sábado, 15 de agosto de 2009

A trindade atual

Vivemos numa época na qual todos são treinados desde o berço para escolher por conta própria o que é melhor para si. Passamos por alguns anos deste tipo de aprendizado antes de sermos deixados por nossa conta e risco, mas o treinamento começa cedo. Na hora em que podemos segurar uma colher, escolhemos entre uma dúzia de cereais para a refeição matinal. Nossos gostos, nossas inclinações e nossos apetites são consultados interminavelmente. Logo estamos decidindo as roupas e o corte de cabelo que vamos usar.
As opções são muitas: quais os canais de TV a que vamos assistir; que cursos faremos na escola; qual a faculdade que cursaremos; quais as matérias vamos estudar; que modelo e cor de carro compraremos; que igreja vamos freqüentar. Aprendemos desde cedo, com múltiplas confirmações enquanto crescemos, que temos o direito de opinar quanto à formação de nossa vida e, dentro de certos limites, até o direito à opinião decisiva. Se a cultura realizar um trabalho caprichado – e no que diz respeito a isso, ela é bastante eficaz com a maioria de nós -, entraremos na idade adulta supondo que necessidades, desejos e sentimentos formam o centro de controle divino de nossa vida.

Nos últimos 200 anos, uma literatura vasta, tanto erudita quanto popular, foi desenvolvida para compreender essa nova santíssima trindade de necessidades, desejos e sentimentos que formam o “eu” soberano. Ela se reduz a um imenso volume de conhecimento. Nossa nova classe de mestres espirituais é composta de cientistas e economistas, médicos e psicólogos, educadores e políticos, escritores e artistas. Eles equivalem, em inteligência e paixão, aos teólogos da Igreja primitiva, e também são tão religiosos e sérios quanto esses, pois sabem que aquilo que descobrem tem enorme implicação sobre a vida diária. Os estudos que conduzem e a instrução que oferecem no serviço do deus que somos nós, da divindade composta por nossas necessidades santas, desejos santos e sentimentos santos, são convincentes e seguidos de modo confiante. É difícil não se deixar convencer diante do testemunho de todos esses especialistas. Sob a tutela deles, quase tenho a certeza de que sou o texto com autoridade para orientar a minha vida.

Essa soberania rival, no entanto, está envolta em uma linguagem muito espiritual, e somos tão facilmente convencidos de nossa soberania espiritual, que ela acaba prendendo realmente a nossa atenção. Os novos mestres espirituais nos asseguram de que todas as nossas necessidades espirituais estão incluídas na nova trindade: nossa necessidade de significado e transcendência, nossos sentimentos de relevância espiritual – e, naturalmente, sobra algum espaço para Deus, na medida dos seus desejos.
A nova trindade não se desliga de Deus ou da Bíblia; ela simplesmente os coloca a serviço das necessidades, dos desejos e dos sentimentos. O que nos agrada, pois fomos treinados durante toda a vida a tratar a todos e a tudo desse modo. Fica tudo no mesmo terreno. É a prerrogativa da soberania.

Em nossos dias, tornou-se terrivelmente claro que a realidade central da comunidade cristã – a soberania de Deus revelando-se em três pessoas – é contestada e deturpada por praticamente tudo o que aprendemos na escola e na universidade, tudo o que é apresentado na mídia, cada expectativa social, profissional e política que nos orienta, à medida que os especialistas nos asseguram da soberania do ego.
Essas vozes parecem tão perfeitamente sintonizadas conosco, e se expressam com tamanha autoridade, feitas sob medida para nos mostrar como exercer o nosso “eu” soberano, que mal percebemos o fato de termos trocado as nossas Bíblias por esse novo texto, o “eu” santo. E, mesmo assim, não continuamos freqüentando os estudos bíblicos e lendo os versículos ou capítulos diários rigorosamente? Como somos o tempo inteiro estimulados a consultar as nossas necessidades, os nossos sonhos e as nossas preferências, mal notamos a mudança daquilo que professamos crer há tanto tempo.

Por essa razão, é tão urgente relembrar a ordem do anjo a João. Se desejamos conservar a nossa identidade e se queremos dispor de um texto pelo qual vale a pena viver – um texto que nos faça continuar na companhia do povo de Deus e nos mantenha cientes de quem Ele é e como Ele trabalha -, devemos simplesmente comer o Livro.

Deus e Seus caminhos não são aquilo que quase todos imaginam. A maior parte do que os amigos da rua, os jornais e a televisão falam sobre Deus e Seus caminhos é puro erro. Talvez não seja completamente errado, mas errado o suficiente para confundir a maneira pela qual vivemos. E a Bíblia é, precisamente, revelação – uma revelação de Algo que nunca poderíamos determinar sozinhos.




Eugene Peterson. Maravilhosa Bíblia. Ed. Mundo Cristão.