proximidades bateu um quarto de hora, meia hora, três quartos e a hora completa, mais outra hora.

Moody Maluco passou a ser Moody, o homem de Deus.


O mundo logo veria


Perto de Dublin, um homem abastado da Irmandade de Plymonth abriu a mansão para uma “reunião de Cristãos”, e ali Moody encontrou-se novamente com Varley, o açougueiro. Em companhia de uns vinte homens tão fervorosos quanto eles, passaram uma noite em oração. Na manhã seguinte, enquanto os dois, sonolentos, porém eufóricos, tagarelavam no frondoso jardim da mansão de Bewley, Varley deixou escapar um comentário que serviu de inspiração para Moody. Foi um comentário não premeditado, casual. Varley esqueceu-se dele rapidamente e só se lembrou daquelas suas palavras um ano depois.

Dirigindo-se a Moody, Varley afirmou:

_ Moody, o mundo ainda não viu o que Deus pode fazer com um homem plenamente consagrado a Ele.

A frase causou efeito. Moody não fez comentário algum no momento, mas devorou as palavras de Varley, absorveu-as, digeriu-as e ruminou-as durante dias e semanas: “O mundo ainda não viu o que Deus pode fazer com, para e por um homem plenamente consagrado a Ele (...). Um homem! Varley estava se referindo a qualquer homem. Varley não disse que precisava ser um homem instruído, erudito ou outra coisa qualquer. Apenas um homem. Se é assim, pelo espírito Santo que habita em mim, sou esse homem”. De volta a Londres, na galeria do Metropolitan Tabernacle, a observação de Varley e a pregação de Spurgeon concentraram-se em “algo que nunca imaginei antes. Não era Spurgeon quem realizava aquela obra; era Deus. E se Deus podia usar Spurgeon, poderia usar-me também!”.

Que gritaria!


A campanha de Newcastle começou entre pessoas da classe média que costumavam frequentar a igreja. Aos poucos, atingiu a classe alta e a classe baixa. Comerciantes ricos, construtores de navios e proprietários de minas de carvão começaram a freqüentar as palestras, incentivados pela forte recomendação de um membro do Parlamento local que, por meio do periódico Newcastle Chronicle, elogiou o “maravilhoso fenômeno religioso”, seu caráter anti-sectário, a sinceridade de Moody e, acima de tudo, o fato de “nessas reuniões nunca se ouvir o tilintar de moedas”. Os geordies, homens pálidos e raquíticos, que, mal alimentados, trabalhavam horas a fio debaixo da terra, os moradores de cortiços que passavam a vida respirando pó de carvão, as “massas” que Moody ansiava por alcançar, todos continuavam distantes – até o momento em que ele tentou realizar uma reunião de mães. Certo dia, um bebê chorou tão alto que levou à irritação as pessoas que participavam do encontro, fazendo com que a mãe chegasse às lágrimas. Agindo de maneira inversa à de um evangelista do fim do século XIX que se recusava a continuar a falar enquanto um bebê que fazia barulho não fosse retirado do recinto em que estava, Moody anunciou, de maneira impulsiva e, ao mesmo tempo, encantadora, a implantação de uma reunião para mulheres, da qual só participariam mães que estivessem acompanhadas de seus bebês. Suas colaboradoras, senhoras delicadas (na década de 1870, havia uma nítida distinção entre “mulheres” e “senhoras”), dirigiram-se, conforme Emma se recordou, “às ruas mais pobres e desprezíveis da cidade e convidaram as mulheres a comparecer com seus bebês consigo. Que gritaria de bebês! (...) Mas as mulheres pobres, com lágrimas nos olhos, foram capazes de ouvir a mensagem, e o sr. Sankey e o sr. Moody prosseguiram o trabalho extraordinariamente bem”.

A Escócia


No subúrbio Walker, em Newcastle, onde as folhas das árvores já estavam caindo, Moody notou, enquanto conversava na sala anexa à capela com algumas pessoas interessadas no evangelho, a presença de um clérigo que se como “reverendo John Kelman, pastor da Igreja nacional da Escócia, em Leith, o porto de Edinburgh”. Kelman apresentou uma proposta surpreendente. “Venha a Edinburgh”, ele disse, “e eu e meus amigos das igrejas independentes e oficiais organizaremos um comitê. Prepararemos o terreno e creio que todos os presbíteros o apoiarão. Conquiste Edinburgh, e o senhor conquistará a Escócia. A Escócia necessita do senhor”.

Moody ficou estarrecido. Conquistar Edinburgh, a Atenas do Norte, onde sua falta de instrução formal seria considerada uma insolência? Teólogos presbiterianos competentes, eruditos exigentes e extremamente zelosos, ameaçadores, preconceituosos e rígidos estariam na plataforma. Sua série de anedotas e de ensinamentos bíblicos informais poderia escando cântico de hinos “humanos”, aqueles que não obedecem às versões métricas dos slamos. Hesitante, Moody insinuou que, só depois de visitar Dundee, aceitaria um convite para ir Edinburgh. Kelman foi enfático: “Primeiro, Edinburgh. Depois, o senhor conquistará a nação”.

Moody não respondeu imediatamente. Tratava-se de um momento decisivo, sua primeira oportunidade de trabalhar na capital de um país e sob a organização de um comitê representativo. Os líderes religiosos de Edinburgh assegurou Kelman, lhe dariam respaldo. Aquela – Moody refletiu – era a opinião dele.

Na noite de 22 de novembro de 1873, um sábado sombrio varrido por uma tempestade, Moody e Sankey, sem qualquer comunicação prévia, chegaram a Edinburgh, a cidade mais bonita do mundo, segundo a opinião de Emma.

 “A igreja estava completamente lotada”, escreveu Hood Wilson, depois de uma semana, “e não havia lugar nem para ficar em pé. Grande número de pessoas passou a crer e encontrou a paz – dentre elas, algumas consideradas muito improváveis de aceitarem a Cristo. Noite após noite (...) vinham todos os tipos de pessoas de todas as partes da cidade. Muitas vieram de várias partes do país, inclusive alguns pastores. Senti uma emoção muito grande e a esperança de ser abençoado. Temos muito trabalho pela frente”.

Aos 36 anos de idade, Moody passou do anonimato para a fama.

A surpresa foi o ponto alto daquelas sete semanas fantásticas. Moody  maravilhou-se ao ver aqueles escoceses de semblante sério ouvindo a enxurrada de sua “rápida dicção que não faz pausas nas vírgulas nem nos dois pontos”.

A congregação era sempre surpreendida pela alegria: não por causa de um acontecimento fortuito, conforme ocorreu em York, mas em razão de uma alegria constante, como se o sol da primavera estivesse dispersando a escuridão do frio de novembro, enquanto homens e mulheres passavam a compreender o fato surpreendente de que Deus ama os pecadores; antes, acreditavam que Deus amava apenas os santos.

O fósforo foi aceso


“Um moço”, ouviram Moody contar, “disse-me ontem à noite que era pecador demais para ser salvo. Ora, foi para salvar os pecadores que Cristo veio ao mundo! ‘Este homem recebe pecadores e come com eles.’ A única acusação que podiam fazer contra Cristo aqui na terra era a de que ele recebia homens maus. É esse tipo de homem que está querendo receber. Tudo o que você precisa fazer é provar que é pecador, e eu lhe provarei que existe um Salvador. Quanto maior o pecado, maior será a necessidade de um Salvador. Você diz que seu coração é insensível. Então, é claro que necessita de Cristo para abrandá-lo. Não é capaz de fazer isso sozinho. Quanto mais insensível for seu coração, mais necessitará de Cristo. Quanto mais pecados tiver, mais necessitará de um Salvador. Se seus pecados se elevam diante de você como uma montanha, tenha em mente que o Sangue de Jesus Cristo purifica todos os pecados. Não há pecados tão grandes, tão numerosos, tão terríveis ou tão desprezíveis que não possam ser purificados pelo Sangue de Cristo. Portanto, volto a pregar o antigo evangelho: ‘Pois, o Filho do homem veio buscar e salvar o que estava perdido’. Foi o pecado de adão, sua ruína, que revelou o amor de Deus. Foi sua queda, seu pecado, que revelou esse amor. Um amigo meu de Manchester visitou Chicago alguns anos atrás (...)” e Moody prosseguia contando uma anedota.

