Em verdade vos digo que tudo o que ligares na terra
terá sido ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos
céus. Em verdade também vos digo que, se dois dentre vós, sobre a terra, concordarem
a respeito de qualquer coisa que, porventura, pedirem, ser-lhes-á concedida por
Meu Pai, que está nos céus. Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em Meu
Nome, ali estou no meio deles. Mateus 18:18-20
Nós examinamos o texto de Mt18:15 -35 e eu disse
que o problema está nos versos 18 e 19, onde, após Jesus nos mostrar como se
deve proceder com a pessoa que nos ofendeu, Ele diz: “Em verdade vos digo que
tudo o que ligares na terra terá sido ligado nos céus, e tudo o que desligares
na terra será desligado nos céus”. Esse texto é um texto que entra em
contradição com todo o ensino do Evangelho se sua interpretação for aquela que
a igreja chamou para si.
A igreja chamou para si uma interpretação clerical,
que dá aos líderes, aos pastores, aos apóstolos, aos bispos, e outros, o
suposto poder de determinar quem está ligado a Deus e quem não está ligado a
Deus. A igreja arrogou para si o poder de dizer quem é e quem não é de Deus,
quem está e quem não está em comunhão. O que contradiz inteiramente com o
espírito do NT.
Em Mateus vemos que tais surtos nos remetem
imediatamente à questão da relacionalidade com nosso ofensor. E Jesus diz como
proceder: vai sozinho; se ele te ouvir, ganhaste teu irmão... Mas se ele não te
ouvir, declara-o publicano e pecador. O conceito de publicano e pecador para os
judeus era totalmente diferente do conceito de publicano e pecador para Jesus.
Para os judeus, os publicanos e pecadores eram os
outros, os párias; para Jesus, eram aqueles que Ele mais acolhia, com quem mais
comia, em cujas casas mais entrava, a quem mais estendia misericórdia. De modo
que se eu tomar os judeus como chave hermenêutica, (chave para meu
entendimento), para interpretar a expressão “considera-o publicano e pecador”
eu terei de pensar com as categorias do farisaísmo que exila, que bane, que
diz: com esse aqui eu não falo mais. E isso também contraria o espírito de
Jesus, que tinha acabado de dizer a João (que queria fazer descer fogo dos céus
sobre os samaritanos): você não sabe de que espírito é, porque o Filho do Homem
não veio para destruir as almas dos homens e, sim, para salvá-las. É nesse
contexto que aparece essa história de que “o que ligares na Terra terá sido
ligado nos céus, e o que desligares na Terra terá sido desligado nos céus”.
Esse é o texto usado de maneira absolutamente áurea, desgraçadamente áurea,
pela igreja, pelo cristianismo, nesses mil e setecentos anos, para a usurpação
de poder que criou essa exacerbação de tiranias, de despotismos, de
perversidades, de ações contra o próximo; baseado em caprichos papais, ou
bispais, ou cardinais, ou supostamente apostolares.
Então, nós percebemos que o sentido não poderia ser
o considerar desprezível o publicano e pecador que não fez a viagem da
consciência até o fim, se a nossa chave hermenêutica é Jesus, se Ele é o Verbo
encarnado e se é a partir dEle que eu entendo o Evangelho. Ora, se o meu eixo
não é a interpretação dos judeus sobre os publicano e pecadores, e, sim, a
interpretação de Jesus em relação a eles, o que Jesus estaria dizendo é: se
esse indivíduo que o ofendeu, e que você já tem de perdoar de saída, não fizer
a viagem da graça em favor dele mesmo, trate-o, daí para frente, com aquela
misericórdia e com aquele carinho que vocês Me viram tratando a todos aqueles
que eram considerados párias pelos judeus, ou todos aqueles que se fazem párias
pelo distanciamento, pelo desvinculamento. Ou seja, qual é o tratamento? É de
mais amor, mais graça, mais misericórdia; a menos que esse indivíduo seja
alguém que queira perverter o Evangelho para a comunidade, desviar a
consciência das pessoas do bom e reto caminho do Evangelho. Aí, nesse caso,
anunciar-se-ia isso à comunidade apenas dizendo: Olhem, já não é mais uma
questão de ofensa pessoal – isso está tudo resolvido e perdoado -, é o ensino
que se tornou corruptível; por isso, cabe a nós, como vigilantes e guias das
vossas almas, dizer que essa pessoa não está ensinando aquilo que fará bem. É o
máximo a que se pode chegar. Mas isso não exclui o amor, a misericórdia, a
graça.
