terça-feira, 29 de dezembro de 2009

O Evangelho Maltrapilho 1

Creio que a Reforma realmente começou no dia em que Martinho Lutero orou sobre o significado das palavras de Paulo em Romanos 1: 17: “visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá pela fé”. Como muitos cristãos dos nossos dias, Lutero se debatia noite adentro com a questão fundamental: de que forma o evangelho de Cristo podia ser realmente chamado de Boas novas se Deus é um juiz justo que retribui aos bons e pune os perversos? Será que Jesus veio revelar essa terrível mensagem?

Porém, como observa Jaroslav Pelikan: “Lutero repentinamente chegou à percepção de que a “justiça de Deus” da qual Paulo falava nessa passagem não era a justiça pela qual Deus era justo em si mesmo (que seria uma forma passiva de justiça), mas a justiça pela qual, por causa de Jesus Cristo, Deus tornou justos pecadores (isto é, justiça ativa) através do perdão dos pecados na justificação. Quando descobriu isso, Lutero afirmou que os próprios portões do Paraíso haviam-se aberto para ele.

Que verdade atordoante!

“Justificação pela Graça mediante a fé” é a frase erudita dos teólogos para o que Chesterton chamou certa vez de “amor selvagem de Deus”. Ele não é instável nem caprichoso; não conhece épocas de mudança. Deus tem um único posicionamento inflexível com relação a nós: Ele nos Ama. Ele é o único Deus jamais conhecido pelo homem que Ama os pecadores.

Jesus afirma, com efeito, que o Reino do Pai não é uma subdivisão para os justos nem para os que sentem possuir o segredo de Estado da Salvação. O Reino não é um condomínio fechado elegante com regras esnobes a respeito de quem pode viver ali dentro. Não; ele é para um elenco mais numeroso de pessoas, mais rústico e menos exigente, que compreendem que são pecadores porque já experimentaram o efeito nauseante da luta moral.

São esses os pecadores-convidados chamados por Jesus para se aproximarem com Ele ao redor da mesa do banquete. Essa história permanece perturbadora para aqueles que não compreendem que homens e mulheres que são verdadeiramente preenchidos com a Luz são aqueles que fitaram profundamente as trevas da sua existência imperfeita. Talvez tenha sido depois de meditar sobre essa passagem que Morton Kelsey escreveu: “A Igreja não é um museu para santos, mas um hospital para pecadores”.

A Boa Nova significa que podemos parar de mentir a nós mesmos. O doce som da Graça admirável nos salva da necessidade do auto-engano. Ele nos impede de negar que, embora Cristo tenha sido vitorioso, a batalha contra a lascívia, a cobiça e o orgulho ainda ecoa dentro de nós. Na condição de pecador redimido, posso reconhecer com qual freqüência sou insensível, irritável, exasperado e rancoroso com os que me são mais próximos. Quando vou à igreja, posso deixar meu chapéu branco em casa e admitir que falhei. Deus não apenas me Ama como eu sou, mas também me conhece como sou. Por causa disso não preciso aplicar maquiagem espiritual para fazer-me aceitável diante d’Ele. Posso reconhecer a posse de minha miséria, impotência e carência.

Quando sou honesto, admito que sou um amontoado de paradoxos... Viver pela Graça significa reconhecer toda a história da minha vida, o lado bom e o ruim. Ao admitir o meu lado escuro, aprendo quem sou e o que a Graça de Deus significa. Como colocou Thomas Merton: “Um santo não é alguém bom, mas alguém que experimenta a Bondade de Deus.”

Tudo de bom é nosso não por direito, mas meramente pela liberalidade de um Deus Gracioso. Embora haja muito que podemos ter feito por merecer – nosso diploma e nosso salário, nossa casa e nosso jardim e uma noite de sono caprichada – tudo é possível apenas porque nos foi dado tanto a própria vida, os olhos para ver e mãos para tocar, mente para formar idéias e coração para bater com amor. A nós nos foram dados Deus em nossa alma e Cristo na nossa carne. Temos o poder de crer quando outros negam; de ter esperança quando outros desesperam; de amar quando outros ferem. Isso e muito mais é pura e simplesmente de presente; não é recompensa à nossa fidelidade, à nossa disposição generosa, à nossa vida heróica de oração. Até mesmo nossa fidelidade é um presente. “Se nos voltamos para Deus”, disse Agostinho, “até mesmo isso é um presente de Deus.” Minha consciência mais profunda a respeito de mim mesmo é de que sou profundamente Amado por Jesus Cristo e não fiz nada para consegui-lo ou merecê-lo.

Adaptado de Brennan Manning. “O Evangelho Maltrapilho”, ed. Textus.

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