A platéia mal acreditava no que ouvia. Tudo parecia tão simples! “Os pregadores escoceses”, escreveu um leigo com o pseudônimo de “Espectador”, na coluna do leitor do Scotsman, “nestes últimos cinqüenta anos pouco têm realizado, a não ser reiterar doutrinas que, pelo menos para mim, não passam de um enigma indecifrável. Toda engenhosidade de nossos pregadores é empregada em nos convencer de que estamos sujeitos à ira de Deus e de que só podemos receber perdão se acreditarmos num complexo enigma teológico...” o “Espectador” solicitavaaos líderes religiosos que aprendessem a lição com os dois estrangeiros que tinham vindo para “cantar e proclamar a declaração da bondade e do perdão de Deus (...). abandonem esse sistema complexo”.

Moody e Sankey haviam acendido um fósforo no meio dos gravetos secos da religião escocesa. E fizeram mais ainda. Charteris prossegue; “Se alguém tivesse dito que o sectarismo a que estávamos acostumados e a que tanto prezávamos, tão visível não apenas nos meios eclesiásticos, mas também na vida social e privada, desapareceria na presença de dois evangelistas que se infiltraram em nosso meio sem nenhuma credencial eclesiástica, a idéia teria parecido absolutamente absurda”.

Foi esse “resultado tão abençoado e precioso” que deu a Moody um lugar permanente na história da Escócia.

No povoado de Firt of Clyde, Inverkip, morava um jovem ferroviário chamado John McNeil. “Povoado silencioso; igrejinha silenciosa; cultos de adoração silenciosos. Nenhum enfeite, claro. De repente, uma agitação! Nosso pastor viajou a Edinburgh, ouviu um pregador, um norte-americano chamado Moody, e um cantor chamado Sankey, e, de acordo com ele, Edinburgh encontra-se em estado de erupção! Está havendo um reavivamento (...) seja lá o que for que isso signifique. O sussurro por um reavivamento está na respiração, nas orações e nas pregações de nosso pastor. Nós, jovens, começamos a conversar uns com os outros, tranquilamente, a respeito de assuntos profundos; começamos a procurar e encontramos”.

Inverkip foi uma das dezenas de paróquias e cidades espiritualmente despertadas. Moody e Sankey receberam enxurradas de convites. Em 12 de janeiro, fizeram uma viagem de um dia a Berwick-on-Tweed, onde, quinze dias depois, John Cairns continuava “atarefado de manhã até a noite à procura de pessoas para comparecer a nossas reuniões ou que estejam ansiosas ou dispostas para conversarmos com elas a respeito da religião. A Bolsa de Cereais está repleta, e quase sempre lotada todas as noites (...). nossas reuniões de oração ao meio-dia têm a participação de 150 a 200 pessoas (...). o trabalho é árduo, mas eu nunca cheguei tão perto da alma humana. Se metade dessas pessoas permanecessem firmes, essa terá sido a experiência mais maravilhosa de todas aquelas por que passei até hoje”.

A sala de conversa


“Moody”, disse Blaikie, “punha sua ênfase na doutrina de que o cristianismo não é um simples sentimento, mas uma submissão completa ao Cristo vivo e pessoal”. Assim conforme ocorreu em Chicago, a sala de conversa após a reunião passou a ser a mola mestra da campanha... Mas poucos haviam presenciado esse fato, e os pastores suspeitavam de que a sala de conversa após a reunião acabasse atuando como uma estufa emocional ou como incentivo à completa submissão diante da doutrina desequilibrada do livre-arbítrio, ou até mesmo como uma obscura imitação do confessionário católico romano. Os temores foram rapidamente dissipados. O Daily News relatou que os pastores “vêem que suas dificuldades desaparecem quando existe contato pessoal no trabalho”. Moody constatou essa realidade quando viu os bancos da igreja ou do salão serem usados, aqui e ali, após o culto, para reuniões em que homens de bigode, roupa preta e lenço branco no pescoço, com bíblias abertas, conversavam sinceramente com os interessados. Moody pediu a seus “colaboradores pessoais”, conforme os chamava, que fossem “pacientes e cuidadosos ao lidar com cada caso, sem pressa de passar para o caso seguinte. Aguardem pacientemente, insistam em explicar a Palavra de Deus e pensem, oh!, pensem no significado de ganhar uma alma para Cristo, não lamentem o tempo passado com uma pessoa”. Dwinght Moody tornara-se mais intrépido do que nos tempos de Chicago.

Um incêndio espiritual

As lições simples ensinadas para adultos na Escola Bíblica Dominical preencheram um vazio dedicado pela exegese cansativa que fluía dos púlpitos. Os pastores engoliram o orgulho e introduziram o método de Moody. Em 1900, sir George Adam Smith, grande estudioso da Bíblia, escreveu: “O povo da Escócia deve ao Sr Moody o poderoso reavivamento ocorrido em nossos cursos bíblicos”. As reuniões dos moços, realizadas no fim de um dia exaustivo, extraíram o que havia de melhor em Moody. A que foi realizada na terça-feira, 24 de fevereiro, 1874, tornou-se conhecida em toda a Escócia como a “Noite dos 101”.

Enquanto Moody pregava no City Hall, cinco estudantes de Edinburgh, liderados por Henry Drummond, faziam “apelos breves, solenes e comoventes” na igreja Ewing Place, “lotada do chão até o teto”. Quando Hood Wilson fez a pergunta clássica: “Por que não esta noite?”, Moody entrou no recinto. Assim que Hood Wilson terminou de falar, Moody disse com voz tranqüila: “Todos os que têm certeza de ser cristãos, levantem-se!...” “Sentem-se novamente, por favor!” Quero que os três primeiros bancos sejam desocupados. Aqueles que desejarem aceitar a Cristo como seu Salvador, venham à frente, para que possamos orar por vocês. Curvemos a cabeça enquanto isso”.

Houve uma extraordinária movimentação em meio a um silêncio total. “De cada parte do edifício, foram-se formando filas e mais filas de pessoas.” Moody ergueu os olhos e orou em vez alta. Nas palavras de James Stalker, um dos estudantes de Edinburgh, “a sensação do poder divino foi esmagadora, e me lembro muito bem de ter percorrido a plataforma com o olhar e escondido o rosto com as mãos, sentindo-me incapaz de continuar a presenciar a cena”. Os bancos da frente ficaram lotados. Moody pediu que outros e mais outros fossem desocupados.

Pelas contas de um diácono, 101 pessoas se apresentaram. “os amigos cristãos permaneceram conversando com os interessados até cerca de meia-noite”. Perto do encerramento, um jovem afirmou que “queria ter um encontro com cristo havia muito tempo”, mas estava indo embora “sem sentir alívio; o sr Moody aproximou-se de mim e segurou minha mão. Olhou para mim – ou melhor, cravou os olhos nos meus – e perguntou se eu queria aceitar a Cristo naquele instante. Não consegui falar, mas meu coração disse: Sim”.

De volta ao hotel onde estavam hospedados, os Cinco de Edinburgh continuaram reunidos durante a madrugada “discutindo a extraordinária cena que acabamos de presenciar”. Mais tarde, Henry Drummond presenteou os estudantes com uma bela encadernação do Novo Testamento, pedindo que todos assinassem cada exemplar; a cópia que ficou com Drummond foi usada por ele nos anos seguintes até se tornar “completamente surrada”. Um dos diáconos de Glasgow, William Oatts, que possuía uma lista com os nomes e endereços dos 101, manteve contato com a maioria deles ao longo dos anos. “aqueles moços permaneceram firmes? A decisão deles foi verdadeira?”. Meio século depois, afirmou que, para muitos, a decisão foi verdadeira; eram moços cristãos trabalhando ativamente em Glasgow, Londres e Austrália. Logo após aquela noite, a maioria dos 101 continuou a trabalhar diligentemente com jovens de todas as categorias. A campanha Moody, conforme as pessoas já observaram na época, foi um incêndio espiritual, mantendo acesa a chama espiritual que continuou a brilhar muito tempo após a partida dos evangelistas.


Ainda bem


O ilustre dr Dale, da Igreja Congregacional Carr’s Lane, em Birgminham, teólogo, pregador e político, ficou atônito. Esperava um reavivamento, porque a vida religiosa havia sido afetada, e os resultados eram aguardados para dois ou três anos, mas “certamente não imaginei’ que seria por meio de “dois norte-americanos desconhecidos”.

Ele disse a Moody:

- A obra certamente é de Deus, porque não vejo nenhuma relação entre o senhor e o que tem feito.

Moody riu e replicou:

- “Eu ficaria muito triste se não fosse assim”.

Muitos sentiram-se atônitos. Até os que atribuíram a força do movimento à tremenda onda de oração estimulada por Moody perguntavam a si mesmos como aquele homem, apesar de ser norte-americano, atraía tanta atenção.