O cristianismo entendeu que esse seria um texto que
faria Jesus entrar em contradição consigo mesmo, o tempo todo, pois foi ele
quem disse: não julgueis para que não sejais julgados.
Foi Ele quem disse para que ninguém tentasse
separar o joio do trigo, porque ninguém tem o discernimento das naturezas
essenciais. Chegaria a hora em que o Pai mesmo providenciaria essa separação;
Jesus não delegou isso a ninguém. Será trabalho de anjos em um determinado
tempo, jamais de homens.
Jesus foi claro; não arranquem o joio, não separem,
não façam assim, porque ninguém conhece as naturezas, e as aparências enganam.
Às vezes, é um trigo que está vivendo um momento de joio, e então podem
arrancar uma boa natureza. E nós vimos
que seria uma contradição ainda maior também porque Pedro, entendendo isso como
sendo algo que tinha a ver com uma responsabilidade que Jesus dava – de ligar
sempre, de manter o coração sempre vinculado ao amor, à graça, ao perdão, à
misericórdia -, não entendeu como uma prerrogativa de superioridade. Pedro
entendeu como um mandamento de perdão. Ele entendeu que se andasse no caminho
conforme o Evangelho que fosse falar com o irmão que o havia ofendido já no
espírito da cruz, dizendo: Pai, perdoa-lhe, porque ele não sabe o que faz. Numa
tentativa de ganhar a alma, o coração, a consciência de um irmão, mas não para
decidir se perdoaria ou não perdoaria aquele indivíduo. Pedro já havia
aprendido com Jesus que o indivíduo, convertido ou não, teria de ser perdoado.
Então, nós vimos o que esse texto não é. Ele não é
um texto que concede a alguém – a nenhum grupo de dois, de três, de dez, seja
lá de quantos forem o poder, na Terra, de determinar quem está ligado a Deus e
quem não está ligado a Deus. Seria uma contradição com o ensino inteiro do Novo
Testamento, que diz que há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens:
Jesus Cristo, o Homem. Seria uma contradição com o espírito do Evangelho, que
diz que ainda que um grupo humano inteiro resolva demonizar alguém e nunca
perdoar, por qualquer que seja a veneta religiosa que neles dê, isso não
alterará em absolutamente nada a sua relação com Deus; porque é Deus quem o
justifica.
Vamos tratar do que o texto de fato significa,
quando diz: “Aquilo que ligares na Terra terá sido ligado nos céus, e aquilo
que desligares na Terra terá sido desligado nos céus”. O contexto antecedente
tem a ver com reconciliação com o irmão, e o contexto que o sucede afirma a
necessidade do perdão em razão da graça descomunal que recebemos. Porque, como
diz Paulo: “Fiel é a Palavra e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio
ao mundo morrer pelos pecadores, dos quais eu sou o principal”. Quem se sabe
dos pecadores o principal, sabe-se também dos pecadores o que mais tem que
perdoar. Para sempre. Aquele que se sabe dos pecadores o principal não é porque
entrou num concurso de pecaminosidade; é porque ganhou a consciência da sua
própria natureza e chama para si as implicações de dizer; eu me incluo entre
todos os que igualmente pecaram e carecem da Glória de Deus; e careço mais que
todos, porque dos pecadores eu sou o principal. Nesse pecado superabunda a
graça dessa consciência sincera, de quem já está justificado para todo o
sempre. Paulo diz que não há poder no céu, na Terra, nem em dimensão alguma que
possa se opor e se interpor a esse Amor de Deus, que se vincula a nós pela
fidelidade dele conosco. E uma vez que isso está estabelecido, nós vimos que a
vocação do discípulo é para declarar o mundo inteiro perdoado.