O segredo estava, em parte, na maneira de Dwinght Moody pregar. “Perfeita naturalidade”, descreveu Dale. “Fala de forma perfeitamente desembaraçada e direta, como se estivesse conversando com meia dúzia de amigos diante da lareira da sua casa”.

Numa época de sermões ingleses cansativos, em que Spurgeon, o mais popular de todos os pregadores, usava frases empoladas e recheadas de metáforas, Moody limitava-se a ter um bate-papo “com 13 mil pessoas como se fossem treze pessoas”, a respeito do que a Bíblia lhe mostrava. Ele a aplicava no contexto do dia a dia.

A Inglaterra

Moody tinha o dom de desaparecer gradualmente da consciência de seus ouvintes. “Ao ouvir suas palestras, o pessoal se esquecia completamente do homem e ficava embevecido demais com sua mensagem, atraído demais diante de seu apelo sincero, intenso e poderoso. Contava muitas ilustrações extraídas de experiências pessoais, porém jamais chamava a atenção para si (...). Ficava completamente concentrado na mensagem e em transmiti-la ao coração e à consciência dos que o ouviam”.

Em uma reunião para homens, em Liverpool, correu a notícia de que um grupo de racionalistas estava presente. Antes do culto, na sala reservada aos palestrantes, F. B. Meyer ficou abismado com a oração de Moody, com seu poderoso “peso no coração”. Moody pregou. Após o culto, um grande número de pessoas permaneceu no lugar, para a conversa que já se tornara comum depois das reuniões. Moody desceu da plataforma, subiu numa cadeira “e iniciou um maravilhoso discurso. Suas denúncias contra o pecado e suas chicotadas na consciência foram terríveis. Parecia lutar contra um poder invisível. Sob aquelas palavras inflamadas, o rosto dos homens empalideceram diante da certeza de terem violado a lei de Deus. A seguir, começou a falar das exortações do evangelho, todas as pessoas pareciam completamente subjugadas. Um homem levantou-se e disse: ‘Sr Moody, quero ser cristão’. Em instantes, quarenta ou cinqüenta homens ficaram em pé...”

 A mensagem de Moody brotou em uma Inglaterra onde a base do pensamento era fortemente cristã, onde somente a camada mais humilde da população não conhecia coisa alguma da Bíblia. Tocou os pontos nevrálgicos da religião dos ingleses. Conforme ele próprio disse: “A Igreja está morrendo por excesso de respeitabilidade”, sufocada pelo próprio sucesso.

Na década de 1870, o reavivamento evangélico havia se infiltrado em todos os cantos e frestas a fim de dominar grande parte da perspectiva de muita gente, até mesmo os tractarianos ou agnósticos modernos, repudiando seus dogmas e arregimentando milhares de pessoas pertencentes à grande massa popular inculta que obedecia aos princípios das igrejas evangélicas, mas não vivia de acordo com eles. As crenças e éticas revolucionárias do século XVIII

 Tornaram-se necessárias para alguém se promover ou ter um bom nome. Os pecados da carne precisavam ser escondidos sob uma aparência atraente, porém superficial. A regra áurea havia mudado para “não serás descoberto”. Além disso, a reação contra a obscenidade do passado gerara melindres no presente, ao passo que a desigualdade dos sexos era muito mais acentuada do que na condenação vitoriana de “mulheres pecadoras”, cujos sedutores ou patrões, apesar de moderadamente discreto, floresciam de maneira despudorada e não condenada.

Moody rompeu essa tela de hipocrisia.

Havia ainda o cristianismo diluído, afirmando que o céu só seria alcançado mediante atos de bondade, e que o inferno estaa reservado aos perversos. Usava-se o medo do inferno como punição para proteger o código aceito, e não se conhecia nada a respeito da Graça. Contrariamente a isso, Moody proclamava a vida eterna como dádiva de Deus para os pecadores. Não negava o castigo eterno aos que recusavam essa dádiva, “mas creio que o ímã que vai até o fundo do poço é o amor de Jesus”. Ele repudiava os moralistas. “quando o filho pródigo voltou para casa, a Graça foi a seu encontro e o abraçou. A lei dizia: ‘ele deve ser apedrejado!’. A Graça disse: ‘Abrace-o!’. A lei dizia: ‘ele deve ser espancado!’. A Graça disse; ‘Beije-o!’. A lei o perseguiu e o prendeu. A Graça disse: ‘Solte-o e deixe-o ir!’. A lei diz que sou um crápula; a Graça vem e me torna puro.”

Moody proclamava que Deus procura o homem mais do que o homem O procura; que a salvação não é uma recompensa concedida de má vontade a alguém sempre tentando fazer o bem, mas o novo nascimento a um pecador arrependido, que deseja uma vida semelhante à de Cristo. “Salvação instantânea”, proclamava repetidas vezes.

Nove anos depois, Dale contou a um amigo que, das duzentas pessoas que passaram a fazer parte de sua igreja por meio do trabalho de Moody, três quartos “perseveraram”.

É sobrehumano

O idoso lorde Shaftesbury surpreendeu-se por não ter sido convidado “para fazer parte do comitê nem fornecer meu nome (?) ou para manifestar simpatia”, nem ao menos para uma contribuição. Também não foi convidado para a recepção preliminar no Exeter Hall. “Vou esperar ser chamado. Vou evitar qualquer tipo de intrusão ou de obstrução”.

Acompanhando à distância, de sua casa em Grosvenor Square, alegrou-se ao ler as primeiras notícias, embora perplexo porque, “por tudo o que leio e ouço, eles ‘apresentam o evangelho’, mas, penso eu, um evangelho imperfeito. Falam de Cristo, mas não do ‘Cristo Crucificado!’ como o Divino Favor pode repousar sobre eles? É quase impossível considerar agora o poder e a influência como algo que não seja super-humano”. Estava um pouco perturbado porque os evangelistas transformavam os “limites da vida” em algo muito fácil: “a salvação é atirada, livremente, quase na cabeça dos ouvintes”.

Por volta de 25 de março, escreveu: “O sucesso de Moody e Sankey além de não diminuir, aumentou. Cada vez mais, parece ter caráter sobrenatural...”

No dia seguinte, Sexta-feira da Paixão, Shaftesbury compareceu à reunião pela primeira vez de admitiu, com alegria, que eles “pregam o Cristo Crucificado”. “Profundamente impressionado; e mais impressionado ainda por causa da imperfeição da coisa toda”. Na semana seguinte, em sua mansão em Dorset, sentou-se diante de sua escrivaninha alta e escreveu páginas e mais páginas em seu diário. A maneira pela qual Sankey cantou, simples demais, atingiu o ponto “mais profundo da alma e pareceu esvaziá-la de tudo, permanecendo apenas a idéia do bom, terno e humilde Pastor”. A voz de Moody era “de má qualidade e mal adestrada”; a linguagem, coloquial, e Shaftesbury ficou um pouco escandalizado, porque as anedotas chegavam “muitas vezes à beira do ‘humorismo’, quase a ponto de provocar uma gargalhada!”. (Esse deve ter sido o primoroso eufemismo ditado pelo antigo senso de boas maneiras do conde; a menos que a Sexta-feira da Paixão tivesse emudecido Moody.) Externamente, não havia nada que pudesse cativar; talvez só o que fosse capaz de oferecer resistência; “e mesmo assim o resultado é admirável, eficaz, comovente e nos leva a pensar (...): o Espírito Santo é capaz de realizar grandes obras em materiais frágeis. Não é isso o que está acontecendo hoje?”.

Shaftesbury pôs-se a pensar. No momento em que os bispos estavam fazendo palestras aqui e ali “sobre homilética e persuasão de grandes massas populares, eis que surgem dois homens simples e incultos, do outro lado do atlântico...”. Sem treinamento, sem especialização, sem denominação; por outro lado, sem nenhuma ameaça: “são calmos, sem tendência para fanatismo ou extravagância. Não desejam aterrorizar nem se vangloriar; evitam controvérsias e não provocam paixões!”. Apesar disso, milhares de pessoas de todas as classes, “trabalhadores, comerciantes, mercadores e advogados, sacerdotes e leigos reconhecem o poder e não são capazes de explicá-lo”. Shaftesbury repetiu que deveria haver “algo sobre-humano nisso”. Deus escolhe as coisas tolas do mundo para confundir os sábios. Molhando a pena no tinteiro (já estavam desaparecendo, mas ele ainda usava uma) e com a mão pairando acima do lado direito da página, pensou no maior pregador tractariano do dia e escreveu: “Moody fará muito mais em uma hora que o cônego Liddon em um século!”.

A partir de então, Shaftesbury ofereceu a Moody todo o peso de seu prestígio e sabedoria.

Depois de Moody, a religião dos ingleses passou a ser mais ardente, mais pessoal. Quando a força total do racionalismo e da crítica exacerbada, e a batalha entre a ciência e a religião – que tiveram impacto limitado até aquele instante – atingiram as classes inglesas mais cultas, no final da década de 1870, milhares de pessoas por toda a Inglaterra, que poderiam ter abandonado sua fé formal e melancólica e descambado para o agnosticismo, já haviam se tornado seguidoras de Cristo.

Na recepção feita para a despedida a Mooy e Sankey, o lorde Shaftesbury, deliberadamente ausente na recepção de boas vindas cinco meses antes, declarou: “Tenho conversado ao longo de muitos anos com o povo desta metrópole e posso afirmar-lhes que por onde tenho andado, encontro vestígios do trabalho desses homens, do sentimento produzido por eles, da marca que, espero, ficará indelével em muitas pessoas”. E, 34 anos depois, Eugene Stock, secretário leigo da Sociedade missionária da Igreja, que participava havia 50 anos de todos os eventos de Londres, escreveu sobre: “aquela maravilhosa Missão” de 1875: “A Igreja da Inglaterra quase não tem idéia de quanto deve a ela, tanto, de modo geral, ao sentido de realidade religiosa por ela provocado quanto ao número de homens e de mulheres que receberam sua influencia, muitos desses, hoje, pastores, leigos e mulheres muito respeitáveis, sim, e até bispos”.

Deus o abençoe


Quando iniciou os trabalhos no East End em Londres, Moody comunicou que, durante certo período, haveria dois cultos evangelísticos por noite. Na construção monstruosa recém montada no Bow Common, iluminada a gás, com telhado de ferro galvanizado e chão coberto de pó de serragem, Moody pregou todas as noites para 8 ou 9 mil pessoas da camada social com a qual ele mais gostava de conviver. Às 8:30, ele e Sankey atravessavam a cidade e se dirigiam até o Haymarket; do extremo leste para o oeste, de um mundo de cortiços e miséria para grandes mansões e parques majestosos. Arthur Kinnaird (posteriormente, 11º lorde Kinnaird), na época com 28 anos de idade, contou a Will Moody, em 1900: “Nada foi capaz de mostrar melhor a maravilhosa capacidade de adaptação de seu pai (...) do que sair do bow Common, a parte mais pobre da região leste, para o lado completamente oposto, tanto em termos de pessoas como de ambiente, e, mesmo assim, adaptar-se imediatamente, em ações e atitudes, às novas condições.

“Quando chegamos ao Opera House”, escreveu um dos presentes no evento, “avistamos uma imensa multidão do lado de fora. Conseguimos um lugar na parte mais alta da galeria, e, embora daquela distancia a figura do Sr Moody parecesse pequena, cada palavra, até mesmo as sussurradas, foi ouvida (...). Fiquei atônito com a reação do público ao ouvir o Sr Sankey cantar”. A duquesa de Sutherland “insiste em comparecer todos os dias”. O casal Sutherland havia hospedado Moody no Castelo Dunrobin, nas regiões montanhosas da Escócia. A duquesa havia se intitulado líder e condessa por conta própria e, recentemente, Mistress of the Robes, (Dama dos Mantos; senhora que ocupa o posto mais alto entre todas as outras a serviço da rainha da Inglaterra). O duque era proprietário de mais terras que qualquer outro homem da Europa. “Deus o abençoe”, escreveu o duque a Moody. “Nunca me esquecerei das palavras que ouvi do senhor. Se o senhor soubesse como é minha vida, as particularidades que não fui capaz de lhe contar no outro dia, e como minha história é terrível, haveria de orar muito por mim”. Em outro bilhete, o duque agradeceu a Moody “toda a alegria e força que nosso querido Deus tem-me dado por meio do senhor, e oro para que seu trabalho maravilhoso seja cada vez mais abençoado”.

Serei sincero


Edward Studd havia ganhado uma fortuna no norte da Índia. Possuía uma bela casa de campo, em Wiltshire, dominava a arte ded caçar raposas e tinha a paixão por corrida de cavalos. Recentemente, havia comprado o melhor cavalo... e inscreveu-o numa importante corrida... e enviou um “palpite quente” a outro agricultor aposentado, Vicent, um homem apaixonado por corridas: “Aposte em meu cavalo tudo o que você tem”.

Depois de alguns dias, abordou Vincent em Londres:

_ Quanto apostou em meu cavalo?

_ Nada!

_ Você é o homem mais tolo que já conheci. Não lhe disse... Venha jantar comigo... e você vai me dizer onde iremos após o jantar.

Studd não sabia que Vincent havia estado em Dublin para as corridas do outono anterior e perdera o vapor que o levaria para casa. Enquanto andava a esmo pela cidade... avistou o anúncio de teatro, conforme imaginou, sobre um espetáculo de variedades com dois norte-americanos, e entrou.

Após o jantar e de um gole de vinho do Porto, o anfitrião acendeu um charuto:

_ Onde iremos para nos divertir?

_ Ao Queen’s Opera House.

_ O quê? Não é lá que aqueles sujeitos, Moody e Sankey, estão? Ah, não, hoje não é domingo. Vamos ao teatro ou ao concerto.

_ Não, você é um homem de palavra. Disse que iria onde eu escolhesse.

Quando chegaram ao Haymarket, a irritação de Studd transformou-se em alívio pelo fato de estarem atrasados. Evidentemente, o lugar estava lotado. Vincent pegou um cartão de visitas e rabiscou algumas palavras: “Precisamos entrar. Estou acompanhado de um ricaço folgazão, e ele não concordará em volta se não conseguirmos lugar”. Entregou- o ao representante do comitê, um conhecido seu. Quando percebeu, Studd já estava acompanhando Vincent ao auditório. Atravessou a porta da sala verde, perto do palco, e sentou-se bem debaixo do nariz de Moody.

Studd não conseguiu desgrudar os olhos de Moddy até o fim da palestra.

_Esse sujeito acaba de me contar tudo o que fiz na vida! _ ele exclamou. _ vou voltar para ouvi-lo mais uma vez.

E assim fez, noite após noite, até que se converteu.

Posteriormente, procurou saber de Moody:

_ Quero ter uma conversa franca com o Senhor. Agora que sou cristão devo abandonar as corridas de cavalo, caçadas, teatros e bailes?

_ “Sr Studd, o senhor foi sincero comigo. Serei sincero com o senhor. Corrida de cavalo significa aposta, e aposta significa jogo. Não entendo como um jogador possa ser cristão. Faça outras coisas de que o senhor gosta”.

Studd insistiu. Qual seria o conselho de Moody a respeito de teatro e de jogos de cartas?

¬ “Sr Studd, o senhor tem filhos e outras pessoas que o amam. Agora que é um homem salvo, haverá de querer que eles também sejam salvos; deus vai lhe mostrar almas a serem salvas, e, assim que o senhor ganhar uma delas, deixará de se preocupar com outras coisas”.

Studd viveu mais dois anos com simplicidade. Porém, em seu sepultamento, disseram que El fez mais nesses dois anos que muitos cristãos em vinte. Afastou-se das corridas de cavalo, transformou o enorme Tedworth Hall em um salão de reuniões, escreveu aos amigos levando-lhes a salvação, e ria quando recebia respostas grosseiras; chamou seu alfaiate, seu costureiro de camisas e seu vendedor de charutos e lhes falou de Cristo. “Eu só posso dizer”, contou seu cocheiro, “que existe um novo homem debaixo da mesma pele”.

Mais intimidade


A influência que esses 2 anos, (na Escócia e na Inglaterra), exerceram sobre Moody foi incalculável... Seu amigo íntimo D.W. Whittle, logo após retornar aos Estados Unidos, maravilhou-se porque “a única mudança que vejo nele agora é um desenvolvimento no poder de discernir e um discurso com mais peso e convicção. Está plenamente consciente de que tudo é obra de Deus. Ao orar sozinho com ele, ci sua humildade semelhante a de uma criança perante Deus. No trabalho com ele, vi sua coragem semelhante à de um leão perante os homens. Nenhuma hesitação. Nenhum retraimento. Nenhuma timidez”. Em vez de esvaziar-se, adquiriu mais conhecimento, um discernimento mais nítido, porque parecia uma esponja assimilando tudo, de maneira consciente e inconsciente. Uma escocesa, a sra Barbour, que o conheceu em Edinburgh logo no início de suas campanhas, em dezembro de 1873, foi vê-lo em Londres, no verão de 1875. “Ele abandonou grande parte das coisas peculiares e discrepantes que costumava dizer. Está muito mais calmo e surpreendentemente senhor de si. Diria que está ‘domesticado’, embora continue o homem fervoroso e sincero de sempre”. A Grã-Bretanha fez Moody amadurecer. Deu-lhe fama internacional.