Toma a tua cruz e segue-me significa dar o primeiro
passo da cruz: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. A vida do
discípulo é vida de perdão; do contrário, Jesus não diria para amar até o
inimigo, para orar por quem o persegue. A vocação do discípulo é esta. Ele não
deve ter nenhuma caixa para guardar amarguras ungidas; não deve ter dentro de
si qualquer reservatório para aconchegar as ranzinzices, as feiuras, os ódios,
as vinganças, mesmo que o outro seja um recalcitrante.
O Evangelho não criou esse lugar no coração do
discípulo e jamais criará. A religião, sim. A religião tomou para si o direito
de dizer que, de uma determinada hora em diante, não devemos mais orar pelo
inimigo; não devemos mais amar aquele que nos persegue; que de uma determinada
hora em diante, nós viramos judeu, e devemos declarar o outro publicano e
pecador e o expulsar de nosso meio. De uma determinada hora em diante, ganhamos
permissão para deixar o Evangelho de lado e praticar as nossas
processualísticas de rito, de disciplina romana. Mas tudo isso é contradição
total com o espírito do Evangelho.
Então, o que Jesus está querendo dizer com “o que
ligares na Terra terá sido ligado nos céus, e o que desligares na Terra terá
sido desligado nos céus”? Tem a ver comigo em relação ao outro? Ou será que,
antes de qualquer coisa, isso tem a ver comigo em relação a mim?
Note que, logo depois, Jesus falou: “Porque onde
estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou no meio deles”. E Ele
prossegue, dizendo que o que dois ou três concordarem a respeito do que pedirem
ser-lhes-á concedido pelo Pai que está nos céus. A palavra usada por Ele,
“concordarem”, é a mesma palavra para designar uma sinfonia; para designar algo
harmonioso, que está sob a batuta do maestro do Evangelho: Jesus. Está tudo
muito harmonioso – amor, graça, perdão, os tenores da misericórdia, os baixos da
gravidade do amor de Deus.
A sinfonia: Onde dois ou três estiverem reunidos de
fato em Meu Nome... E “Em Meu Nome” não significa apenas dizer: estamos aqui em
nome de Jesus. Em muitos lugares leem o Evangelho – estão reunidos em nome de
Jesus e o nome que está sendo invocado lá é o de Jesus. Mas ali está um
antijesus, que não tem nada a ver com Jesus. Então, quando diz “reunidos em Meu
Nome” significa dizer: reunidos no Espírito de Jesus, reunidos conforme o
ensino de Jesus, conforme a compreensão da graça, da misericórdia e conforme a
atitude de discípulo que todos devemos ter – que não é diferente da atitude de
Jesus. Os discípulos estão sendo chamados é para seguir a Jesus. E estar
reunido em Nome de Jesus é dar razão ao Evangelho – não contra alguém; é dar
razão ao Evangelho em favor da vida. Estar reunido em Nome de Jesus é aquela
atitude comunal, que pode ser de dois, de três, de tantos quantos sejam, mas
tem o acordo com o mandamento do Evangelho. E Jesus disse: O meu mandamento é
amor, é amem-se uns aos outros como eu vos amei – esse é o mandamento que Eu
dou.