Mamãe e Samuel


Pessoas desconhecidas perambulavam pela rua Main na esperança de ver os importantes evangelistas... Porém, o ferreiro da cidade, “me odiava, falava muito mal de mim. A oficina do ferreiro era o local de encontro de todos os homens que se opunham fortemente a mim”. Betsey não faltou ao dever, confiante nas convicções contrárias às de seu filho desde os tempo de maluquice. Dizia que seria unitarista até morrer. Nas colinas, acompanhado ou não de amigos, Moody orava incessantemente. Algum hino, alguma história da Bíblia poderia perfurar o escudo da convicção moral de sua mãe, mas ela não deu nenhum sinal até uma das última s reuniões, quando Moody pediu que se levantassem todos os que desejassem aceitar a cristo como Filho de Deus e confiar n’Ele como seu Salvador, “para que possamos orar por vocês”. Betsey levantou-se. Moody ficou tão comovido que mal conseguiu pedir a outra pessoa que conduzisse a oração.

Na última noite, Samuel levantou-se.

A emoção de Moody não foi passageira. Da mesma forma que uma represa é rompida, o amor foi derramado. No pouco tempo em que viveu,     “meu irmão, que eu tanto almejava alcançar (...), assumiu um papel de liderança nas reuniões religiosas. Conversava com os irmãos mais fracos e lhes dava força. Procurava encontrar almas perdidas nos dois lados do rio Connecticut, nos dois lados do vale”. Quando foi organizada a ACM em Northfiekld, foi eleito presidente.

Agora que Moody era amado por Betsey e Samuel não só pelo que era, mas também por seu trabalho, suas raízes se aprofundaram em Northfield. Aquele centro do unitarismo frio e estagnado transformou-se no foco do “maior reavivamento ocorrido naquela parte do Estado”. No inverno seguinte (a lembrança é de W.T.holton), “por quilômetros ao redor, foram realizadas reuniões de oração em quase todas as escolas e, na maioria das vezes, em casas particulares; trabalhadores, oradores e cantores percorriam a região em grandes grupos”. Quando esteve em Northfield no verão seguinte, Whittle escreveu: “Um trabalho maravilhoso foi realizado aqui nesta comunidade no ano passado (...). Moody é querido por ricos e pobres e adquiriu a confiança de todos. Está muito feliz com os resultados de seu trabalho aqui em sua terra natal. O testemunho dos convertidos o alegra, e as histórias inteligentes e marcantes dessas pessoas são guardadas por ele como tesouros, para serem usadas em seu trabalho. Ele é um homem entre homens e sente-se completamente à vontade com eles”.

Deus tem usado

Quando abandonou a carreira de negócios, Moody desprezo todos os meios que lhe pudessem trazer fortuna. Os ricos ofereciam ajuda sem serem solicitados. Ele recusava todas as ofertas – um ato de coragem, porque, nos Estados Unidos pós-Guerra Civil, a riqueza era um instrumento de sucesso. Moody nem sequer reservou uma quantia anual para cobrir as despesas de sua esposa e família; simplesmente fez um seguro de vida no valor de 1500 dólares para Emma. Vivia de doações espontâneas e ocasionais, vindas de amigos abastados, além de modestos honorários levantados particularmente para campanhas nos Estados Unidos.

A memória de Moody nunca o deixou esquecer a luta para abandonar a carreira de negócios. Se ele gostava de bancar o filantropo, não ousaria enfrentar as tentações de um homem rico. A respeito de Marshall Field, de Leiter e de “outros homens de nossa idade em Chicago que obtiveram sucesso nos negócios e ficaram ricos”, Moody contou a Whittle, em 1884, “sempre penso neles e nas influências mundanas que os cercam e a suas famílias, fico muito agradecido a Deus por ter abandonado tudo aquilo. Por que haveria de querer o dinheiro deles? Tenho mais dinheiro no Fundo do Hinário para empregar na causa de Cristo do que o mais rico de todos eles”.

A tendência ao medo era mais fraca que a tendência à indiferença. O dinheiro era transitório. Cristo retornaria em glória a qualquer instante. Moody aguardava Sua chegada todos os dias. “A verdade da Segunda Vinda de Cristo foi usada por Deus para me tirar ‘do mundo’”. Mais enraizado que esses motivos era o completo desprezo de Moody a tudo o que se refeia ao comércio de almas. Considerava intolerável ficar rico, porque estava acostumado a viver dentro de uma situação particular do trabalho cristão. Ao ser apresentado a um entusiasmado evangelista idoso chamado “tio Johnnie” Vasser, que exclamou: “Como estou feliz por conhecer um homem que Deus tem usado para ganhar almas para Cristo!”, Moody replicou: “Falou corretamente, tio John: o homem que Deus tem usado”. Em seguida, curvou-se, pegou um punhado de terra e deixou que corresse por entre os dedos: “Não há mais nada a dizer sobre D.L. Moody, exceto que ele é usado por Deus!”.

Durante as três primeiras décadas do século XX, quando a evangelização em massa passou por uma fase lamentavelmente comercializada, os homens lembravam com tristeza a atitude tomada por Moody e Sankey a respeito de dinheiro.

Não divulgavam o que ambos haviam feito. Jane MacKinnon só ficou sabendo sete anos depois: “Julgo magnífico o fato de terem renunciado a fortuna tão grande”. Um ilustre conselheiro de Nova York foi mais insensível. Necessitando de uma opinião, os curadores escolheram Charles F. Southmayd, não apenas por sua reputação, mas também porque odiava os cristãos. Quando os curadores mencionaram Moody e Sankey, referiu-se a ambos com “todo os tipos de palavrões afirmou que estavam ganhando muito dinheiro com suas reuniões”.

Depois de analisar os documentos, mandou buscar o advogado dos curadores.

_ Sr, Coffin – disse Southmayd -, retiro a acusação de que são dois patifes; mas afirmo que não passam de idiotas por deixar esse dinheiro todos lhes escapar das mãos!

Moody chega à universidade


Às sextas-feira, Moody realizava reuniões especiais para alcoólatras de todas as classes espalhadas pela cidades americanas da década de 1870. Realizou também reuniões para mulheres. Sentia-se plenamente satisfeito com as reuniões especiais para moços. Em 4 de dezembro, Moody escreveu a Henry Drummond, que vivia na Escócia: “O trabalho entre os moços deste país está crescendo esplendidamente. Estou feliz por ter ido à Inglaterra para aprender a trabalhar com os jovens. Poderia vir nos ajudar?...”.

Moddy recebeu um convite especial para passar um dia em Princeton. A respeito da recepção feita pelos alunos, confessou: “... não tenho visto nada nos Estados unidos que tenha me agradado tanto (...). Experimentaram um reavivamento do Espírito Santo. O reitor da faculdade declarou nunca ter visto qualquer coisa igual em Princeton...”.

Em Filadélfia, Moody demonstrou a mesa personalidade sincera e íntegra que seus amigos na Grã-Bretanha conheceram. No trabalho envolvia-se completamente. Um dos oficiais da igreja de Chicago subiu à plataforma, no encerramento de um culto noturno, assim que foi iniciada a reunião com os interessados. “Toquei no ombro do sr Sankey, e ele tomou a inconveniente atitude de me abraçar. Depois de conversar um pouco com ele, aproximei-me de Moody e toquei em seu ombro também, ele se virou rapidamente e disse com toda a seriedade: ‘Converse com aquela mulher!’.” O presidente Grant, acompanhado de vários integrantes de seu gabinete, em visita à cidade para inspecionar os preparativos para a Exposição do Centenário, sentou-se na plataforma, no domingo, 19 de janeiro. Moody não fez qualquer tentativa para ser apresentado a ele após o culto. Estava resfriado e rouco; porém, mesmo em outras circunstâncias, não teria procurado o presidente.


Eu fui abençoado


Certa vez, James G. Butler, um homem da idade de Moody, em visita a St Louis, compareceu a uma reunião após o culto. Moody “aproximou-se de onde eu estava sentado e perguntou: ‘O senhor é cristão?’. ‘Sim, senhor!’, respondi, esperando que dissesse algumas palavras amáveis e cordiais. Mas não. Apontando para um homem do outro lado da sala, apenas disse: ‘Converse com aquele homem a respeito da alma dele’. Eu conversei. Não havia mais nada a fazer. Se aquele homem foi tão abençoado quanto eu, hoje é um homem muito feliz”.

Surpresa


Um experiente professor de teologia escreveu: “Fico completamente abismado ao ver um homem com tão pouca instrução ter a capacidade de compreender tão bem o público. Ele não sabe ler o Testamento grego; aliás, tem dificuldade com partes dele na versão inglesa, mas supera qualquer outro homem na arte de fazer seus ouvintes compreenderem a mensagem de um texto da Bíblia”

Recado à igreja


Moody estava novamente, como relatou Whittle, “muito circunspecto, concentrado no pensamento de orar a Deus para prová-lo’. Naquele fim de tarde, convidou os oficiais da Igreja da Av. Chicago para um chá, antes da reunião. Whittle chegou um pouco atrasado, carregando a correspondência de Moody guardada na ACM: uma pilha de cartas e um telegrama. “Sentado diante da mesa, ele abriu o telegrama e, levantou-se imediatamente e disse: ‘Sam morreu’, sentando-se novamente e cobrindo o rosto com as mãos para chorar. Depois de alguns minutos, disse: ‘Whittle, você dirige a reunião esta noite. Não posso mais ficar aqui com você’, e saiu.

Moody ausentou-se por uma semana para enterrar irmão. De um hotel, escreveu para aquela igreja: “Ultimamente os senhores têm conhecido minha mente e meu coração mais do que o normal (...). A igreja só é abençoada quando deixa de lado todas as diferenças, todas as críticas, todos os sentimentos de desinteresse e divisão e se aproxima do Senhor como uma só pessoa; quando a igreja vive sob o poder do capítulo 13 de 1Coríntios, tenho certeza de que muitas ovelhas são acrescentadas diariamente ao rebanho de Deus”.

A morte de Samuel levou Moody a querer realizar todos os sonhos do irmão em relação a Northfield. Apesar disso, Moody precisava dedicar-se a Chicago. Amava as duas cidades. Ao pastor da Igreja da Avenida Chicago, escreveu: “Espero realmente que o senhor dirija o pensamento do povo para o amor. Tenho certeza de que esse é o ponto fraco das igrejas. Precisamos amar acima de todas as coisas”.

Em 28 de janeiro, uma semana antes de seu 40º aniversário, Moody começou a campanha em Boston...

“O cristianismo”, bradou na primeira noite, “tem estado na defensiva há muito tempo, principalmente aqui na Nova Inglaterra. É chegada a hora de partirmos para o ataque. Os senhores se lembram de que durante a Guerra da Rebelião, alguns generais mantiveram seus exércitos na defensiva até serem confundidos? Acho que muitos bons cristãos daqui da Nova Inglaterra sentaram-se em seus bancos almofadados e pegaram no sono. Essa é a hora de despertar e de avançar em colunas compactas. Não queremos ficar na defensiva, mas dar inicio a um ataque. Lojas de bebidas, salões de bilhar e antros de jogatina devem ser visitados e precisam ouvir falar de Cristo e do céu; se eles não vierem ao Tabernáculo para ouvir o Evangelho, devemos visitar suas casas e pregar o Evangelho para eles; em breve, centenas de pessoas serão alcançadas”.



Impressões

Denise Gaspar


A vida de Moody me envolveu e impressionou. É impossível conhecer sua vida e não ficar mexido. Essa é a história de como um homem se dispôs a ser talhado e usado por Deus. Fiquei apaixonada! Apaixonada por Deus, que não despreza um coração contrito e que O busque com sinceridade. Mais uma vez me apaixonei pelo Deus a quem amo.

Pitada de Sal reproduziu o prefácio, a introdução e a notas do livro, Moody, uma biografia, e cada um de seus autores aponta bem o principal do perfil de Moody. Ainda assim faço questão de pontuar o que me ardeu no coração e através do que Deus ministrou a mim sobre o Seu propósito para nossas (minha) vidas. Alguns “detalhes” que talvez passem desapercebidos a uma leitura mais factual e cronológica. “Detalhes” que movem o Espírito de Deus.

O que mais chama a atenção é que Moody não tinha e sabia não ter nenhum mérito para que Deus o amasse tanto e lhe usasse de maneira tão especial. Absolutamente nenhum mérito, nada além do firme desejo de anunciar Cristo às pessoas.

Moody se dispôs a ser um instrumento nas mãos de Deus. Se abriu inteiramente e sem restrições ao agir de Deus. E sua vida revela como Deus reage a um coração sedento que O busca: Ele toca, lapida e transforma o coração desse homem; e, através dessa transformação, renova, une e alcança a muitos.

Apesar de ser iletrado e sem educação formal, portanto, sem o hábito da leitura, Moody era um leitor voraz e um estudioso dedicado da Palavra de Deus. Moorhouse mostrou-lhe uma nova maneira de estudá-La e, posteriormente, o Espírito Santo aprimorou seu contato com a Palavra.

Moody foi um homem de oração, seu ministério foi marcado pelas reuniões diárias de uma hora de oração ao meio dia, que eram precedidas por uma hora de oração de Moody solitária, num particular com o Pai. Torrey testificou: “Era grande o privilégio de ouvi-lo pregar, como só ele sabia pregar. Contudo, conhecendo-o intimamente, quero testificar que Moody era maior como intercessor do que como pregador. Enfrentando obstáculos aparentemente invencíveis, ele sabia vencer todas as dificuldades. Sabia, e cria no mais profundo de sua alma, que não havia nada demasiadamente difícil para Deus fazer, e que a oração podia conseguir tudo o que Deus pudesse realizar”.

Um tinha sido o Moody que, por amor a Cristo, decidiu fazer a obra de Deus dependendo de sua própria força. Mais tarde ele mesmo se referiu a esses anos como manifestação de “zelo, mas sem entendimento”, ao que acrescentava, “Há, contudo, muito mais esperança para o homem com zelo e sem entendimento do que para o homem de entendimento sem zelo”.

E outro foi o Moody que buscou a capacitação do Alto para fazer a Vontade de Deus.

Uma é a obra, outra é a Vontade!!!

Sobre o seu batismo com o Espírito Santo, ele mesmo escreveu: “Todo o tempo eu clamava a Deus pedindo que me enchesse do Seu Espírito. Então, certo dia, na cidade de Nova York – ah! que dia! Não posso descrevê-lo, nem quero falar no assunto; é experiência quase sagrada demais para ser mencionada. O apóstolo Paulo teve uma experiência acerca da qual não falou por quatorze anos. Posso apenas dizer que Deus Se revelou a mim e tive uma experiência tão grande do Seu Amor que tive de rogar-Lhe que retirasse de mim Sua mão. Voltei a pregar. Os sermões não eram diferentes; não apresentei outras verdades. Contudo, centenas se converteram. Não quero voltar para viver de novo como vivi outrora, nem que eu pudesse possuir o mundo inteiro”.

Moody é conhecido como evangelista. Apesar disso, notei em seu ministério algo além. Antes do mais, ele não era um evangelista no sentido restrito da palavra, alguém que anuncia a Palavra a muitos, a poucos ou a um só. Ainda menos um evangelista pós-moderno como a maioria hoje em dia, todos se especializando em tele-evangelismo. À distancia, sem se expor, sem conhecer, sem envolvimento, sem toque, sem cheiro, sem interesse, sem cuidados, sem amizade. É claro que existem evangelistas hoje, vivendo na pós-modernidade, que não são pós-modernos. São pessoas chamadas por Jesus para o evangelismo. Vivem e pregam em conformidade com a Palavra, talvez por isso mesmo não sejam tão ‘renomados’ e reconhecidos aqui na Terra. Mas, com toda certeza, são conhecidos e agradáveis aos céus.

Moody anunciava a Cristo, mas não era só isso. Ele se envolvia com as pessoas. Ele as amava. Conhecia pelo nome muitas delas, conhecia suas histórias, caminhava junto, não tinha medo de se expor, fazia amizades. Existem relatos de amigos próximos e de outras pessoas, além de cartas escritas por ele, onde vemos o seu interesse pelas pessoas. Ele sentia saudades, queria notícias, queria contato.

Jesus Se envolvia e se envolve com as pessoas. Ele quer contato, quer sentar para ‘um dedo de prosa’, quer nos ouvir, quer falar e aconselhar. Ele é Pastor, e como diz uma amiga, pastor tem cheiro de ovelha. Moody exalava o perfume de Cristo, e todos o sentiam. Mas também tinha cheiro de ovelha, o que lhe fazia exalar ainda mais o perfume de Cristo.