Então, ninguém tem de fazer mais nenhuma viagem
bruxa. O que Jesus está dizendo é: se o acordo do amor estiver prevalecendo, se
a sinfonia da graça estiver tocando entre vocês, se o mestre da regência dessa
harmonia for o espírito do Evangelho, então, qualquer coisa que vocês pedirem,
irão pedir com amor, como graça, e nunca como maldição. Ninguém jamais deverá
se reunir para pedir uma providência súbita e rápida para destruir a vida de
alguém, porque essa pessoa estaria tentando acabar com a vida dele. Nunca! O
espírito do Evangelho tem de ser o de Jesus, o estímulo é para seguir os seus
passos. Em Jesus não vemos nada disso, nem na hora de sua morte. Quando Pedro
corta a orelha de um inimigo, Ele cura. Ele trai a fidelidade de Pedro, para
não trair o Evangelho. A fidelidade de Pedro era instintual, animal, leonina.
Jesus cura Malco e afirma o Evangelho sobre Pedro. Imagine se fosse dado a
Pedro esse poder de ligar e de desligar: ele desceria a espada; não iria nem
deligar. Cortaria ao meio. Faria o que o cristianismo fez. Isso é óbvio e
simples de entender, quando olhamos para Jesus, quando Ele é a nossa chave
interpretativa de todas as coisas, quando tudo tem de fazer sentido com Jesus e
com o Evangelho!
Então, o que Jesus está dizendo é que se entre nós
prevalecer o espírito do amor e da graça do Evangelho, se houver essa sinfonia
de comunhão no amor de Deus, “tudo o que pedirem ser-lhes-á concedido”.
Inclusive podemos orar por esse indivíduo que disse não à oferta do amor e crer
no molestamento da graça de Deus com ele. Não para destruí-lo, mas para
trazê-lo à consciência. Se mesmo aquele que está desligado da graça de Deus for
objeto das nossas orações pedindo graça de Deus sobre ele, a graça de Deus
sobre ele estará. Não é o mesmo princípio que Paulo usa em relação à mulher
casada com o marido incrédulo, ou totalmente pagão, ou hostil, e vice-versa?
Quando Ele diz: por causa do crente, daquele que se santifica na vontade de
Deus, o outro é santificado. O princípio espiritual enunciado é esse.
Portanto, esse exercício de ligar é o exercício do
perdão contínuo. Toda vez que perdoamos aquele que nos ofende, nós o religamos.
E sempre que não perdoamos aquele que nos ofende, nós nos desligamos. Temos o
poder de nos desligar, mas não temos o poder de desligar ninguém. Temos o poder
é de nos religar aos outros, perdoando-os, mesmo que os outros não queiram se
religar a nós. “Eles não sabem o que fazem” é o primeiro mandamento do
discípulo levando a cruz. Além disso, qualquer outra perspectiva que sugira
desligar alguém, apagar o nome de alguém do Livro da Vida, é antievangelho, é
blasfêmia, é pecado.
O Evangelho não segue a lógica dos direitos
humanos; a lógica do Evangelho é a Graça de Deus!!!
Então, o que significa “o que ligares na Terra terá
sido ligado nos céus, e o que desligares na Terra terá sido desligado nos céus”
senão que, de fato, recebemos a missão de viver ligando na Terra até aqueles
que a Deus não querem se ligar? A nossa vocação sacerdotal no amor, segundo o
Evangelho, é ligar os desligados, é praticar a violência do amor que liga até o
alienado; é fazer o que João disse: mesmo que ele tenha pecado, rogue por ele.
Rogue por ele, porque o amor cobre multidão de pecados. Paulo disse: cada um
tem um Pai, tem um Senhor. Se fica em pé, para o Senhor está em pé; se cai,
para o Senhor, caiu. A nossa vocação na Terra é para ligar. Quando achamos que
temos o poder de desligar, Jesus diz: você não sabe de que espírito é. O Filho
do Homem não veio para destruir, veio para salvar. Somente quem pode dizer
“quem não é por Mim é contra Mim, que comigo não ajunta, espalha” é Jesus. A
nós outros Ele nos deu o poder da relatividade de dizer: quem não é contra nós
já está a nosso favor.
O Evangelho é outro departamento. Por ele, só vence
quem perdoa. O vencedor é o que sai perdoando tudo; é um trator do perdão, na
Graça de Deus, na Terra. Esse é o espírito do Evangelho.