Além disso, Deus o chamou para restaurar Sua igreja naquela geração. Seu trabalho foi o de reconduzir as pessoas de volta à Palavra genuína. Pessoas que haviam se perdido entre os ‘afazeres’ desse mundo. Pessoas que tinham se perdido entre doutrinas, denominações e as querelas que surgem daí. Moody não atentou a essa discussão, seu trabalho sempre foi supra denominacional. Ele se ateve à Verdade e, através dele, Deus pôde reapresentar Sua Graça, anunciar o Seu Amor e levantar muitos homens e mulheres a compartilhar as Boas Novas: “a saber, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões, e nos confiou a palavra da reconciliação”, 2Co5:19.

Depois de ler sua biografia, a que é considerada a mais completa, comecei a ler W. Nee, “A direção de Deus para o homem”. Logo nas primeiras páginas fala sobre os chamados de Pedro, Paulo e João. Mostrando como Deus usa o pouco que temos, uma vez entregue a Jesus, para operar maravilhas entre os homens. Relaciona o que Lhe entregamos com nosso chamado.

Fala sobre Pedro ser pescador, o lençol que viu descer dos céus com todos os animais considerados imundos, sua ida à casa de Ananias, e as chaves do céu que recebeu de Jesus. Ele foi levantado para pescar almas, começar trabalhos. Paulo fazia tendas e a ele Deus deu o ministério de estruturar a vida cristã. Aos lençóis de Pedro, Paulo dava forma e conteúdo, construindo tendas sólidas com alicerces seguros para edificação das vidas e comunidades cristãs. João era pescador, mas sua principal função era a de restaurar redes. O chamado de João era o de restaurar as vidas que se distanciaram da Palavra se envolvendo com muitas e quaisquer outras coisas, vaidades, doutrinas, personalismos, teologias, políticas... com afazeres, problemas e delícias deste mundo.

Exatamente como o ministério de João foi o de Moody.

Moody tinha certeza de seu chamado. Ele mesmo diz que o seu trabalho era o de dar ânimo e continuidade a trabalhos nascidos no coração do Pai. Certamente Moody foi usado na resposta do clamor de alguns que se uniram a Habacuque: “... aviva a Tua obra, Ó Senhor, no decorrer dos anos, e, no decurso dos anos faze-a conhecida”. Hc 3:2.

Anunciava a Palavra a quem não A conhecia contagiando corações com a paixão por Jesus. Mesmo seu evangelismo tinha, em Deus, o propósito de acender e alimentar o amor no coração daqueles que já haviam esmorecido, cansado, esfriado, trocado a vida de amor por práticas ritualísticas e doutrinárias.

Moody foi usado por Deus para animar a obra do Senhor que havia esmorecido no decorrer dos anos. Para animar nos homens o amor por Jesus, pelo anúncio da Graça e pela Salvação dos homens. Foi usado para atrair vidas que ainda não conheciam Jesus, tanto quanto para reacender a chama do Amor em homens salvos e também na vida de ministérios.

Moody era movido por um único objetivo: anunciar Jesus pela revelação da Graça que move o coração do Pai.

“Moody e Sankey eram tão pobres como os outros ao redor, mas tão cheios de esperança e gozo que conseguiram levar muitos a Cristo e se tornarem ricos, apesar de nada possuírem... Os cultos continuavam... quase sem cessar... Multidões choravam seus pecados, às vezes dias inteiros, e, no dia seguinte, perdoados, clamavam e louvavam em gratidão a Deus. Homens e mulheres até então desanimados participavam do gozo transbordante de Moody, transformado pelo batismo no Espírito Santo... Usou os mesmos métodos simples até o fim da vida: sermão dirigido direto aos ouvintes; aplicação prática da mensagem do Evangelho à necessidade individual; solos cantados sob a unção do Espírito; apelo para que o perdido se entregasse imediatamente; uma sala ao lado, para onde levava os que se achavam em ‘dificuldades’ em aceitar a Cristo; estímulo a que os salvos trabalhassem entre os ‘interessados’ e recém convertidos; uma hora de oração ao meio dia, diariamente, e cultos que duravam dias inteiros”, afirma Orlando Boyer.

Anunciando a Cristo e perguntando quem desejava render-se ao Seu Senhorio, todos, mesmo os crentes de anos, se dirigiam a frente para receber a oração. Moody não foi, a meu ver, propriamente um evangelista, mas um avivalista do Amor de Deus naquela geração, deixando marcas que nos atingem nos dias de hoje. Acendendo e reacendendo a chama da Graça Divina, vidas eram acrescentadas ao Caminho e, em cada coração, era gerado o fruto que permanece para sempre.

Moody reconhecia que o fato de pregar e muitos irem a frente, não significava que fossem permanecer em Cristo. Ele receava que de cada 10 apenas 01 se mantivesse firme na fé. Essa possibilidade o entristecia. Aliás, esse é um engano muito freqüente no meio dito evangélico: a contabilidade da hora. “Eis os meus frutos: tantas pessoas foram à frente e aceitaram a Cristo...”. Tolice. Meninice. Vaidade. O certo seria apenas glorificar a Quem pertence a Glória e dizer: “Tantos foram à frente, aceitaram a oração e renderam-se a Cristo. Glória a Deus!”.  Essas pessoas não são o fruto que Deus quer gerar em nós. Elas são o resultado do fluir de Seu Espírito em nós; do jorrar do rio de águas vivas que saem do nosso interior. Como disse Moody:“Voltei a pregar. Os sermões não eram diferentes; não apresentei outras verdades. Contudo, centenas se converteram.”. Esses ‘meninos tolos e vaidosos’ pensam que a obra é deles, pensam que têm algum mérito, que são melhores, especiais. Ou andam no engano, e Deus os esclarecerá; ou, o que é pior, o deus deles é o ventre; mas ainda há tempo... Deus os libertará.

Os que assim pensam e procedem lamentavelmente desperdiçam o melhor de Deus. Experimentam um pouquinho da Graça divina e se esquecem que há muito mais. Deixam de buscar mais e de desfrutar mais da Bondade de Deus. As curas, as libertações de drogas, vícios, o encontro de trabalho, oportunidades que são abertas a nossa frente, anunciar a Palavra, ver corações se entregando ao chamado e ao toque de Deus... tudo isso é só uma amostra do Poder de Deus e do que Ele tem em mente. Declaro publicamente que não conheço a mente do Senhor. Entretanto, pelo pouquinho que já experimentei do Seu Amor em minha vida sei que isso é só o comecinho do derramar do Favor de Deus em nós e através de nós.

Podemos e devemos ser instrumentos para que muitos se acheguem a Deus, mas, de nenhuma maneira podemos esquecer que é o Espírito Santo quem opera convencendo do pecado e concedendo nova vida. Deus não depende de nós para ser Deus. Se não quisermos desfrutar do privilégio de contemplar Suas maravilhas através de nós, Ele não irá ficar impedido de agir. Ele é Deus, nada, absolutamente nada impede o agir de Sua Graça. Se for necessário Ele usará mulas, pedras ou o que for preciso para Se revelar e abençoar vidas. A criação, a natureza anuncia a Glória de Deus.

A obra é d’Ele, a glória é d’Ele, e não de Moody e nem nossa.

Para Deus não importa o começo, quantos foram à frente naquela oportunidade, (alguns motivos podem tê-los levado à frente). Todos, invariavelmente, começamos da mesma maneira: no pecado. Presos nas tramas do pecado e carecendo do resgate pago por Jesus na Cruz com Sangue. Mas uma vez libertos do pecado e adotados e feitos filhos de Deus o que importa é a caminhada. No Caminho, como diz Caio Fábio, podemos cansar, tropeçar, cair, esmorecer... a única coisa que não podemos é sair do Caminho. Para Deus importa o fim da história. Importa se permanecemos no Caminho e confiamos em Jesus e no caráter do Pai a despeito de todas as circunstâncias. Importa se cada um daqueles que foram à frente permaneceu firmado em Sua Graça e permitiu ser transformado pela força do Amor.

 “Os frutos”... na verdade, o fruto...

Nós somos os ramos da Videira Verdadeira. Fomos enxertados em Jesus. Somos os ramos de Jesus e o que Ele pretende nos alimentando com Sua seiva é nos dar Nova Vida, uma nova natureza. Somos chamados para dar fruto. O fruto do Amor. “Eu Sou a Videira, vós, os ramos. Quem permanece em Mim, e Eu, nele, esse dá muito fruto, porque sem Mim nada podeis fazer... Como o Pai Me amou; permanecei no Meu amor. Se guardardes os Meus mandamentos, permanecereis no Meu amor; assim como também Eu tenho guardado os mandamentos de Meu Pai e no Seu amor permaneço... O Meu mandamento é este: que vos ameis uns aos outros, assim como Eu vos amei... Não fostes vós que Me escolhestes a Mim; pelo contrário, Eu vos designei para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça...”. Jo 15: 5, 9,10,12,16.

A Palavra diz que Deus quer, ter em nós, filhos. Filhos têm o DNA do Pai. Características do Pai. Filhos observam o Pai. Imitam e aprendem com o Pai. Recebem do caráter do Pai. Filhos obedecem ao Pai. Filhos atendem ao Pai. E o Pai é Amor. Misericórdia e Graça são características vivas, e não retóricas, de Seu caráter. O Pai ensina que o Amor é a chave da vida, que o Perdão está vinculado integralmente ao Amor, não há como dissociá-los. E o que o Pai manda? Manda amar acima de quaisquer circunstâncias e a todos que são objeto de Seu próprio Amor. Sejam ‘amigos’ ou ‘inimigos’. O Pai manda que tratemos os inimigos como queremos ser tratados por Ele. O que o Pai pede? Que vivamos e repartamos a Graça do Perdão que nos alcançou graciosamente sem termos méritos nem formosuras diante d’Ele. O que o Pai quer de nós? Que sejamos perfeitos como Ele é perfeito. Perfeitos, porque, purificados no Seu Sangue, dependemos e desejamos a Sua Presença para nos aperfeiçoar enquanto caminhamos. Para sermos aperfeiçoados observando, imitando e obedecendo ao Pai.

Paulo diz que seremos julgados segundo o seu Evangelho. Que Evangelho? -, alguém pode perguntar. O Evangelho da Graça pelo qual fui alcançada e pelo qual vivo. Não serei julgada pelo número de pessoas que vieram à frente quando lhes falei do Amor de Deus. Elas virão porque o Amor de Deus as constrange e atrai à Vida Eterna. Virão porque o Senhor as toca. A obra é d’Ele, a Glória é d’Ele. Serei julgada pelo espaço que dei para que Deus agisse em mim. Serei julgada pela liberdade que dei ao Espírito Santo para fluir de mim. Serei julgada por minha decisão consciente de obedecer ao mandamento do Amor. Serei julgada por repartir o perdão com que fui perdoada.

Primeiro Jesus opera em nós o milagre do novo nascimento só então, através da nova criatura, alcança a muitos.

O fruto do Amor de Deus brota no nosso coração conforme caminhamos com e em Jesus. O fruto brota na intensidade da comunhão com Cristo e é colhido pelos que nos cercam em forma de atos e reações de amor e perdão. O fruto nasce no interior do coração do homem e por sua existência e eficácia se manifesta pro lado de fora e alimenta a muitos. “O fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio”. Gl5:22,23.

A árvore é reconhecida por seu fruto e não por quem e quantos se alimentam dela.

O fruto é algo que só se manifesta para fora como verdade se for vida para dentro. Se não for vida em nós de que servem esforços e sacrifícios? Ou alguém tem a ilusão de que poderá barganhar com Deus suas formas de aparência e seu tarefismo?

O interessante, no caso de Moody, é sabermos que muitos dos que foram à frente se mantiveram firmes em Cristo e resplandeceram Sua Presença onde ficaram e, também, por onde foram, inclusive, através do trabalho missionário.

O interessante, em Moody, é saber que ele deu esse espaço para que o caráter do Pai fosse formado nele. Os muitos relatos, de quem conviveu com ele, revelam as transformações que a Palavra e a intimidade com Deus geraram nele. Em suas cartas e por outros meios de seu registro biográfico, temos relatadas as vezes que, sem confiar em suas reações naturais, buscava em Deus o modelo de como agir. E baseado no Pai, imitava-O. É nessa decisão consciente de obedecer, de amar e de honrar o Pai que nossa vida vai se transformando de glória em glória, de fé em fé. “A vereda do justo é como a luz da aurora que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito”. Pv.4:18

Os relatos de amigos, admiradores e mesmo opositores e, ainda, de jornais comprovam que Moody nunca se ensoberbecera. A humildade era uma característica marcante. A humildade não era nele uma virtude a ser admirada e cultuada, era apenas mais um sinal da Presença de Jesus.

Moody desfrutou o melhor de Deus. E o Seu melhor não é nos tornar um abençoado e nem numa vitrine, um ícone. O melhor de Deus para nós é habitar em nós para que, sendo em nós a fonte de águas vivas a jorrar e a abençoar os que estão a nossa volta, nos tornar abençoadores.

Sua história me envolveu tanto que fiquei abatida com seu falecimento. Ele foi recolhido em 1889, eu só soube disso essa semana, (início de setembro de 2011), e me entristeci como se tivesse acabado de acontecer. A sensação é a de que ele deveria viver muitos e muitos anos. Há sempre tanto a ser feito... Fica a saudade-desejo de ter convivido com ele e com sua esposa Emma. Que mulher sábia! Que vida abençoada! Cabe uma biografia de sua vida, e se engana quem pensa que as únicas coisas a serem contadas seriam sobre o lar e as crianças e o seu desempenho como sombra do esposo. Moody, o homem de temperamento forte, o grande evangelista desfrutava e dependia de seu amor e companheirismo. Um dos filhos conta que o pai, até seu último dia, agradecia a Deus por ter unido os dois, e dizia não entender como Deus lhe dera uma mulher tão especial como esposa. E, da mesma forma, até sua morte, ele orava por seu ministério, agradecendo a Deus e declarando não entender como Deus lhe usava daquela maneira. Emma foi recolhida três anos depois da morte de Moody.

(No entanto, reli o livro, e nessa segunda leitura, sua morte não me pareceu prematura. Muito ao contrário, Moody fez tudo o que Deus tinha reservado para ele. Completou a carreira. Guardou a fé. Talvez mais um dia fizesse com que ele mesmo começasse a atrapalhar o que Deus tinha realizado através dele até ali. Já havia desfrutado e se deliciado do Pão Vivo que desceu do céu, alimentado e avivado a muitos com o Amor e a Graça de Deus através de sua vida. Perfumado a terra por onde passou. Jesus no comando, chama acesa, exemplo dado... estrada a frente... chegada ao Lar).

Meu objetivo é estimular você que ama a Deus, você que tem sede de Sua Presença e fome de Sua Vontade a ler esse livro. Uma história como a de Elias, Isaías, Pedro, Paulo... Homens cheios de limitações, mas usados profundamente por Jesus. Homens que amaram e se entregaram a Deus. Homens usados por Deus para marcar a História com o Selo de Deus. Muitos outros homens e mulheres foram e são levantados por Deus e, ainda que no anonimato da história oficial estudada nos seminários e  meios acadêmicos, são conhecidos no Céu por terem se mantido firmes no propósito de amar e servir a Deus na submissão à Sua Vontade, que é boa, perfeita e agradável. Homens e mulheres que agradam a Deus pela constância na certeza do Seu caráter. Isso é fé. E “de fato, sem fé é impossível agradar a Deus”, Hb11:6. Como agradar a Deus sem conhecê-Lo? Como agradar a Deus sem confiar n’Ele?

O objetivo é estimular você a buscar a Presença de Jesus e a se render incondicionalmente a Ele para que Ele cure e transforme seu coração e seja percebido e recebido por muitos.

Eis os “detalhes” que fizeram com que a vida de Moody fosse usada de forma tão especial por Deus.

- Total submissão a vontade de Deus

- Vida de oração e intimidade com Deus

- Vida de estudo da Palavra de Deus

- Busca de arrependimento e conserto diante de Deus

- Desejo ardente e incansável de fazer a Vontade de Deus

- Humildade

- Centro de sua mensagem – Salvação, ou seja, Amor, arrependimento, perdão

O mundo viu, no fim do século XIX, o que Deus pôde fazer através de uma pessoa que se consagra totalmente a Ele. Alguém que abriu mão de valores, conceitos, dinheiro-riquezas, doutrinas, reconhecimentos... Alguém que não se acomodou diante de facilidades, não fraquejou diante das dificuldades e nem se corrompeu com oportunidades. Alguém que manteve seu coração aberto ao agir de Deus, seus ouvidos atentos à Sua direção e suas mãos disponíveis como instrumentos para o Seu trabalho.

O mundo do século XXI está carente, ou melhor, desesperadamente necessitado de homens e mulheres que, como Moody, se consagrem a Jesus inteiramente. Se consagrem para ser em Deus e não para ter de Deus. Para ser o que Deus fez você para ser: um abençoador.

Quais de nós responderemos ao chamado de Deus? Quantos de nós temos nos consagrado à Sua Vontade?

Deus continua procurando corações que sejam apenas Seu!!!

Jesus quer que desfrutemos de Seu Amor e anunciemos Sua Graça.

 (todas as citações desse artigo estão em “Heróis da fé” de Orlando Boyer).

Nenhum comentário: